segunda-feira, 3 de abril de 2023

Cosmogonia | M

Até que esta semana não posso queixar-me da sorte. Veio um diretor de cinema francês filmar nos arredores de San Juan e, sem que eu nada pedisse, vi-me contratado como extra para uma das cenas mais importantes do filme, aquela que justamente dá o título à película e lhe serve de clímax: L’Explosion. Faço parte da explosão, a princípio de corpo inteiro, depois sem uma perna.
Eu me achava chorando à mesa de um bar, tendo às mãos uma revista licenciosa, repleta de fotos lúbricas, quando de mim se aproximou sorrateiramente, sob pretexto de pedir-me fósforos, o próprio diretor do filme, um tal Christian Jaque, que, ao ver-me debulhado em lágrimas, me perguntou se eu havia perdido algum membro importante da minha família e se necessitava de algum adiantamento para o enterro. Fiz-lhe ver que o meu mal era apenas dor de dentes (deslavada mentira) e aproveitei a oportunidade para mostrar-lhe uma fotografia de um sensualismo feroz que justamente estava vendo naquele instante e que pareceu tê-lo impressionado vivamente. Dois minutos depois, e sem que se tivesse tocado em questão de dinheiro, eu já estava contratado para participar da tal cena superexplosiva, a vinte quilômetros mais ou menos do ponto em que nos encontrávamos. A única exigência que lhe fiz foi a de que o meu cipreste também participasse do filme, nem que fosse de relance apenas, o que ele, após fitar-me meio de lado, aceitou prontamente. E eu lhe mostrei então outra foto escabrosa da revista, para selar o nosso acordo.
A cena em que eu aparecia durava uma fração de minuto apenas, mas era importantíssima. No meio da estrada, com o meu cipreste ao fundo, durante a passagem de uma procissão de que eu participava com o ar mais contrito deste mundo — com uma vela acesa numa das mãos e um rosário imenso na outra — ocorria a explosão de uma mina deixada pelo inimigo na última guerra, e tudo ia lindamente pelos ares, num espetáculo pirotécnico digno dos maiores encômios. (Pena que o filme não fosse em cores, para se ter uma ideia exata do sangue derramado e das postas de carne espalhadas num raio de duzentos metros). Eu, após o estrondo formidável, captado em som perspecta-estereofônico, via-me obrigado a recolher uma das pernas às costas e a simular a mais horripilante das dores, dando vazão, para gáudio do diretor e de seus assistentes, a um dos berros mais bem dados em toda a história do cinema universal, com a câmara funcionando a dois palmos de meu ensanguentado nariz. Foi tão real e convincente o meu grito de pavor, e tão autênticas as lágrimas que me desciam dos olhos e me inundavam a camisa e as calças, indo desaguar sobre um pseudodefunto ao meu lado, que, finda a filmagem, todos vieram correndo saudar-me pelo meu êxito espetacular, inclusive o citado pseudodefunto, que era um dos astros principais do filme. Ali mesmo recebi a proposta de fazer catorze filmes na França e dois na Inglaterra — com ou sem ciprestes, à minha escolha — o que todavia recusei sem entrar em maiores detalhes, mesmo porque eu continuava chorando e os soluços não me permitiam uma conversa muito longa.
A cena calamitosa valeu-me a bagatela de trinta mil francos (sem contar a vela e o terço, que me foram dados como lembrança) e um retraio de corpo inteiro, já com as duas pernas, tirado ao lado do diretor e de seus trezentos assistentes, e que foi publicado no dia seguinte em todos os jornais da cidade, com louvores unânimes à minha imprevista atuação. O rosário e a vela doei-os à Santa Casa para serem distribuídos a algum defunto pobre, e os trinta mil francos estou acabando de gastá-los ao meu modo, isto é, como se fossem trezentos mil ou três milhões, dado que sempre vivi aujourlejour e não me interessa levar nem um cêntimo para o inferno.
De tudo isso o que me desagrada é a popularidade que de súbito se fez em torno do meu nome — eu, até ontem um desconhecido nesta desconhecida cidade — e que me obriga a conceder entrevista cada vez que me surpreendem chorando pelos cantos, com se estivesse posando não apenas para um filme mas para a própria posteridade. A glória, que já tantas vezes me bafejou com seu bafo nauseabundo, e que já parecia haver-me esquecido nestes últimos tempos, atirou-me de novo e sem piedade à fúria dos caçadores de escândalo (mesmo que esse escândalo seja apenas uma manifestação inusitada de arte, como no caso) expondo-me ao ridículo de ter que responder a perguntas ridículas e a aceitar sem um revide os maiores elogios à queima-roupa, como se eu fosse um quadro de Picasso. Houve um imbecil, de uma coluna especializada em cinema, que me comparou a um cometa fulgurante que só passa pela terra de mil em mil anos — o que, apesar de conter certo exagero, deixa-me pelo menos a esperança de só vir a relê-lo daqui a mil anos, quando certamente ele já não estará escrevendo para o mesmo jornal. Outro, citando Platão e os druidas, e com a mesma ponta de exagero do seu colega, achou de considerar-me um caso de verdadeiro Milagre (a maiúscula é dele) dentro da 7ª Arte, propondo ao Senado da República que faça lavrar em ata um voto de Louvor (ainda é dele a maiúscula) à minha importantíssima contribuição à arte dramática universal, num papel que outro qualquer teria deixado passar despercebido, apesar de todo o barulho causado pela explosão. E, no instante mesmo em que escrevo isto, uma senhora aparentemente decente e que usa uma verruga na ponta do nariz pede-me humildemente um autógrafo para o seu álbum de autógrafos célebres, tendo sem dúvida me reconhecido pelas centenas de fotografias minhas que os jornais estamparam esta semana, sobretudo chorando.
A esses beócios todos de nada adiantaria eu lhes dizer que o meu pranto nada tem de cinematográfico, sendo como é puramente humano e de todo alheio à minha vontade — e que, se a passagem explosiva de L’Explosion vai ficar realmente antológica (como, sem a menor sombra de dúvida, há de ficar) culpa ou mérito nenhum disso me caberá, como tampouco caberá ao diretor ou ao cameraman que me surpreenderam em meu paroxismo de angústia, em meio a mortos e feridos. Para todos os efeitos sou o próprio Zanconi redivivo, queira-o ou não, e nem eu mesmo conseguiria convencê-los do contrário, como de resto ocorre a todos os falsos profetas e criadores de mitos, sejam artísticos ou simplesmente religiosos.
E agora vou chorar mais um pouco.

Walter Campos de Carvalho, in A Lua Vem da Ásia

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