quarta-feira, 19 de abril de 2023

Cartas para minha avó

Quando eu tinha vinte e poucos anos, me relacionei brevemente com um homem que conheci na balada black do Bar do 3. Eu me sentia muito confortável lá, onde a maioria das pessoas era negra, onde eu podia dançar sem muitas preocupações, onde todos me achavam bonita. Ainda assim, ia embora sozinha porque não queria viver a autenticidade presumida, performances malfeitas de masculinidade. Havia um código pré-acordado de que os caras podiam ficar com várias mulheres e que as mulheres deveriam brigar entre si. Foram várias as vezes que presenciei brigas entre mulheres enquanto o disputado ficava se gabando, ou que vi colegas minhas chorando no baile durante o intervalo, quando tocava músicas românticas. Havia certa naturalização desse comportamento masculino e nós, mulheres, éramos alçadas a um lugar de competidoras. Eu cresci vendo minha mãe se machucar com as traições do meu pai, então sempre considerei absurdo me colocar em um lugar de agente da dor de outras mulheres. Não era uma questão moral necessariamente, mas de trauma.
Porém, em alguns momentos, saí com algumas pessoas. Eu evitava os galãs do baile, que nunca me atraíram por ter uma beleza padrão. Inclusive, sentia até certo prazer em esnobar os caras que julgavam que passar horas na academia o fariam ser desejados por todas. Num dos bailes, fiquei com um rapaz considerado feio pelas minhas amigas — ou seja, mais baixo do que eu, magricelo e sem muito estilo. Ele era legal, divertido, não virava para olhar o corpo de toda mulher bonita que passava e era delicado no trato. Minhas amigas me zoaram quando saí de mãos dadas com ele do baile. Eu era a “diferentona” e não me importava.
Mas o rapaz que parecia legal se mostrou possessivo, queria saber onde ficava minha casa, falou de morarmos juntos. Obviamente, me assustei. Como nós só havíamos ficado uma única vez, tratei de dispensá-lo. Vó, imagine: um cara que eu mal conhecia dizendo que tinha um terreno em São Vicente e me convidando para viver com ele, no segundo encontro! E ele achou que eu fosse me derreter de amores diante do convite, sendo que só senti pavor.
E o pior: ele descobriu onde eu morava. Precisei pedir a ajuda do Denis para afugentá-lo quando um dia ele simplesmente apareceu na porta de casa, depois de eu não atender mais as ligações dele. Nos bailes seguintes, precisei me cercar de amigas para que ele não se aproximasse de mim. Quando ele tentava conversar comigo, alguma amiga pedia pra ele se afastar. Passei a voltar do baile pra casa sempre acompanhada. Não que ele fosse ameaçador, mas era insistente. Queria ficar comigo mesmo eu dizendo que não. Após um tempo, ele parou de me perseguir e logo apareceu com outra moça no baile. Ali entendi que, independentemente de ser galã ou não, os homens possuem uma autoestima de dar inveja.
Depois desse episódio, apesar da minha resistência em sair com os “disputados do baile”, aceitei ficar com um deles. O cara cursava engenharia numa faculdade pública, vinha de uma família negra e parecia ser interessante. As primeiras vezes em que saímos foram bacanas, até que ele passou a aparecer na minha casa sem avisar, queria saber com que roupa eu iria no baile e controlar o comprimento das minhas saias.
De tanto amar o baile, vó, os organizadores me convidaram para ser hostess, então eu ficava na porta até duas da manhã e depois entrava para curtir a festa, o que significava dançar até a última música, a ponto dos homens fazerem fila para dançar comigo. Somente dançávamos: minha fama me precedia, e nenhum deles se atrevia a ir além.
Minhas amigas e eu nos arrumávamos para chamar a atenção no baile e sermos as mais bonitas da noite. E era algo de que homem algum participava — exceto quando tínhamos dinheiro para ir ao cabeleireiro afro badalado da cidade —, por isso passaram a me incomodar as visitas repentinas do meu “ficante” de três meses. Ele era daqueles homens que falam de você como se fosse algo etéreo, uma coisa que existe apenas porque eles lhe dão forma.
Havia algo nele que me incomodava. Eu escutava jazz porque apreciava o som, blues porque as letras e melodias me comoviam. Meu amor pela música era — e é — necessário. Já o amor dele pela música era contingente. Ele ouvia jazz e blues com certo pedantismo, explicando o que cada canção queria dizer — mesmo que ninguém estivesse interessado —, ou o nome do baixista que fazia um solo de exatos dois minutos e dez segundos. E não haveria problema se ele dissesse essas coisas com brilho nos olhos, mas ele dizia para se sentir superior ao gosto mundano. “Eu não ouço essas músicas de hoje”, “Eu tenho bom gosto, pra ficar comigo tem que ter bom gosto”, dizia com petulância. Por mais que gostássemos das mesmas músicas, eu não me importava com o que minhas amigas ouviam, era só frequentar lugares diferentes e pronto. Ele não amava nada com verdade, tudo parecia encenação, então não sei por que julguei que ele poderia me amar.
Um dia, ele apareceu na minha casa e pediu pra ver qual roupa eu usaria naquela noite. Ao ver que seria um macacão verde florescente e justo — sou vaidosa como minha mãe —, ele me sugeriu rever o look, pois eu chamaria muita atenção e ele precisaria me proteger. Respondi que poderia me defender sozinha e que havia comprado aquele macacão pra chamar a atenção mesmo. Ele ficou contrariado, mas se calou. Fomos ao baile e, como de costume, fui pra pista de dança, apesar de algumas amigas me aconselharem a ficar com ele. Algumas delas, quando estavam acompanhadas de um homem, simplesmente deixavam de dançar no baile e ficavam ao lado deles como forma de “respeito”. Eu me recusava a deixar de fazer algo que eu gostava para satisfazer o ego masculino.
Alguns rapazes me tiraram pra dançar, e eu estava curtindo minha noite do jeito que mais amava. Da pista de dança, em um intervalo do dj, olhei para o meu acompanhante que estava de cara feia e braços cruzados. Fui chamá-lo pra dançar e ele se recusou, dizendo que “mulher dele deveria ficar com ele”. Eu disse que seguiria dançando e foi exatamente o que fiz quando o dj voltou. Em dado momento, amigos dele sugeriram que ele fosse me tirar da pista, pois eu o estava desrespeitando. Incentivado por eles, meu acompanhante foi até mim e me puxou pelos braços, exigindo que eu parasse e o obedecesse.
Um dos lemas que aprendi com minha mãe foi: “Se você chama a atenção de alguém em público, a resposta não pode ser no privado”. Se ele tivesse esperado o baile acabar para conversar e expor seus incômodos, eu o teria escutado, mesmo discordando. Porém, naquele momento eu soltei meus braços e com o dedo em riste disse que ele não mandava em mim, que eu faria o que eu bem entendesse. Envergonhado, ele voltou para onde estava e ficou de cara feia até o baile acabar. Eu simplesmente segui dançando. Quando a festa acabou, incentivada por minhas amigas, fui falar com ele.
Pagamos a comanda e ele me acompanhou até em casa. Fomos discutindo pelo caminho. Num determinado momento, cheio de coragem e com o peito estufado, ele parou e me disse: “Djamila, você precisa entender que o que é meu é meu”. Vó, eu fui tomada por uma raiva ancestral, descontrolada. No meio da rua, ali mesmo, aos berros, questionei: “Quando foi que te deram a minha escritura, seu babaca?”. Gritei tanto que as pessoas que moravam nos prédios por onde passávamos saíram na janela para ver o que estava acontecendo — algumas até gritavam de volta, mandando eu parar. Meu acompanhante ficou assustado, sem saber o que fazer, tentando me acalmar, mas tudo o que ele dizia só servia para me deixar com mais raiva. Até que ele desabafou: “Te falei uma das coisas mais românticas e é assim que você me trata? Muitas mulheres desejariam que eu falasse isso a elas, muitas mulheres desejam ser minhas”.
Vó, a senhora não imagina a vontade que eu tive de agredi-lo naquela hora. Só não o fiz porque sabia que teria problemas, ele era muito maior do que eu. Assim que chegamos na minha casa, eu entrei sem dizer tchau, não sem antes ele tentar me impedir de abrir o portão do prédio. “Eu sou sujeito homem!”, ele dizia. Consegui me desvencilhar e entrei no prédio. À época, a expressão “sujeito homem” me incomodou, mas eu não soube explicar o porquê, só consegui responder “eu sou sujeito mulher”. Mas conforme fui estudando, percebi a razão do incômodo. Para ele, eu era o objeto mulher e, por mais que ele desconhecesse as teorias sobre a construção do sujeito, ele sabia quando invocar um lugar de superioridade. Impressionante que até no senso comum eles vencem. Ele ficou no meu pé por mais um tempo, chegou uma vez a me acompanhar ao hospital quando meu pai estava internado, pra depois jogar na minha cara que tinha feito aquilo por mim e, mesmo assim, eu não voltava pra ele. Ficou me escrevendo, mas em vez de se declarar com sinceridade e simplicidade, ficou me enchendo com seus falsos poemas e frases piegas sem sentido.
Após alguma insistência, ele finalmente se conformou. Não tinha mais volta, quando o respeito chega a um nível tão baixo, não há mais para onde voltar.

Djamila Ribeiro, in Cartas para minha avó

Nenhum comentário:

Postar um comentário