Quando
eu tinha vinte e poucos anos, me relacionei brevemente com um homem
que conheci na balada black do Bar do 3. Eu me sentia muito
confortável lá, onde a maioria das pessoas era negra, onde eu podia
dançar sem muitas preocupações, onde todos me achavam bonita.
Ainda assim, ia embora sozinha porque não queria viver a
autenticidade presumida, performances malfeitas de masculinidade.
Havia um código pré-acordado de que os caras podiam ficar com
várias mulheres e que as mulheres deveriam brigar entre si. Foram
várias as vezes que presenciei brigas entre mulheres enquanto o
disputado ficava se gabando, ou que vi colegas minhas chorando no
baile durante o intervalo, quando tocava músicas românticas. Havia
certa naturalização desse comportamento masculino e nós, mulheres,
éramos alçadas a um lugar de competidoras. Eu cresci vendo minha
mãe se machucar com as traições do meu pai, então sempre
considerei absurdo me colocar em um lugar de agente da dor de outras
mulheres. Não era uma questão moral necessariamente, mas de trauma.
Porém,
em alguns momentos, saí com algumas pessoas. Eu evitava os galãs do
baile, que nunca me atraíram por ter uma beleza padrão. Inclusive,
sentia até certo prazer em esnobar os caras que julgavam que passar
horas na academia o fariam ser desejados por todas. Num dos bailes,
fiquei com um rapaz considerado feio pelas minhas amigas — ou seja,
mais baixo do que eu, magricelo e sem muito estilo. Ele era legal,
divertido, não virava para olhar o corpo de toda mulher bonita que
passava e era delicado no trato. Minhas amigas me zoaram quando saí
de mãos dadas com ele do baile. Eu era a “diferentona” e não me
importava.
Mas
o rapaz que parecia legal se mostrou possessivo, queria saber onde
ficava minha casa, falou de morarmos juntos. Obviamente, me assustei.
Como nós só havíamos ficado uma única vez, tratei de dispensá-lo.
Vó, imagine: um cara que eu mal conhecia dizendo que tinha um
terreno em São Vicente e me convidando para viver com ele, no
segundo encontro! E ele achou que eu fosse me derreter de amores
diante do convite, sendo que só senti pavor.
E
o pior: ele descobriu onde eu morava. Precisei pedir a ajuda do Denis
para afugentá-lo quando um dia ele simplesmente apareceu na porta de
casa, depois de eu não atender mais as ligações dele. Nos bailes
seguintes, precisei me cercar de amigas para que ele não se
aproximasse de mim. Quando ele tentava conversar comigo, alguma amiga
pedia pra ele se afastar. Passei a voltar do baile pra casa sempre
acompanhada. Não que ele fosse ameaçador, mas era insistente.
Queria ficar comigo mesmo eu dizendo que não. Após um tempo, ele
parou de me perseguir e logo apareceu com outra moça no baile. Ali
entendi que, independentemente de ser galã ou não, os homens
possuem uma autoestima de dar inveja.
Depois
desse episódio, apesar da minha resistência em sair com os
“disputados do baile”, aceitei ficar com um deles. O cara cursava
engenharia numa faculdade pública, vinha de uma família negra e
parecia ser interessante. As primeiras vezes em que saímos foram
bacanas, até que ele passou a aparecer na minha casa sem avisar,
queria saber com que roupa eu iria no baile e controlar o comprimento
das minhas saias.
De
tanto amar o baile, vó, os organizadores me convidaram para ser
hostess, então eu ficava na porta até duas da manhã e depois
entrava para curtir a festa, o que significava dançar até a última
música, a ponto dos homens fazerem fila para dançar comigo. Somente
dançávamos: minha fama me precedia, e nenhum deles se atrevia a ir
além.
Minhas
amigas e eu nos arrumávamos para chamar a atenção no baile e
sermos as mais bonitas da noite. E era algo de que homem algum
participava — exceto quando tínhamos dinheiro para ir ao
cabeleireiro afro badalado da cidade —, por isso passaram a me
incomodar as visitas repentinas do meu “ficante” de três meses.
Ele era daqueles homens que falam de você como se fosse algo etéreo,
uma coisa que existe apenas porque eles lhe dão forma.
Havia
algo nele que me incomodava. Eu escutava jazz porque apreciava o som,
blues porque as letras e melodias me comoviam. Meu amor pela música
era — e é — necessário. Já o amor dele pela música era
contingente. Ele ouvia jazz e blues com certo pedantismo, explicando
o que cada canção queria dizer — mesmo que ninguém estivesse
interessado —, ou o nome do baixista que fazia um solo de exatos
dois minutos e dez segundos. E não haveria problema se ele dissesse
essas coisas com brilho nos olhos, mas ele dizia para se sentir
superior ao gosto mundano. “Eu não ouço essas músicas de hoje”,
“Eu tenho bom gosto, pra ficar comigo tem que ter bom gosto”,
dizia com petulância. Por mais que gostássemos das mesmas músicas,
eu não me importava com o que minhas amigas ouviam, era só
frequentar lugares diferentes e pronto. Ele não amava nada com
verdade, tudo parecia encenação, então não sei por que julguei
que ele poderia me amar.
Um
dia, ele apareceu na minha casa e pediu pra ver qual roupa eu usaria
naquela noite. Ao ver que seria um macacão verde florescente e justo
— sou vaidosa como minha mãe —, ele me sugeriu rever o look,
pois eu chamaria muita atenção e ele precisaria me proteger.
Respondi que poderia me defender sozinha e que havia comprado aquele
macacão pra chamar a atenção mesmo. Ele ficou contrariado, mas se
calou. Fomos ao baile e, como de costume, fui pra pista de dança,
apesar de algumas amigas me aconselharem a ficar com ele. Algumas
delas, quando estavam acompanhadas de um homem, simplesmente deixavam
de dançar no baile e ficavam ao lado deles como forma de “respeito”.
Eu me recusava a deixar de fazer algo que eu gostava para satisfazer
o ego masculino.
Alguns
rapazes me tiraram pra dançar, e eu estava curtindo minha noite do
jeito que mais amava. Da pista de dança, em um intervalo do dj,
olhei para o meu acompanhante que estava de cara feia e braços
cruzados. Fui chamá-lo pra dançar e ele se recusou, dizendo que
“mulher dele deveria ficar com ele”. Eu disse que seguiria
dançando e foi exatamente o que fiz quando o dj voltou. Em dado
momento, amigos dele sugeriram que ele fosse me tirar da pista, pois
eu o estava desrespeitando. Incentivado por eles, meu acompanhante
foi até mim e me puxou pelos braços, exigindo que eu parasse e o
obedecesse.
Um
dos lemas que aprendi com minha mãe foi: “Se você chama a atenção
de alguém em público, a resposta não pode ser no privado”. Se
ele tivesse esperado o baile acabar para conversar e expor seus
incômodos, eu o teria escutado, mesmo discordando. Porém, naquele
momento eu soltei meus braços e com o dedo em riste disse que ele
não mandava em mim, que eu faria o que eu bem entendesse.
Envergonhado, ele voltou para onde estava e ficou de cara feia até o
baile acabar. Eu simplesmente segui dançando. Quando a festa acabou,
incentivada por minhas amigas, fui falar com ele.
Pagamos
a comanda e ele me acompanhou até em casa. Fomos discutindo pelo
caminho. Num determinado momento, cheio de coragem e com o peito
estufado, ele parou e me disse: “Djamila, você precisa entender
que o que é meu é meu”. Vó, eu fui tomada por uma raiva
ancestral, descontrolada. No meio da rua, ali mesmo, aos berros,
questionei: “Quando foi que te deram a minha escritura, seu
babaca?”. Gritei tanto que as pessoas que moravam nos prédios por
onde passávamos saíram na janela para ver o que estava acontecendo
— algumas até gritavam de volta, mandando eu parar. Meu
acompanhante ficou assustado, sem saber o que fazer, tentando me
acalmar, mas tudo o que ele dizia só servia para me deixar com mais
raiva. Até que ele desabafou: “Te falei uma das coisas mais
românticas e é assim que você me trata? Muitas mulheres desejariam
que eu falasse isso a elas, muitas mulheres desejam ser minhas”.
Vó,
a senhora não imagina a vontade que eu tive de agredi-lo naquela
hora. Só não o fiz porque sabia que teria problemas, ele era muito
maior do que eu. Assim que chegamos na minha casa, eu entrei sem
dizer tchau, não sem antes ele tentar me impedir de abrir o portão
do prédio. “Eu sou sujeito homem!”, ele dizia. Consegui me
desvencilhar e entrei no prédio. À época, a expressão “sujeito
homem” me incomodou, mas eu não soube explicar o porquê, só
consegui responder “eu sou sujeito mulher”. Mas conforme fui
estudando, percebi a razão do incômodo. Para ele, eu era o objeto
mulher e, por mais que ele desconhecesse as teorias sobre a
construção do sujeito, ele sabia quando invocar um lugar de
superioridade. Impressionante que até no senso comum eles vencem.
Ele ficou no meu pé por mais um tempo, chegou uma vez a me
acompanhar ao hospital quando meu pai estava internado, pra depois
jogar na minha cara que tinha feito aquilo por mim e, mesmo assim, eu
não voltava pra ele. Ficou me escrevendo, mas em vez de se declarar
com sinceridade e simplicidade, ficou me enchendo com seus falsos
poemas e frases piegas sem sentido.
Após
alguma insistência, ele finalmente se conformou. Não tinha mais
volta, quando o respeito chega a um nível tão baixo, não há mais
para onde voltar.
Djamila Ribeiro, in Cartas para minha avó
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