Até
que esta semana não posso queixar-me da sorte. Veio um diretor de
cinema francês filmar nos arredores de San Juan e, sem que eu nada
pedisse, vi-me contratado como extra para uma das cenas mais
importantes do filme, aquela que justamente dá o título à película
e lhe serve de clímax: L’Explosion. Faço parte da explosão, a
princípio de corpo inteiro, depois sem uma perna.
Eu
me achava chorando à mesa de um bar, tendo às mãos uma revista
licenciosa, repleta de fotos lúbricas, quando de mim se aproximou
sorrateiramente, sob pretexto de pedir-me fósforos, o próprio
diretor do filme, um tal Christian Jaque, que, ao ver-me debulhado em
lágrimas, me perguntou se eu havia perdido algum membro importante
da minha família e se necessitava de algum adiantamento para o
enterro. Fiz-lhe ver que o meu mal era apenas dor de dentes
(deslavada mentira) e aproveitei a oportunidade para mostrar-lhe uma
fotografia de um sensualismo feroz que justamente estava vendo
naquele instante e que pareceu tê-lo impressionado vivamente. Dois
minutos depois, e sem que se tivesse tocado em questão de dinheiro,
eu já estava contratado para participar da tal cena superexplosiva,
a vinte quilômetros mais ou menos do ponto em que nos encontrávamos.
A única exigência que lhe fiz foi a de que o meu cipreste também
participasse do filme, nem que fosse de relance apenas, o que ele,
após fitar-me meio de lado, aceitou prontamente. E eu lhe mostrei
então outra foto escabrosa da revista, para selar o nosso acordo.
A
cena em que eu aparecia durava uma fração de minuto apenas, mas era
importantíssima. No meio da estrada, com o meu cipreste ao fundo,
durante a passagem de uma procissão de que eu participava com o ar
mais contrito deste mundo — com uma vela acesa numa das mãos e um
rosário imenso na outra — ocorria a explosão de uma mina deixada
pelo inimigo na última guerra, e tudo ia lindamente pelos ares, num
espetáculo pirotécnico digno dos maiores encômios. (Pena que o
filme não fosse em cores, para se ter uma ideia exata do sangue
derramado e das postas de carne espalhadas num raio de duzentos
metros). Eu, após o estrondo formidável, captado em som
perspecta-estereofônico, via-me obrigado a recolher uma das pernas
às costas e a simular a mais horripilante das dores, dando vazão,
para gáudio do diretor e de seus assistentes, a um dos berros mais
bem dados em toda a história do cinema universal, com a câmara
funcionando a dois palmos de meu ensanguentado nariz. Foi tão real e
convincente o meu grito de pavor, e tão autênticas as lágrimas que
me desciam dos olhos e me inundavam a camisa e as calças, indo
desaguar sobre um pseudodefunto ao meu lado, que, finda a filmagem,
todos vieram correndo saudar-me pelo meu êxito espetacular,
inclusive o citado pseudodefunto, que era um dos astros principais do
filme. Ali mesmo recebi a proposta de fazer catorze filmes na França
e dois na Inglaterra — com ou sem ciprestes, à minha escolha — o
que todavia recusei sem entrar em maiores detalhes, mesmo porque eu
continuava chorando e os soluços não me permitiam uma conversa
muito longa.
A
cena calamitosa valeu-me a bagatela de trinta mil francos (sem contar
a vela e o terço, que me foram dados como lembrança) e um retraio
de corpo inteiro, já com as duas pernas, tirado ao lado do diretor e
de seus trezentos assistentes, e que foi publicado no dia seguinte em
todos os jornais da cidade, com louvores unânimes à minha
imprevista atuação. O rosário e a vela doei-os à Santa Casa para
serem distribuídos a algum defunto pobre, e os trinta mil francos
estou acabando de gastá-los ao meu modo, isto é, como se fossem
trezentos mil ou três milhões, dado que sempre vivi aujourlejour e
não me interessa levar nem um cêntimo para o inferno.
De
tudo isso o que me desagrada é a popularidade que de súbito se fez
em torno do meu nome — eu, até ontem um desconhecido nesta
desconhecida cidade — e que me obriga a conceder entrevista cada
vez que me surpreendem chorando pelos cantos, com se estivesse
posando não apenas para um filme mas para a própria posteridade. A
glória, que já tantas vezes me bafejou com seu bafo nauseabundo, e
que já parecia haver-me esquecido nestes últimos tempos, atirou-me
de novo e sem piedade à fúria dos caçadores de escândalo (mesmo
que esse escândalo seja apenas uma manifestação inusitada de arte,
como no caso) expondo-me ao ridículo de ter que responder a
perguntas ridículas e a aceitar sem um revide os maiores elogios à
queima-roupa, como se eu fosse um quadro de Picasso. Houve um
imbecil, de uma coluna especializada em cinema, que me comparou a um
cometa fulgurante que só passa pela terra de mil em mil anos — o
que, apesar de conter certo exagero, deixa-me pelo menos a esperança
de só vir a relê-lo daqui a mil anos, quando certamente ele já não
estará escrevendo para o mesmo jornal. Outro, citando Platão e os
druidas, e com a mesma ponta de exagero do seu colega, achou de
considerar-me um caso de verdadeiro Milagre (a maiúscula é dele)
dentro da 7ª Arte, propondo ao Senado da República que faça lavrar
em ata um voto de Louvor (ainda é dele a maiúscula) à minha
importantíssima contribuição à arte dramática universal, num
papel que outro qualquer teria deixado passar despercebido, apesar de
todo o barulho causado pela explosão. E, no instante mesmo em que
escrevo isto, uma senhora aparentemente decente e que usa uma verruga
na ponta do nariz pede-me humildemente um autógrafo para o seu álbum
de autógrafos célebres, tendo sem dúvida me reconhecido pelas
centenas de fotografias minhas que os jornais estamparam esta semana,
sobretudo chorando.
A
esses beócios todos de nada adiantaria eu lhes dizer que o meu
pranto nada tem de cinematográfico, sendo como é puramente humano e
de todo alheio à minha vontade — e que, se a passagem explosiva de
L’Explosion vai ficar realmente antológica (como, sem a menor
sombra de dúvida, há de ficar) culpa ou mérito nenhum disso me
caberá, como tampouco caberá ao diretor ou ao cameraman que me
surpreenderam em meu paroxismo de angústia, em meio a mortos e
feridos. Para todos os efeitos sou o próprio Zanconi redivivo,
queira-o ou não, e nem eu mesmo conseguiria convencê-los do
contrário, como de resto ocorre a todos os falsos profetas e
criadores de mitos, sejam artísticos ou simplesmente religiosos.
E
agora vou chorar mais um pouco.
Walter Campos de Carvalho, in A Lua Vem da Ásia
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