Devíamos
encontrar Pinchot no saguão do Beverly Hills Cheshire às duas da
tarde. Isso significava perder um dia de corridas, o que me chateava,
mas Jon insistira. Tinha um cara lá que podia levantar dinheiro para
financiar filmes. O tal cara, Jean-Paul Sanrah, não tinha dinheiro
pessoalmente, mas isso não importava: diziam que ele podia masturbar
uma estátua no parque e o dinheiro emanaria dos órgãos genitais.
Sensacional. Suíte 530. Soava mais como hora de final de expediente.
Também
zanzando pela suíte 530 andava Jon Luc-Modard, diretor de cinema
francês. Pinchot disse que ele mais que gostava do que eu escrevia.
Ótimo.
A
querida Sarah viera junto, pro caso de eu precisar ajuda pra volta
pra casa. Além disso, ela acreditava que na 530 haveria starlets
de umbigos à mostra.
Chegamos
lá, e já encontramos Jon no saguão, sentado numa grande poltrona
de couro, à espreita de aberrações de feira e loucos. Ele nos viu
e se levantou, inchando o peito. Apesar de ser um cara grandão,
sempre gostava de parecer maior do que era.
Trocamos
cumprimentos e o seguimos até o elevador.
– Como
está saindo o argumento?
– Tomando
forma.
– De
que trata?
– Um
bêbado. Montes de bêbados.
A
porta do elevador se abriu. Era bacana ali dentro. Acolchoamento
verde, material fofo verde escuro, e se a gente olhava o verde via
pavões, muitíssimos pavões estampados. Até no teto.
– Classe
– eu disse.
– Demais
– disse Sarah.
Parou
no número 5 e saímos. No tapete, mais verde fofo e mais pavões.
Andávamos sobre pavões. E aí chegamos ao 530. Era uma grande e
pesada porta preta, muito maior que as portas comuns, talvez duas
vezes maior. Parecia mais o portão além de um fosso.
Jon
bateu com uma aldrava de ferro em forma de busto de Balzac.
Nada.
Ele
tornou a bater. Mais alto.
Esperamos.
Então
a porta se abriu lentamente. Abriu-a um homenzinho quase da brancura
de uma folha de papel.
– Henri-Leon!
– disse Jon Pinchot.
– Jon!
– disse Henri-Leon. E depois: – Por favor, entrem, todos vocês!
Entramos.
Era espaçoso. E tudo de tamanho exagerado. Poltronas grandes, mesas
grandes. Paredes extensas. Tetos altos. Mas a gente sentia um
estranho cheiro de mofo. Apesar de toda a vastidão, dava uma
sensação de túmulo.
Fomos
todos apresentados.
O
carinha branco como uma folha de papel era Henri-Leon Sanrah, irmão
de Jean-Paul Sanrah, o arranjador de dinheiro. E lá estava Jon-Luc
Modard. Muito calado, sem dizer nada. A gente tinha a impressão de
que ele posava de gênio. Era pequeno, moreno, parecia ter feito mal
a barba com um barbeador elétrico barato.
– Ah
– disse-me Henri-Leon Sanrah –, você trouxe sua filha! Ouvi
falar de sua filha, Reena!
– Não,
não – eu disse. – Esta aqui é Sarah. É minha esposa.
– Tem
bebidas na mesa. Muito vinho. E comida. Por favor, sirvam-se. Vou
chamar Jean-Paul.
Com
isso, Henri-Leon deixou a sala para o outro aposento, a fim de
procurar Jean-Paul. E com isso Jon-Luc Modard virou-se, dirigiu-se
para um canto escuro e postou-se lá, espreitando-nos. Fomos para a
mesa.
– Abra
o tinto – eu disse a Pinchot. – Abra vários tintos.
Pinchot
entrou em ação com o saca-rolhas. Por toda parte viam-se comidas em
bandejas de prata.
– Não
coma a carne – disse Sarah. – Nem os bolos: têm açúcar demais.
Os
deuses me haviam mandado Sarah para acrescentar dez anos à minha
vida. Continuavam me impelindo para o cutelo, e no último instante
levantavam minha cabeça do cepo. Muito estranhos, esses deuses.
Agora me impeliam a escrever um argumento. Eu não tinha nenhum
apetite para isso. Claro, sabia que se escrevesse seria um bom
argumento. Não um grande argumento. Mas um bom argumento. Eu era um
barato com as palavras.
Pinchot
serviu o vinho. Erguemos nossas taças.
– Umm.
Hummm – disse Sarah.
– Francês
– disse Pinchot.
– Eu
te perdoo – eu disse.
Enquanto
bebíamos, eu podia ver o interior do outro aposento. A porta, estava
encostada. E Henri-Leon tentava erguer um grande corpo que resistia
na grande cama. O corpo recusava-se a levantar-se.
Vi
Henri-Leon estender a mão para um balde e pegar um punhado de cubos
de gelo. Duas mãos cheias. Comprimiu os cubos de ambos os lados do
rosto e na testa. Abriu a camisa e esfregou o gelo no peito.
Mesmo
assim, o corpo não se mexia.
E
então, de repente, sentou-se e berrou:
– SEU
FILHO DA PUTA, QUE FOI QUE VOCÊ FEZ? VOU TER DE ME DESCONGELAR!
– Jean-Paul,
Jean-Paul... você tem... visitas...
– VISITAS?
VISITAS? EU PRECISO TANTO DE VISITAS COMO UM CACHORRO DE PULGAS. VÁ
LÁ FORA E ENTUPA A BOCA DELES DE RÃS! MIJE EM CIMA DELES. QUEIME
ELES!
– Jean-Paul,
Jean-Paul... você tinha um compromisso... com Jon Pinchot e o
argumentista dele...
– Tá
legal... merda... Já saio já... Vou bater uma punheta primeiro...
Não, não, eu espero... alguma coisa por que esperar...
Henri-Leon
saiu e falou com a gente.
– Ele
já vem. Tem estado sob uma pressão terrível. Pensou que a mulher
ia deixar ele. Hoje cedo, chegou o cabograma de Paris: agora ela
mudou de ideia. Foi um golpe mortal, como bois grandes sendo
despedaçados por uma matilha de cachorros doidos.
Não
soubemos o que dizer.
Então
Jean-Paul apareceu cambaleando. Vestia calça branca com largas
listras amarelas. Meias cor-de-rosa. Sem sapatos. O cabelo, todo em
cachinhos castanhos, não precisava de pente. Mas a cabeça castanha
tinha uma péssima aparência. Como se estivesse sendo tingida e não
se decidisse sobre a cor. Ele usava apenas camiseta de baixo e
coçava-se. Coçava-se o tempo todo. Ao contrário do irmão, era
grande e rosado... não, vermelho, um vermelho que chamejava e
morria, morria num instante até o branco do irmão, e depois tornava
a chamejar, mais rubro que nunca.
Fizeram-se
as apresentações.
– Ah,
ah, ah – ele dizia.
Depois:
– Cadê
Modard?
E
olhou em volta e viu Modard no canto.
– Se
escondendo de novo, hum? Porra, eu gostaria que ele fizesse alguma
coisa nova.
De
repente, Jean-Paul voltou-se e correu de volta ao quarto, batendo a
porta.
Modard
emitiu uma tossezinha de seu canto e servimos mais um pouco de vinho.
Tudo realmente excelente. A vida era boa. Só se precisava, no
mundinho deles, ser escritor, ou pintor, ou bailarino, e podia-se
ficar por ali, sentado ou de pé, inspirando e expirando, bebendo
vinho, fingindo saber que diabos acontecia.
Então
Jean-Paul irrompeu de volta pela porta adentro. Achei que tinha
machucado o ombro. Ele parou, apalpou o ombro, deixou-o para lá,
coçou-se e investiu de novo em frente. Pôs-se a rodear a mesa num
passo rápido e constante, berrando:
– TODOS
NÓS TEMOS CU, CERTO? TEM ALGUÉM AQUI NESTA SALA QUE NÃO TENHA CU?
SE TEM, QUE FALE LOGO, ESTÃO OUVINDO?
Jon
Pinchot me enfiou o cotovelo nas costelas.
– Está
vendo, é um gênio, está vendo?
Jean-Paul
rodeava a mesa no mesmo passo rápido, berrando:
– TODOS
NÓS TEMOS ESSA RACHA NAS COSTAS, CERTO? LÁ EMBAIXO, MAIS OU MENOS
NO MEIO, CERTO? A MERDA ESPIRRA POR ALI, CERTO? OU PELO MENOS A GENTE
ESPERA QUE ESPIRRE! É TIRAR A NOSSA MERDA, E ESTAREMOS MORTOS!
PENSEM EM QUANTA MERDA A GENTE CAGA NUMA VIDA INTEIRA! A TERRA, NO
MOMENTO, ABSORVE TODA ELA! MAS OS MARES E OS RIOS ESTÃO AMEAÇANDO
SUAS PRÓPRIAS VIDAS ENGOLINDO NOSSA MERDA! NÓS SOMOS IMUNDOS,
IMUNDOS, IMUNDOS! EU ODEIO TODOS NÓS. TODA VEZ QUE LIMPO A BUNDA,
ODEIO A NÓS TODOS!
Parou,
e pareceu ver Pinchot.
– Você
quer dinheiro, certo?
Pinchot
sorriu.
– Seu
puto, vou te arranjar a porra desse dinheiro – disse Jean-Paul.
– Obrigado.
Acabo de dizer ao Chinaski aqui que você é um gênio.
– Cala
a boca!
Jean-Paul
me olhou então.
– A
melhor coisa em sua literatura é que excita o Institucional. E
também os que precisam ser excitados. E o número deles chega a
muitos milhões. Se conseguir permanecer puro em sua estupidez,
talvez um dia receba um telefonema do inferno.
– Jean-Paul,
esses a gente já recebe.
– É?
Hum? Quem?
– Ex-namoradinhas.
– VOCÊ
ME ENCHE O SACO! – ele gritou, e recomeçou a rodear a mesa,
coçando-se.
Então,
após um grande rodeio, correu para o quarto, bateu a porta e
desapareceu.
– Meu
irmão – disse Henri-Leon – não está se sentindo bem hoje. Está
perturbado.
Eu
estendi o braço e tornei a encher os copos.
Pinchot
curvou-se para mim e sussurrou:
– Esta
suíte, eles estão aqui há dias, comendo e bebendo, e não têm
dinheiro pra pagar a conta...
– É
mesmo?
– É
paga por Frances Ford Lopalla. Ele acha Jean-Paul um gênio...
– Amor
e Gênio são as duas palavras mais exploradas da língua – eu
disse.
– Você
também já começa a dizer bobagem – disse Sarah. – Já começa
a ficar nojento.
Com
isso, Jon-Luc Modard emergiu de seu canto. Aproximou-se de nós.
– Me
deem a porra do vinho – disse.
Eu
servi uma dose grande. Jon-Luc bebeu-a de vez. Servi outra.
– Li
a merda que você escreve – ele disse. – O melhor dela é que é
muito simples. Você sofreu danos no cérebro, não?
– Talvez.
Perdi quase todo o sangue do corpo em 1957. Fiquei no porão de uma
enfermaria de indigentes durante dois dias, até que um interno
louco, com alguma consciência, me descobriu. Acho que perdi talvez
um monte de coisas então, mais mentais que físicas.
– Essa
é uma das histórias favoritas dele – disse Sarah. – Eu amo ele,
mas vocês não fazem ideia de quantas vezes já tive de escutar essa
história.
– Também
amo você, Sarah – eu disse –, mas, de algum modo, contar
histórias repetidas vezes parece tornar elas mais reais do que devem
ter sido.
– Tá
legal, Popsy, me desculpa – disse Sarah.
– Escute
– disse Jon-Luc –, eu queria pedir a você que escrevesse os
diálogos em inglês para as legendas de meu novo filme. Também
quero usar uma cena de um de seus contos, onde um cara é chupado por
baixo da mesa e continua trabalhando, atendendo o telefone e essa
merda toda. Feito?
– Feito.
Depois,
simplesmente aproximamos as cadeiras e continuamos a beber. E Jon-Luc
começou a falar. Falava sem parar, olhando só para mim. A princípio
me senti lisonjeado, mas depois de algum tempo nem tanto assim.
Jon-Luc
continuava falando. Mostrava-se dark e bancava o gênio. Talvez fosse
um gênio. Eu não queria ficar ressentido com isso. Mas já me
haviam empurrado gênios durante todo o tempo de escola: Shakespeare,
Tolstói, Ibsen, G. B. Shaw, Checov, todos esses chatos. E pior, Mark
Twain, Hawthorne, as irmãs Brontë, Dreiser, Sinclair Lewis, tudo
isso jogado em cima da gente como uma laje de cimento, a gente
querendo sair e se mandar, pois todos pareciam pais estúpidos e
densos, insistindo em regras e meios que fariam até os mortos se
encolherem.
Jon-Luc
simplesmente continuava falando. É só o que me lembro, a não ser,
de vez em quando, minha boa Sarah dizendo:
– Hank,
não deve beber tanto assim. Diminua a marcha. Não quero você morto
pela manhã.
Mas
Jon-Luc deitava e rolava.
Eu
não mais entendia o que ele dizia. Via lábios movendo-se. O cara
não era desagradável, apenas se encontrava ali. Precisando de uma
barbeada. E a gente naquele estranho hotel de Beverly Hills, onde
andava sobre pavões. Um mundo mágico. Eu gostava, porque nunca
tinha visto nada assim antes. Sem sentido, perfeito e seguro.
O
vinho jorrava e Jon-Luc não parava.
Caí
em meu patético período de desligamento. Muitas vezes, diante de
seres humanos bons e maus igualmente, meus sentidos simplesmente se
desligam, se cansam, eu desisto. Sou educado. Balanço a cabeça.
Finjo entender, porque não quero magoar ninguém. Este é o único
ponto fraco que tem me levado à maioria das encrencas. Tentando ser
bom com os outros, muitas vezes tenho a alma reduzida a uma espécie
de pasta espiritual.
Deixa
pra lá. Meu cérebro se tranca. Eu escuto. Eu respondo. E eles são
broncos demais para perceber que não estou mais ali.
A
bebida jorrava e Jon-Luc continuava falando. Tenho certeza de que
disse muitas coisas espantosas. Eu me concentrava apenas nas
sobrancelhas dele...
Na
manhã seguinte, em minha casa, em minha cama e de Sarah, o telefone
tocou por volta das onze da manhã.
– Alô.
Era
Pinchot.
– Escuta,
preciso te dizer uma coisa.
– Sim?
– Modard
NÃO FALA NUNCA. Nunca houve NINGUÉM, NINGUÉM QUE FIZESSE ELE FALAR
COMO VOCÊ FEZ! ELE FALOU DURANTE HORAS! TODO MUNDO FICOU PASMO.
– Oh,
legal.
– VOCÊ
NÃO COMPREENDE! ELE NÃO FALA NUNCA! E FALOU HORAS COM VOCÊ!
– Escuta,
Jon, me desculpe, mas estou nauseado, preciso dormir.
– Tudo
bem, mas preciso te dizer mais uma coisa.
– Manda.
– Sobre
Jean-Paul Sanrah.
– Sim?
– Ele
diz que eu tenho de sofrer, não sofri bastante, e quando tiver
sofrido mais ele me arranja o dinheiro.
– Tudo
bem.
– É
um cara estranho, não é? Um verdadeiro gênio.
– É
– eu respondi. – Acho que é.
Desliguei.
Sarah
ainda dormia. Virei para meu lado direito, para a janela, porque às
vezes roncava e queria dirigir o som para longe dela.
Acabava
de cair naquela suave escuridão, naquele último repouso que nos é
dado antes da morte, quando a gata favorita de Sarah, Beauty, deixou
sua almofada especial ao lado da cabeça dela e passou por cima de
meu rosto. Uma garra me arranhou a orelha esquerda, e ela saltou para
o chão, atravessou o quarto e pulou para o parapeito da janela,
aberta de frente para o leste. O rubro sol, erguendo-se, não me
trouxe nenhum pensamento absorvente.
Charles Bukowski, in Hollywood
Nenhum comentário:
Postar um comentário