sábado, 1 de abril de 2023

Hollywood | 7


Devíamos encontrar Pinchot no saguão do Beverly Hills Cheshire às duas da tarde. Isso significava perder um dia de corridas, o que me chateava, mas Jon insistira. Tinha um cara lá que podia levantar dinheiro para financiar filmes. O tal cara, Jean-Paul Sanrah, não tinha dinheiro pessoalmente, mas isso não importava: diziam que ele podia masturbar uma estátua no parque e o dinheiro emanaria dos órgãos genitais. Sensacional. Suíte 530. Soava mais como hora de final de expediente.
Também zanzando pela suíte 530 andava Jon Luc-Modard, diretor de cinema francês. Pinchot disse que ele mais que gostava do que eu escrevia. Ótimo.
A querida Sarah viera junto, pro caso de eu precisar ajuda pra volta pra casa. Além disso, ela acreditava que na 530 haveria starlets de umbigos à mostra.
Chegamos lá, e já encontramos Jon no saguão, sentado numa grande poltrona de couro, à espreita de aberrações de feira e loucos. Ele nos viu e se levantou, inchando o peito. Apesar de ser um cara grandão, sempre gostava de parecer maior do que era.
Trocamos cumprimentos e o seguimos até o elevador.
Como está saindo o argumento?
Tomando forma.
De que trata?
Um bêbado. Montes de bêbados.
A porta do elevador se abriu. Era bacana ali dentro. Acolchoamento verde, material fofo verde escuro, e se a gente olhava o verde via pavões, muitíssimos pavões estampados. Até no teto.
Classe – eu disse.
Demais – disse Sarah.
Parou no número 5 e saímos. No tapete, mais verde fofo e mais pavões. Andávamos sobre pavões. E aí chegamos ao 530. Era uma grande e pesada porta preta, muito maior que as portas comuns, talvez duas vezes maior. Parecia mais o portão além de um fosso.
Jon bateu com uma aldrava de ferro em forma de busto de Balzac.
Nada.
Ele tornou a bater. Mais alto.
Esperamos.
Então a porta se abriu lentamente. Abriu-a um homenzinho quase da brancura de uma folha de papel.
Henri-Leon! – disse Jon Pinchot.
Jon! – disse Henri-Leon. E depois: – Por favor, entrem, todos vocês!
Entramos. Era espaçoso. E tudo de tamanho exagerado. Poltronas grandes, mesas grandes. Paredes extensas. Tetos altos. Mas a gente sentia um estranho cheiro de mofo. Apesar de toda a vastidão, dava uma sensação de túmulo.
Fomos todos apresentados.
O carinha branco como uma folha de papel era Henri-Leon Sanrah, irmão de Jean-Paul Sanrah, o arranjador de dinheiro. E lá estava Jon-Luc Modard. Muito calado, sem dizer nada. A gente tinha a impressão de que ele posava de gênio. Era pequeno, moreno, parecia ter feito mal a barba com um barbeador elétrico barato.
Ah – disse-me Henri-Leon Sanrah –, você trouxe sua filha! Ouvi falar de sua filha, Reena!
Não, não – eu disse. – Esta aqui é Sarah. É minha esposa.
Tem bebidas na mesa. Muito vinho. E comida. Por favor, sirvam-se. Vou chamar Jean-Paul.
Com isso, Henri-Leon deixou a sala para o outro aposento, a fim de procurar Jean-Paul. E com isso Jon-Luc Modard virou-se, dirigiu-se para um canto escuro e postou-se lá, espreitando-nos. Fomos para a mesa.
Abra o tinto – eu disse a Pinchot. – Abra vários tintos.
Pinchot entrou em ação com o saca-rolhas. Por toda parte viam-se comidas em bandejas de prata.
Não coma a carne – disse Sarah. – Nem os bolos: têm açúcar demais.
Os deuses me haviam mandado Sarah para acrescentar dez anos à minha vida. Continuavam me impelindo para o cutelo, e no último instante levantavam minha cabeça do cepo. Muito estranhos, esses deuses. Agora me impeliam a escrever um argumento. Eu não tinha nenhum apetite para isso. Claro, sabia que se escrevesse seria um bom argumento. Não um grande argumento. Mas um bom argumento. Eu era um barato com as palavras.
Pinchot serviu o vinho. Erguemos nossas taças.
Umm. Hummm – disse Sarah.
Francês – disse Pinchot.
Eu te perdoo – eu disse.
Enquanto bebíamos, eu podia ver o interior do outro aposento. A porta, estava encostada. E Henri-Leon tentava erguer um grande corpo que resistia na grande cama. O corpo recusava-se a levantar-se.
Vi Henri-Leon estender a mão para um balde e pegar um punhado de cubos de gelo. Duas mãos cheias. Comprimiu os cubos de ambos os lados do rosto e na testa. Abriu a camisa e esfregou o gelo no peito.
Mesmo assim, o corpo não se mexia.
E então, de repente, sentou-se e berrou:
SEU FILHO DA PUTA, QUE FOI QUE VOCÊ FEZ? VOU TER DE ME DESCONGELAR!
Jean-Paul, Jean-Paul... você tem... visitas...
VISITAS? VISITAS? EU PRECISO TANTO DE VISITAS COMO UM CACHORRO DE PULGAS. VÁ LÁ FORA E ENTUPA A BOCA DELES DE RÃS! MIJE EM CIMA DELES. QUEIME ELES!
Jean-Paul, Jean-Paul... você tinha um compromisso... com Jon Pinchot e o argumentista dele...
Tá legal... merda... Já saio já... Vou bater uma punheta primeiro... Não, não, eu espero... alguma coisa por que esperar...
Henri-Leon saiu e falou com a gente.
Ele já vem. Tem estado sob uma pressão terrível. Pensou que a mulher ia deixar ele. Hoje cedo, chegou o cabograma de Paris: agora ela mudou de ideia. Foi um golpe mortal, como bois grandes sendo despedaçados por uma matilha de cachorros doidos.
Não soubemos o que dizer.
Então Jean-Paul apareceu cambaleando. Vestia calça branca com largas listras amarelas. Meias cor-de-rosa. Sem sapatos. O cabelo, todo em cachinhos castanhos, não precisava de pente. Mas a cabeça castanha tinha uma péssima aparência. Como se estivesse sendo tingida e não se decidisse sobre a cor. Ele usava apenas camiseta de baixo e coçava-se. Coçava-se o tempo todo. Ao contrário do irmão, era grande e rosado... não, vermelho, um vermelho que chamejava e morria, morria num instante até o branco do irmão, e depois tornava a chamejar, mais rubro que nunca.
Fizeram-se as apresentações.
Ah, ah, ah – ele dizia.
Depois:
Cadê Modard?
E olhou em volta e viu Modard no canto.
Se escondendo de novo, hum? Porra, eu gostaria que ele fizesse alguma coisa nova.
De repente, Jean-Paul voltou-se e correu de volta ao quarto, batendo a porta.
Modard emitiu uma tossezinha de seu canto e servimos mais um pouco de vinho. Tudo realmente excelente. A vida era boa. Só se precisava, no mundinho deles, ser escritor, ou pintor, ou bailarino, e podia-se ficar por ali, sentado ou de pé, inspirando e expirando, bebendo vinho, fingindo saber que diabos acontecia.
Então Jean-Paul irrompeu de volta pela porta adentro. Achei que tinha machucado o ombro. Ele parou, apalpou o ombro, deixou-o para lá, coçou-se e investiu de novo em frente. Pôs-se a rodear a mesa num passo rápido e constante, berrando:
TODOS NÓS TEMOS CU, CERTO? TEM ALGUÉM AQUI NESTA SALA QUE NÃO TENHA CU? SE TEM, QUE FALE LOGO, ESTÃO OUVINDO?
Jon Pinchot me enfiou o cotovelo nas costelas.
Está vendo, é um gênio, está vendo?
Jean-Paul rodeava a mesa no mesmo passo rápido, berrando:
TODOS NÓS TEMOS ESSA RACHA NAS COSTAS, CERTO? LÁ EMBAIXO, MAIS OU MENOS NO MEIO, CERTO? A MERDA ESPIRRA POR ALI, CERTO? OU PELO MENOS A GENTE ESPERA QUE ESPIRRE! É TIRAR A NOSSA MERDA, E ESTAREMOS MORTOS! PENSEM EM QUANTA MERDA A GENTE CAGA NUMA VIDA INTEIRA! A TERRA, NO MOMENTO, ABSORVE TODA ELA! MAS OS MARES E OS RIOS ESTÃO AMEAÇANDO SUAS PRÓPRIAS VIDAS ENGOLINDO NOSSA MERDA! NÓS SOMOS IMUNDOS, IMUNDOS, IMUNDOS! EU ODEIO TODOS NÓS. TODA VEZ QUE LIMPO A BUNDA, ODEIO A NÓS TODOS!
Parou, e pareceu ver Pinchot.
Você quer dinheiro, certo?
Pinchot sorriu.
Seu puto, vou te arranjar a porra desse dinheiro – disse Jean-Paul.
Obrigado. Acabo de dizer ao Chinaski aqui que você é um gênio.
Cala a boca!
Jean-Paul me olhou então.
A melhor coisa em sua literatura é que excita o Institucional. E também os que precisam ser excitados. E o número deles chega a muitos milhões. Se conseguir permanecer puro em sua estupidez, talvez um dia receba um telefonema do inferno.
Jean-Paul, esses a gente já recebe.
É? Hum? Quem?
Ex-namoradinhas.
VOCÊ ME ENCHE O SACO! – ele gritou, e recomeçou a rodear a mesa, coçando-se.
Então, após um grande rodeio, correu para o quarto, bateu a porta e desapareceu.
Meu irmão – disse Henri-Leon – não está se sentindo bem hoje. Está perturbado.
Eu estendi o braço e tornei a encher os copos.
Pinchot curvou-se para mim e sussurrou:
Esta suíte, eles estão aqui há dias, comendo e bebendo, e não têm dinheiro pra pagar a conta...
É mesmo?
É paga por Frances Ford Lopalla. Ele acha Jean-Paul um gênio...
Amor e Gênio são as duas palavras mais exploradas da língua – eu disse.
Você também já começa a dizer bobagem – disse Sarah. – Já começa a ficar nojento.
Com isso, Jon-Luc Modard emergiu de seu canto. Aproximou-se de nós.
Me deem a porra do vinho – disse.
Eu servi uma dose grande. Jon-Luc bebeu-a de vez. Servi outra.
Li a merda que você escreve – ele disse. – O melhor dela é que é muito simples. Você sofreu danos no cérebro, não?
Talvez. Perdi quase todo o sangue do corpo em 1957. Fiquei no porão de uma enfermaria de indigentes durante dois dias, até que um interno louco, com alguma consciência, me descobriu. Acho que perdi talvez um monte de coisas então, mais mentais que físicas.
Essa é uma das histórias favoritas dele – disse Sarah. – Eu amo ele, mas vocês não fazem ideia de quantas vezes já tive de escutar essa história.
Também amo você, Sarah – eu disse –, mas, de algum modo, contar histórias repetidas vezes parece tornar elas mais reais do que devem ter sido.
Tá legal, Popsy, me desculpa – disse Sarah.
Escute – disse Jon-Luc –, eu queria pedir a você que escrevesse os diálogos em inglês para as legendas de meu novo filme. Também quero usar uma cena de um de seus contos, onde um cara é chupado por baixo da mesa e continua trabalhando, atendendo o telefone e essa merda toda. Feito?
Feito.
Depois, simplesmente aproximamos as cadeiras e continuamos a beber. E Jon-Luc começou a falar. Falava sem parar, olhando só para mim. A princípio me senti lisonjeado, mas depois de algum tempo nem tanto assim.
Jon-Luc continuava falando. Mostrava-se dark e bancava o gênio. Talvez fosse um gênio. Eu não queria ficar ressentido com isso. Mas já me haviam empurrado gênios durante todo o tempo de escola: Shakespeare, Tolstói, Ibsen, G. B. Shaw, Checov, todos esses chatos. E pior, Mark Twain, Hawthorne, as irmãs Brontë, Dreiser, Sinclair Lewis, tudo isso jogado em cima da gente como uma laje de cimento, a gente querendo sair e se mandar, pois todos pareciam pais estúpidos e densos, insistindo em regras e meios que fariam até os mortos se encolherem.
Jon-Luc simplesmente continuava falando. É só o que me lembro, a não ser, de vez em quando, minha boa Sarah dizendo:
Hank, não deve beber tanto assim. Diminua a marcha. Não quero você morto pela manhã.
Mas Jon-Luc deitava e rolava.
Eu não mais entendia o que ele dizia. Via lábios movendo-se. O cara não era desagradável, apenas se encontrava ali. Precisando de uma barbeada. E a gente naquele estranho hotel de Beverly Hills, onde andava sobre pavões. Um mundo mágico. Eu gostava, porque nunca tinha visto nada assim antes. Sem sentido, perfeito e seguro.
O vinho jorrava e Jon-Luc não parava.
Caí em meu patético período de desligamento. Muitas vezes, diante de seres humanos bons e maus igualmente, meus sentidos simplesmente se desligam, se cansam, eu desisto. Sou educado. Balanço a cabeça. Finjo entender, porque não quero magoar ninguém. Este é o único ponto fraco que tem me levado à maioria das encrencas. Tentando ser bom com os outros, muitas vezes tenho a alma reduzida a uma espécie de pasta espiritual.
Deixa pra lá. Meu cérebro se tranca. Eu escuto. Eu respondo. E eles são broncos demais para perceber que não estou mais ali.
A bebida jorrava e Jon-Luc continuava falando. Tenho certeza de que disse muitas coisas espantosas. Eu me concentrava apenas nas sobrancelhas dele...

Na manhã seguinte, em minha casa, em minha cama e de Sarah, o telefone tocou por volta das onze da manhã.
Alô.
Era Pinchot.
Escuta, preciso te dizer uma coisa.
Sim?
Modard NÃO FALA NUNCA. Nunca houve NINGUÉM, NINGUÉM QUE FIZESSE ELE FALAR COMO VOCÊ FEZ! ELE FALOU DURANTE HORAS! TODO MUNDO FICOU PASMO.
Oh, legal.
VOCÊ NÃO COMPREENDE! ELE NÃO FALA NUNCA! E FALOU HORAS COM VOCÊ!
Escuta, Jon, me desculpe, mas estou nauseado, preciso dormir.
Tudo bem, mas preciso te dizer mais uma coisa.
Manda.
Sobre Jean-Paul Sanrah.
Sim?
Ele diz que eu tenho de sofrer, não sofri bastante, e quando tiver sofrido mais ele me arranja o dinheiro.
Tudo bem.
É um cara estranho, não é? Um verdadeiro gênio.
É – eu respondi. – Acho que é.
Desliguei.
Sarah ainda dormia. Virei para meu lado direito, para a janela, porque às vezes roncava e queria dirigir o som para longe dela.
Acabava de cair naquela suave escuridão, naquele último repouso que nos é dado antes da morte, quando a gata favorita de Sarah, Beauty, deixou sua almofada especial ao lado da cabeça dela e passou por cima de meu rosto. Uma garra me arranhou a orelha esquerda, e ela saltou para o chão, atravessou o quarto e pulou para o parapeito da janela, aberta de frente para o leste. O rubro sol, erguendo-se, não me trouxe nenhum pensamento absorvente.

Charles Bukowski, in Hollywood

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