“Se
algum dia eu partir para a guerra..” Pois aconteceu, meus netinhos,
que um dia eu parti para a guerra. Não, não farei como esses
veteranos de cinema que, sentados em suas cadeiras de rodas, contam
lances terríveis e arrasam o inimigo a bengaladas. Também não vou
afirmar que foi minha presença no teatro de operações que motivou
a ruína de Hitler e Mussolini; deixo isso ao julgamento da
Posteridade, ou, como dizia o nosso finado imperador, à Justiça de
Deus na Voz da História. O zíper da modéstia me fecha a boca.
Contarei
hoje apenas uma aventura minha de retaguarda. Um dia, num bar de
Roma, havia uma elegante senhora loura que tinha cigarro mas não
tinhas fósforos. Um galante correspondente de guerra que estava na
mesa ao lado sacou de seu isqueiro e pediu-lhe licença para acender
seu cigarro. Depois, com muita delicadeza e timidez, disse que havia
chegado aquele dia em Roma, e não conhecia ninguém; queria saber se
ela não levaria a mal sua ousadia de convidá-la para sua mesa.
Assim eu (que outro não era, como já adivinhastes, o galante
correspondente) travei relações com uma espiã, pois é evidente
que mulher loura com cigarro e sem fósforo só pode ser espiã. Ela
falava um italiano perfeito, o que também faz parte de seu ofício;
mas apesar disso perguntei-lhe se era italiana. Disse que era e não
era. Bonita resposta, pensei eu, reparando em seus olhos de um azul
cinzento, e brinquei: “não vai me dizer que é da Abissínia!”
Ela riu; era de Trieste; confessei-lhe que eu era de Cachoeiro de
Itapemirim, ela repetiu o nome de minha cidade com tanta graça que
me apaixonei.
Dois
ou três dias nos encontramos, até que certa noite eu a convidei a
jantar no hotel em que eu estava alojado, com os demais
correspondentes de guerra — um pequeno e simpático hotel de Via
Sistina, perto da Igreja de Trinita del Monti. Estávamos ainda no
aperitivo — se lembra, Squeff, daquele rum com limone? — quando
ela deixou a mesa um momento para ir ao toalete. Imediatamente
aproximou-se de mim um major inglês de grandes bigodes e muito
polidamente me pediu que o procurasse mais tarde em seu apartamento
no mesmo hotel. Adiantou que trabalhava na contra-espionagem, e que a
senhora que estava em minha companhia era suspeita; mas que eu não a
deixasse perceber que fora informado disso.
No
dia seguinte o major me esclareceu: a minha amiga era tcheca de raça
alemã, filha de um industrial ligado aos nazistas.
Prometi
ao major transmitir-lhe qualquer pergunta ou pedido suspeito que ela
me fizesse; mas eu devia voltar logo para a linha de frente e a minha
encantadora mata-harizinha não havia meio de me tentar extorquir o
segredo da futura bomba atômica nem o esquema da próxima ofensiva
aliada.
No
dia seguinte almoçamos num restaurante e tomamos três garrafas de
tinto; depois, num bar fiquei a alisar ternamente a sua mão fina, de
veias azuis. Mão de espiã — pensava eu —, e senti uma ternura
especial, uma fraqueza dentro de mim. Aquele dia mesmo eu ia voltar
para a frente, para aquele mundo desagradável de homens, lama e
explosões; senti que ia ter saudades dela, e lhe disse isso.
Mão
de espiã... Mas além, ou antes de ser uma espiã, ela era também
mulher; não tinha nascido espiã; teria tido algum prazer verdadeiro
em minha companhia? Foi então que ela me pediu um favor: que através
de minha correspondência eu mandasse um recado para um seu tio, que
morava em São Paulo, dizendo que ela estava em Roma e pedindo que
lhe enviasse, em meu nome, através de meu jornal e do Banco do
Brasil, uma determinada importância em dinheiro. Escreveu o nome do
tio em um papelzinho e me entregou.
Beijamo-nos
na Piazza di Spagna; subi a escadaria lentamente.
Se
eu entregasse aquele papelzinho ao major inglês, um homem seria
preso em São Paulo; pensei em nossa polícia, nos seus “hábeis
interrogatórios”; e se o homem fosse inocente?
Na
portaria do hotel liguei para o P. R. O. pedindo um jipe que me
levasse ao aeroporto; depois, num impulso, pedi à telefonista que me
desse o apartamento do major inglês. Não atendia; mas o porteiro me
informou que ele estava no hotel, provavelmente no salão de chá que
ficava no terceiro andar. Tomei o elevador, mas então resolvi ir até
o meu apartamento arrumar a rriala. Tirei o papelzinho do bolso e
fiquei um instante na janela a olhar a paisagem de Roma lá embaixo.
O vento ainda era frio, naquele começo de primavera. Fiz uma bolinha
com o papelucho e o joguei fora; acompanhei-o com os olhos até que o
vi cair num toldo, e depois na rua. E acabou-se a história.
Rubem Braga, in A traição das elegantes
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