[...]
O
dia amanheceu.
Os
fogos estavam apagados. A água evaporara completamente, deixando as
laterais dos caldeirões cobertas com uma substância branca quase
até a borda. Seguindo as instruções de Kichizo, Isaku cobriu cada
um deles com duas tampas em formato de meia-lua. O sal seria deixado
para as mulheres que viriam à praia depois que os caldeirões
tivessem esfriado.
Seu
rosto, braços, pernas e roupas estavam úmidos por causa do ar
salgado, e ele se sentia um tanto zonzo por ter passado a noite em
claro.
— Vamos
— disse Kichizo, caminhando ao longo da praia.
Isaku
o seguiu trilha acima. Já havia vapor saindo da panela no fogo
quando ele chegou em casa, e seus irmãos menores estavam sentados
junto do fogo. Ele pendurou baldes na vara de carga guardada perto da
porta e foi buscar água no poço próximo. O mar estava mais
brilhante agora, e as estrelas mal podiam ser vistas de um lado do
céu. Quando entrou em casa, sentou-se perto do fogo e colocou sopa
de legumes numa cuia. Queria contar à mãe como tinha sido seu
trabalho cuidando dos fogos dos caldeirões, mas o silêncio dela o
fez hesitar.
A
mãe colocou sopa em cuias para o irmão e a irmã, esvaziando a
panela. Como sempre, ela colocou um pouco de água na panela. Assim
que a água ficasse quente, Isaku a derramaria em sua cuia e a
beberia. Dois grãos de milho permaneceram no fundo da cuia.
Isaku
murmurou que gostaria de dormir um pouco. A mãe permaneceu em
silêncio. Ele se levantou e foi se deitar na cama de palha.
Adormeceu imediatamente. Pouco tempo depois sentiu a coberta de palha
ser removida e sua face foi estapeada. Afastando a cabeça, ele
ergueu-se nos cotovelos.
O
rosto da mãe estava bem diante do seu.
— Você
vai dormir para sempre? Levante-se e vá trabalhar. O mar está
calmo.
Ele
saltou de pé e desceu para a seção da casa com chão de terra. A
mãe acomodou uma cesta nas costas e saiu da casa. Pegando a linha de
pesca, Isaku foi atrás dela. Desatento por causa do sono, ele
esfregou os olhos e bocejou. Lá em baixo, na praia, as mulheres
estavam retirando o sal dos caldeirões e distribuindo-o em cuias
para ser transportado. O sal seria levado para a casa do chefe da
aldeia e dividido entre as famílias.
Mulheres,
velhos e crianças podiam ser vistos curvados, examinando a linha da
água. Depois de vários dias de mar agitado, achariam uma boa
quantidade de mariscos e algas carregados para a praia. Muitas vezes,
pedaços de madeira de barcos naufragados, frutas de árvores de
locais distantes e mesmo fragmentos de peças e utensílios do
dia-a-dia eram trazidos pela correnteza.
A
mãe de Isaku correu para a praia. Os barcos estavam na água. Ao
contrário da noite anterior, não havia vento; o mar estava
tranquilo, banhado pela suave luz do sol. Isaku conduziu seu pequeno
barco pela área rasa e entrou na água fria em direção ao mar
aberto. A cada vez que segurava o remo lembrava-se do pai. Saber que
a empunhadura do remo tinha sido alisada pelas palmas do pai lhe
causava a sensação de que ele estava mais próximo.
Isaku
manipulou lentamente o remo. Podia avistar os dois caldeirões de
ferro na praia. Um deles já havia sido esvaziado, e as mulheres se
reuniam ao redor do segundo.
De
súbito as mulheres pararam de se mover e olharam para o mar. Isaku
virou-se na direção em que elas olhavam, e parou de remar. Um navio
imenso, de tamanho suficiente para carregar trezentos ou quatrocentos
fardos de arroz, estava contornando o cabo. As velas arriadas
balançavam, sem vida. Na parte superior das velas avistavam-se duas
faixas negras como insígnias, e tanto os volumes de carga como a
tripulação podiam ser vistos no tombadilho. O barco movia-se
lentamente para sudoeste.
Isaku
olhou para o barco até ele desaparecer atrás da pequena elevação
de terra sobre a qual os corvos circulavam.
Não
muito depois do período da colheita, era comum verse barcos
carregados de fardos de palha e arroz. Alguns singravam as águas a
uma distância razoável, outros bem perto da costa.
As
velas dos navios que pertenciam aos clãs feudais exibiam o brasão
de armas da família em seu centro; as do barco que acabara de passar
tinham apenas duas faixas pretas no topo, o que significava tratar-se
de um navio mercante. Provavelmente ficara atracado no porto,
esperando que a tempestade amainasse para então zarpar. Nos dias de
mar bravio, as fogueiras seriam acesas na praia assim que o sol se
pusesse,
Isaku
ouvira dizer que Sahei também tinha recebido ordens do chefe da
aldeia para trabalhar nos caldeirões de sal. Diziam que a família
de Sahei havia celebrado a passagem do filho para a maioridade
fazendo sopa de espigas de milho miúdo e tomando vinho de milho.
Isaku sentira uma ponta de inveja, mas quando pensara nas
circunstâncias de sua família, com o pai cumprindo o contrato de
servidão, compreendera que não poderia desejar o mesmo tratamento.
Ao contrário, sabia muito bem que tinha de aceitar o fato de que,
com seu pai distante, eram ele e a mãe quem deviam garantir que seus
irmãos mais novos não morressem de fome.
Ocorriam
revezamentos no pessoal responsável pelos caldeirões a cada dez
dias. Quando chegava a vez de Isaku, ele descia sozinho para a praia
no final da tarde e cuidava do fogo até o raiar do dia. Se sentisse
sono, tratava de andar e pular ao redor da cabana ou ia até a beira
do mar e molhava os pés na água fria, contemplando o firmamento e
imaginando se O-fune-sama estaria vindo.
Ocasionalmente
passavam barcos ao longo da costa durante o dia. Na maior parte das
vezes isso acontecia quando o mar estava calmo, mas podia ocorrer
também em dias de tempestade. Sacudidos pelo vento, eles subiam e
desciam entre as ondas de forma selvagem, com as velas meio enfunadas
sacudindo ao vento enquanto aceleravam ganhando distância. Isaku e
os outros habitantes da vila olhavam atentamente cada barco que
passava. Cada vez que via um navio, ele concluía que devia haver
barcos passando mesmo nas noites de temporal.
Isaku
ouviu uma história perturbadora contada por Sahei.
Sahei
tinha aparecido certa manhã depois que Isaku terminara sua terceira
noite trabalhando nos caldeirões e estava jogando areia sobre as
brasas remanescentes.
— Como
está indo o trabalho com o sal? — perguntou Sahei sentando-se no
tronco da cabana.
Isaku
ficava incomodado sempre que Sahei agia como se fosse o mais velho
dos dois, mas sentia-se também impressionado com a constituição
física e presença do outro. Sahei possuía um brilho especial nos
olhos, a aparência de um homem que tinha experiência de vida.
— Estou
me arranjando — disse Isaku, olhando para o outro lado.
— Não
sente sono e vontade de dormir? — indagou Sahei, estudando a
expressão de Isaku.
Isaku
imaginou que aquilo significava que ele não era o único que tinha
dificuldade para se manter desperto, o que o fez sentir-se um pouco
mais tranquilo.
— O
tempo inteiro — respondeu Isaku, sentando-se no troco ap lado de
Sahei e esfregando os olhos.
— Então
você não está levando o trabalho realmente a sério. Se pensar em
como este trabalho é importante, não vai sentir sono.
Um
sorriso malicioso curvou os lábios de Sahei. Isaku não disse nada,
percebendo que Sahei aproveitaria a menor oportunidade para
intimidá-lo. Imaginava que a atitude de desafio de Sahei devia-se ao
fato de ele estar contrariado por Isaku ter sido designado antes dele
pelo chefe da aldeia para cuidar dos caldeirões de sal.
De
qualquer forma, reconhecia que Sahei estava certo. Era bem provável
que Sahei conseguisse passar a noite toda completamente desperto,
concentrado nos caldeirões e ao mesmo tempo atento ao mar noturno.
Isaku piscou fracamente, sentindo-se pequeno.
— Você
ouviu falar de O-fune-sama e do oficial? — perguntou Sahei,
olhando de soslaio para Isaku.
Isaku
virou-se para ele. Não tinha ideia de que relação podia haver
entre O-fune-sama e um oficial. O pai e a mãe de Isaku
raramente falavam sobre os assuntos da vila, mas na família de Sahei
o avô e os pais discutiam todo tipo de assunto; assim, era natural
que Sahei aprendesse muito. O conhecimento de Sahei era outra razão
para Isaku sentir-se um tanto intimidado por ele.
— Oficial?
— sussurrou ele, desconfiado.
— Você
não sabe? Quer dizer que começou a trabalhar nos caldeirões de sal
sem saber disso? — troçou Sahei.
Isaku
ficou irritado com a atitude de Sahei, e também se sentiu inseguro.
Nunca tinha visto um oficial, mas certamente sabia que deviam ser
temidos; ouvira histórias de como os oficiais prendiam pessoas,
amarravam-nas e cortavam-lhes a cabeça ou queimavam-nas vivas em uma
cruz ou as empalavam em uma estaca. Isaku sentiu-se arrasado pelos
indícios de Sahei de uma conexão entre O-fune-sama e o
oficial, e refletiu que sua ignorância o tornava inadequado para
trabalhar nos caldeirões de sal.
— Então
me conte. O que aconteceu com o oficial? — perguntou ele.
Sahei
não disse nada. Estava observando as mulheres na praia carregando o
sal para a aldeia.
— Ouvi
meu avô contar a história... — começou Sahei, explicando que
tinha acontecido quando O-fune-sama viera em um inverno, um
pouco antes de seu avô nascer.
Naquela
noite, com o mar muito agitado, um barco rasgara o casco nos recifes
depois de ter sido atraído pelos fogos dos caldeirões acesos na
praia. Tratava-se de um navio de tamanho considerável e, apesar de a
tripulação ter jogado no mar parte da carga, ainda havia muito a
bordo.
— As
pessoas da aldeia ficaram extasiadas, mas depois ficaram chocadas ao
ver o brasão na vela — disse Sahei, com ar sombrio.
As
velas tinham sido arrancadas, mas a imponente insígnia nelas
estampada indicava tratar-se de um navio de um clã. A carga a bordo
era propriedade do governo, e saqueá-la sem dúvida induziria a uma
dura retaliação. Aterrorizados, os habitantes da vila saíram nos
barcos e resgataram o capitão e a tripulação agarrados ao barco
danificado. Esperaram primeira coisa que deve fazer é olhar para a
insígnia nas velas. Ninguém lhe disse isso? — perguntou Sahei.
Isaku
fez que não. Incomodava-o o fato de Kichizo não ter mencionado as
velas em suas instruções. Tinha certeza de que, assim como Sahei
havia ouvido aquilo do avô e do pai, ele também teria sido avisado
para prestar atenção na insígnia nas velas, se seu pai estivesse
em casa.
— Tem
mais alguma coisa que eu deva saber? — perguntou Isaku, agradecido
de verdade por Sahei ter lhe contado sobre os brasões nas velas.
Sahei
inclinou a cabeça para o lado enquanto olhava para a praia e então,
como se tivesse um pensamento repentino, disse:
— Meu
pai disse que se você vir O-fune-sama, deve correr até a
casa do chefe da aldeia e contar a ele. Não vá para casa nem nada
assim.
Isaku
considerou que isso também era algo para não esquecer. Ele podia
certamente imaginar como o choque de ver O-fune-sama poderia
fazer com que corresse para casa para contar à mãe.
Na
praia, as mulheres trabalhavam duro para retirar o sal dos caldeirões
e colocá-lo em tinas de madeira. Nuvens carregadas se moviam no céu,
e as ondas lançavam borrifos de água na faixa de areia.
— Parece
que meu pai também vai para a servidão — murmurou Sahei, olhando
para o mar.
Sahei
tinha uma irmã que já estava casada, outra irmã mais velha com
catorze anos e um irmão dois anos mais novo que ele. Diziam que a
família de Sahei havia comemorado na noite em que ele fora instruído
para ir trabalhar nos caldeirões, mas talvez eles tivessem tão
pouca comida quanto a família de Isaku, afinal. A filha de catorze
anos era a seguinte na fila para ser vendida como serva, mas, se ela
voltasse depois de cumprir o contrato, estaria velha demais para se
casar. Muitos pais, como o de Sahei, decidiam vender a si próprios
para poupar as filhas.
— Meu
avô está chorando lá em casa. Ele disse que venderia a si mesmo se
fosse um pouco mais jovem. — Sahei tentou disfarçar a tristeza em
seu rosto.
Se
O-fune-sama viesse, o pai de Sahei não precisaria vender a si
mesmo. Sem dúvida, Sahei estava depositando todas as suas esperanças
nos caldeirões, desejando do fundo do coração que O-fune-sama
viesse e que seu pai não precisasse deixar a aldeia.
O
sono começou a vencer Isaku. Ele se levantou.
— Eu
vou dormir um pouco — disse para Sahei, que permanecia sentado no
tronco. Pegando a tocha de pinheiro apagada, ele foi para casa.
[...]
Akira Yoshimura, in Naufrágios
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