quinta-feira, 20 de abril de 2023

Hollywood | 8


Nessa noite, sentado à máquina de escrever, servi-me dois drinques, bebi os dois, fumei três cigarros, ouvi a Terceira de Brahms no rádio, e então compreendi que precisava de alguma coisa para me ajudar a mergulhar no argumento. Disquei o número de Pinchot. Ele estava.
Alô?
Jon, é Hank.
Hank, como vai?
Ótimo. Escuta, eu aceito os dez.
Mas você disse que um adiantamento pode atrapalhar seu processo de criação.
Mudei de ideia. Não houve processo de criação.
Quer dizer...?
Quer dizer que já tenho a coisa na mente, mas ainda não pus no papel.
Que tem em mente?
É sobre um bêbado. Fica dia e noite sentado num banco de bar.
Acha que alguém vai se interessar por um cara desses?
Escuta, Jon, se eu fosse me preocupar com o que as pessoas se interessam, jamais escreveria coisa alguma.
Tudo bem. Devo levar o cheque pra você?
Não. Basta pôr no correio. Esta noite. Obrigado.
Obrigado a você – disse Jon.
Encaminhei-me para a máquina de escrever e sentei-me. Funcionou imediatamente. Eu bati:

O BÊBADO DE ALMA AZUL E AMARELA

EXTERIOR/INTERIOR-DANDY’S BAR-DIA

A CÂMERA DÁ UMA PANORÂMICA DE CIMA: PASSA LENTAMENTE pela porta do bar e chega ao INTERIOR DO BAR.

UM JOVEM senta-se num tamborete junto ao balcão como se ali estivesse para toda a eternidade. Ergue o copo…

Eu mergulhara na coisa. A gente só precisa da primeira linha, depois tudo vem. Sempre fora assim, só se precisava de alguma coisa para pôr em andamento.
Aquele bar me voltou à memória. Lembrei-me de que a gente sentia cheiro do mictório onde quer que se sentasse. Era preciso um drinque imediato para combater aquilo. E para ir àquele mictório precisava-se de mais uns quatro ou cinco. E as pessoas daquele bar, os corpos, os rostos, as vozes, me voltavam agora. Eu estava lá de novo. Via de novo o chope naqueles copos finos de colarinho, a espuma branca olhando pra gente, borbulhando um pouco. O chope era verde, e após o primeiro gole, cerca de um quarto do copo, a gente inspirava, prendia a respiração, e estava dada a largada. O garçom da manhã era um cara bacana. O diálogo surgia e se fazia por si mesmo. Continuei batendo sem parar...
Então, o telefone tocou. Interurbano. Meu agente e tradutor da Alemanha, Karl Vossner. Ele adorava falar como achava que falavam os americanos incrementados.
Ei, seu filho da puta, como vai indo?
Tudo bem, Karl, ainda cavalgando seu próprio pau?
Ééé, meu teto está coberto de placas de esperma seco.
Bom garoto.
Obrigado, baby. Aprendo tudo que é bom com você. Mas, baby, tenho boas novas. Quer ouvir, seu filho da puta?
Oh, sim, sim, baby!
Bem, além de assobiar Dixie com o cu, traduzi três de seus livros: poemas: Os Piolhos da Danação; contos: Sonhos da Fossa; e seu romance, Incêndio na Estação Central.
Fico te devendo meu ovo esquerdo, Karl.
Legal, mande por via aérea. Mas, baby, tem mais...
Conta tudo pra mim.
Bem, a gente teve uma feira do livro aqui no mês passado, e eu me encontrei com os seis maiores editores da Alemanha. E, deixe-me contar-lhe, eles estão na maior tesão pelo teu corpo.
Meu corpo?
O corpo da sua obra, você sabe. Sacou?
Saquei, baby.
Pus os seis grandes editores num quarto de hotel, servi cerveja, vinho, queijo e castanhas. Depois mandei fazerem lances pelo adiantamento sobre os três livros. Eles apenas sorriram e atacaram a bebida. Botei aqueles babacas na palma de sua mão. Contei umas piadas para relaxar o ambiente, e aí começou o leilão. Bem, pra resumir, Krumph deu o lance maior. Fiz o filho da puta assinar um contrato. Aí, tomamos uma juntos. Todos nós babacas enchemos a cara, especialmente Krumph. Portanto, faturamos essa. Estamos dentro.
Você é do caralho, Karl. Qual é minha parte?
Baby, deve chegar a uns 35 mil paus. Mando a você por telex dentro de uma semana.
Cara, ó, cara, isso é mesmo do caralho!
Melhor do que soprar vidro, seu filho da puta.
E como, baby. Escuta, Karl, já ouviu esta? Qual é a diferença entre o cu de uma galinha e o de um coelho?
Não sei, qual é?
Pergunte ao Joãozinho.
Saquei. É o máximo.
Com isso, encerrou-se a nossa conversa.
Num período de uma hora, eu estava 45 mil dólares mais rico. Trinta anos de fome e rejeição começavam a se mexer.
Voltei à máquina de escrever, me servi uma grande dose, emborquei, servi outra. Peguei três quartos de um charuto rançoso, acendi-o. A Quinta de Shostakovitch tocava no rádio. Bati na máquina:
O garçom, Luke, curva-se sobre o balcão, olhando o rapaz.
LUKE
Escuta, você fica dia e noite aí neste lugar. Só faz se sentar aí e mamar bebida.
RAPAZ
É.
LUKE
Legal, escuta, não quero ofender você nem nada, mas talvez essa merda não leve a parte alguma.
RAPAZ
Tá tudo bem, Luke, não se preocupe comigo. Só sirva.
LUKE
Claro, garoto. Mas não tem outra parte de você mesmo em algum lugar?
RAPAZ
Ei, Luke, já ouviu esta? Qual é a diferença entre o cu de uma galinha e o cu de um coelho?
LUKE
Não me venha com piadas, cara. Quero saber: não tem outra parte de você em algum lugar?
RAPAZ
Bem, merda. Acho que eu estava na sexta série. A professora pediu pra gente que escrevesse alguma coisa sobre a mais emocionante experiência que já tinha tido. E não me refiro à mudança pra Denver.
LUKE
Ééé.
RAPAZ
De qualquer modo, escrevi sobre uma rã que encontrei no jardim, com uma das pernas presa numa cerca de arame. Não podia se soltar. Eu tirei a perna dela da cerca, mas mesmo assim ela não podia se mover.
LUKE (bocejando)
Ééé?
RAPAZ
Por isso eu peguei ela no colo e conversei com ela. Disse que eu também estava preso, que minha vida também tinha ficado presa em alguma coisa. Conversei com ela durante um longo tempo. Finalmente, a rã saltou do meu colo e saiu saltando pela grama afora, e desapareceu num matagal. E eu disse a mim mesmo que ela era a primeira coisa de que eu já sentira saudade em minha vida.
LUKE
É. E daí?
RAPAZ
Bem, eu achei que um dia poderia ser um escritor.
LUKE (curvando-se para a frente)
Garoto, você é maluco!
Decidi que já era muito argumento escrito por uma noite. Fiquei apenas sentado à máquina de escrever, ouvindo a música do rádio. Não me lembro de ter ido para a cama. Mas de manhã estava lá.

Charles Bukowski, in Hollywood

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