quarta-feira, 5 de abril de 2023

Naufrágios | Capítulo 3

[...]
O dia amanheceu.
Os fogos estavam apagados. A água evaporara completamente, deixando as laterais dos caldeirões cobertas com uma substância branca quase até a borda. Seguindo as instruções de Kichizo, Isaku cobriu cada um deles com duas tampas em formato de meia-lua. O sal seria deixado para as mulheres que viriam à praia depois que os caldeirões tivessem esfriado.
Seu rosto, braços, pernas e roupas estavam úmidos por causa do ar salgado, e ele se sentia um tanto zonzo por ter passado a noite em claro.
Vamos — disse Kichizo, caminhando ao longo da praia.
Isaku o seguiu trilha acima. Já havia vapor saindo da panela no fogo quando ele chegou em casa, e seus irmãos menores estavam sentados junto do fogo. Ele pendurou baldes na vara de carga guardada perto da porta e foi buscar água no poço próximo. O mar estava mais brilhante agora, e as estrelas mal podiam ser vistas de um lado do céu. Quando entrou em casa, sentou-se perto do fogo e colocou sopa de legumes numa cuia. Queria contar à mãe como tinha sido seu trabalho cuidando dos fogos dos caldeirões, mas o silêncio dela o fez hesitar.
A mãe colocou sopa em cuias para o irmão e a irmã, esvaziando a panela. Como sempre, ela colocou um pouco de água na panela. Assim que a água ficasse quente, Isaku a derramaria em sua cuia e a beberia. Dois grãos de milho permaneceram no fundo da cuia.
Isaku murmurou que gostaria de dormir um pouco. A mãe permaneceu em silêncio. Ele se levantou e foi se deitar na cama de palha. Adormeceu imediatamente. Pouco tempo depois sentiu a coberta de palha ser removida e sua face foi estapeada. Afastando a cabeça, ele ergueu-se nos cotovelos.
O rosto da mãe estava bem diante do seu.
Você vai dormir para sempre? Levante-se e vá trabalhar. O mar está calmo.
Ele saltou de pé e desceu para a seção da casa com chão de terra. A mãe acomodou uma cesta nas costas e saiu da casa. Pegando a linha de pesca, Isaku foi atrás dela. Desatento por causa do sono, ele esfregou os olhos e bocejou. Lá em baixo, na praia, as mulheres estavam retirando o sal dos caldeirões e distribuindo-o em cuias para ser transportado. O sal seria levado para a casa do chefe da aldeia e dividido entre as famílias.
Mulheres, velhos e crianças podiam ser vistos curvados, examinando a linha da água. Depois de vários dias de mar agitado, achariam uma boa quantidade de mariscos e algas carregados para a praia. Muitas vezes, pedaços de madeira de barcos naufragados, frutas de árvores de locais distantes e mesmo fragmentos de peças e utensílios do dia-a-dia eram trazidos pela correnteza.
A mãe de Isaku correu para a praia. Os barcos estavam na água. Ao contrário da noite anterior, não havia vento; o mar estava tranquilo, banhado pela suave luz do sol. Isaku conduziu seu pequeno barco pela área rasa e entrou na água fria em direção ao mar aberto. A cada vez que segurava o remo lembrava-se do pai. Saber que a empunhadura do remo tinha sido alisada pelas palmas do pai lhe causava a sensação de que ele estava mais próximo.
Isaku manipulou lentamente o remo. Podia avistar os dois caldeirões de ferro na praia. Um deles já havia sido esvaziado, e as mulheres se reuniam ao redor do segundo.
De súbito as mulheres pararam de se mover e olharam para o mar. Isaku virou-se na direção em que elas olhavam, e parou de remar. Um navio imenso, de tamanho suficiente para carregar trezentos ou quatrocentos fardos de arroz, estava contornando o cabo. As velas arriadas balançavam, sem vida. Na parte superior das velas avistavam-se duas faixas negras como insígnias, e tanto os volumes de carga como a tripulação podiam ser vistos no tombadilho. O barco movia-se lentamente para sudoeste.
Isaku olhou para o barco até ele desaparecer atrás da pequena elevação de terra sobre a qual os corvos circulavam.
Não muito depois do período da colheita, era comum verse barcos carregados de fardos de palha e arroz. Alguns singravam as águas a uma distância razoável, outros bem perto da costa.
As velas dos navios que pertenciam aos clãs feudais exibiam o brasão de armas da família em seu centro; as do barco que acabara de passar tinham apenas duas faixas pretas no topo, o que significava tratar-se de um navio mercante. Provavelmente ficara atracado no porto, esperando que a tempestade amainasse para então zarpar. Nos dias de mar bravio, as fogueiras seriam acesas na praia assim que o sol se pusesse,
Isaku ouvira dizer que Sahei também tinha recebido ordens do chefe da aldeia para trabalhar nos caldeirões de sal. Diziam que a família de Sahei havia celebrado a passagem do filho para a maioridade fazendo sopa de espigas de milho miúdo e tomando vinho de milho. Isaku sentira uma ponta de inveja, mas quando pensara nas circunstâncias de sua família, com o pai cumprindo o contrato de servidão, compreendera que não poderia desejar o mesmo tratamento. Ao contrário, sabia muito bem que tinha de aceitar o fato de que, com seu pai distante, eram ele e a mãe quem deviam garantir que seus irmãos mais novos não morressem de fome.
Ocorriam revezamentos no pessoal responsável pelos caldeirões a cada dez dias. Quando chegava a vez de Isaku, ele descia sozinho para a praia no final da tarde e cuidava do fogo até o raiar do dia. Se sentisse sono, tratava de andar e pular ao redor da cabana ou ia até a beira do mar e molhava os pés na água fria, contemplando o firmamento e imaginando se O-fune-sama estaria vindo.
Ocasionalmente passavam barcos ao longo da costa durante o dia. Na maior parte das vezes isso acontecia quando o mar estava calmo, mas podia ocorrer também em dias de tempestade. Sacudidos pelo vento, eles subiam e desciam entre as ondas de forma selvagem, com as velas meio enfunadas sacudindo ao vento enquanto aceleravam ganhando distância. Isaku e os outros habitantes da vila olhavam atentamente cada barco que passava. Cada vez que via um navio, ele concluía que devia haver barcos passando mesmo nas noites de temporal.
Isaku ouviu uma história perturbadora contada por Sahei.
Sahei tinha aparecido certa manhã depois que Isaku terminara sua terceira noite trabalhando nos caldeirões e estava jogando areia sobre as brasas remanescentes.
Como está indo o trabalho com o sal? — perguntou Sahei sentando-se no tronco da cabana.
Isaku ficava incomodado sempre que Sahei agia como se fosse o mais velho dos dois, mas sentia-se também impressionado com a constituição física e presença do outro. Sahei possuía um brilho especial nos olhos, a aparência de um homem que tinha experiência de vida.
Estou me arranjando — disse Isaku, olhando para o outro lado.
Não sente sono e vontade de dormir? — indagou Sahei, estudando a expressão de Isaku.
Isaku imaginou que aquilo significava que ele não era o único que tinha dificuldade para se manter desperto, o que o fez sentir-se um pouco mais tranquilo.
O tempo inteiro — respondeu Isaku, sentando-se no troco ap lado de Sahei e esfregando os olhos.
Então você não está levando o trabalho realmente a sério. Se pensar em como este trabalho é importante, não vai sentir sono.
Um sorriso malicioso curvou os lábios de Sahei. Isaku não disse nada, percebendo que Sahei aproveitaria a menor oportunidade para intimidá-lo. Imaginava que a atitude de desafio de Sahei devia-se ao fato de ele estar contrariado por Isaku ter sido designado antes dele pelo chefe da aldeia para cuidar dos caldeirões de sal.
De qualquer forma, reconhecia que Sahei estava certo. Era bem provável que Sahei conseguisse passar a noite toda completamente desperto, concentrado nos caldeirões e ao mesmo tempo atento ao mar noturno. Isaku piscou fracamente, sentindo-se pequeno.
Você ouviu falar de O-fune-sama e do oficial? — perguntou Sahei, olhando de soslaio para Isaku.
Isaku virou-se para ele. Não tinha ideia de que relação podia haver entre O-fune-sama e um oficial. O pai e a mãe de Isaku raramente falavam sobre os assuntos da vila, mas na família de Sahei o avô e os pais discutiam todo tipo de assunto; assim, era natural que Sahei aprendesse muito. O conhecimento de Sahei era outra razão para Isaku sentir-se um tanto intimidado por ele.
Oficial? — sussurrou ele, desconfiado.
Você não sabe? Quer dizer que começou a trabalhar nos caldeirões de sal sem saber disso? — troçou Sahei.
Isaku ficou irritado com a atitude de Sahei, e também se sentiu inseguro. Nunca tinha visto um oficial, mas certamente sabia que deviam ser temidos; ouvira histórias de como os oficiais prendiam pessoas, amarravam-nas e cortavam-lhes a cabeça ou queimavam-nas vivas em uma cruz ou as empalavam em uma estaca. Isaku sentiu-se arrasado pelos indícios de Sahei de uma conexão entre O-fune-sama e o oficial, e refletiu que sua ignorância o tornava inadequado para trabalhar nos caldeirões de sal.
Então me conte. O que aconteceu com o oficial? — perguntou ele.
Sahei não disse nada. Estava observando as mulheres na praia carregando o sal para a aldeia.
Ouvi meu avô contar a história... — começou Sahei, explicando que tinha acontecido quando O-fune-sama viera em um inverno, um pouco antes de seu avô nascer.
Naquela noite, com o mar muito agitado, um barco rasgara o casco nos recifes depois de ter sido atraído pelos fogos dos caldeirões acesos na praia. Tratava-se de um navio de tamanho considerável e, apesar de a tripulação ter jogado no mar parte da carga, ainda havia muito a bordo.
As pessoas da aldeia ficaram extasiadas, mas depois ficaram chocadas ao ver o brasão na vela — disse Sahei, com ar sombrio.
As velas tinham sido arrancadas, mas a imponente insígnia nelas estampada indicava tratar-se de um navio de um clã. A carga a bordo era propriedade do governo, e saqueá-la sem dúvida induziria a uma dura retaliação. Aterrorizados, os habitantes da vila saíram nos barcos e resgataram o capitão e a tripulação agarrados ao barco danificado. Esperaram primeira coisa que deve fazer é olhar para a insígnia nas velas. Ninguém lhe disse isso? — perguntou Sahei.
Isaku fez que não. Incomodava-o o fato de Kichizo não ter mencionado as velas em suas instruções. Tinha certeza de que, assim como Sahei havia ouvido aquilo do avô e do pai, ele também teria sido avisado para prestar atenção na insígnia nas velas, se seu pai estivesse em casa.
Tem mais alguma coisa que eu deva saber? — perguntou Isaku, agradecido de verdade por Sahei ter lhe contado sobre os brasões nas velas.
Sahei inclinou a cabeça para o lado enquanto olhava para a praia e então, como se tivesse um pensamento repentino, disse:
Meu pai disse que se você vir O-fune-sama, deve correr até a casa do chefe da aldeia e contar a ele. Não vá para casa nem nada assim.
Isaku considerou que isso também era algo para não esquecer. Ele podia certamente imaginar como o choque de ver O-fune-sama poderia fazer com que corresse para casa para contar à mãe.
Na praia, as mulheres trabalhavam duro para retirar o sal dos caldeirões e colocá-lo em tinas de madeira. Nuvens carregadas se moviam no céu, e as ondas lançavam borrifos de água na faixa de areia.
Parece que meu pai também vai para a servidão — murmurou Sahei, olhando para o mar.
Sahei tinha uma irmã que já estava casada, outra irmã mais velha com catorze anos e um irmão dois anos mais novo que ele. Diziam que a família de Sahei havia comemorado na noite em que ele fora instruído para ir trabalhar nos caldeirões, mas talvez eles tivessem tão pouca comida quanto a família de Isaku, afinal. A filha de catorze anos era a seguinte na fila para ser vendida como serva, mas, se ela voltasse depois de cumprir o contrato, estaria velha demais para se casar. Muitos pais, como o de Sahei, decidiam vender a si próprios para poupar as filhas.
Meu avô está chorando lá em casa. Ele disse que venderia a si mesmo se fosse um pouco mais jovem. — Sahei tentou disfarçar a tristeza em seu rosto.
Se O-fune-sama viesse, o pai de Sahei não precisaria vender a si mesmo. Sem dúvida, Sahei estava depositando todas as suas esperanças nos caldeirões, desejando do fundo do coração que O-fune-sama viesse e que seu pai não precisasse deixar a aldeia.
O sono começou a vencer Isaku. Ele se levantou.
Eu vou dormir um pouco — disse para Sahei, que permanecia sentado no tronco. Pegando a tocha de pinheiro apagada, ele foi para casa.
[...]

Akira Yoshimura, in Naufrágios

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