Vó,
tive muitos amores platônicos na adolescência. Se alguma amiga
branca se interessava pelo mesmo rapaz que eu, já tirava meu time de
campo, pois sabia que não teria chance. E eu tinha várias amigas
brancas, por morar em um bairro classe média. Dara e eu éramos tão
legais e divertidas quanto elas, mas, diferentemente das garotas
brancas da vizinhança, não tínhamos namorado. Éramos invisíveis.
As
garotas do bairro sabiam disso. Elas não nos enxergavam como bonitas
ou nos viam como alguém que poderia ser um obstáculo para as
pretensões amorosas delas. Se algum garoto mexia com a gente na rua,
sempre era para elas; se elas estavam a fim de um garoto, era a gente
que intermediava. Se eu achasse um garoto bonito, branco ou negro,
elas já diziam: “Mas ele não vai querer ficar com você, né?”.
Antes
da balada black, dois eventos amenizaram essa realidade. O primeiro
aconteceu quando eu tinha quinze anos: uma família havia se mudado
recentemente para o prédio onde morávamos e logo eu e meus irmãos
nos afeiçoamos aos filhos, dois rapazes. Brincávamos juntos na rua,
organizávamos bailes da vassoura, ensaiávamos as coreografias das
bandas do momento pra dançar nas festas. Logo eu me apaixonei pelo
mais velho deles. Contra todas as minhas expectativas, ele também se
interessou por mim. Uma amiga loira que morava perto do nosso prédio
também estava a fim dele e não se conformava de não ser
correspondida. Ela ficava tanto atrás dele que um dia ele sugeriu
que a gente inventasse que estava namorando pra ela desistir.
Aceitei. Mesmo assim, ela não desistiu.
Uma
vez, nós duas estávamos brincando em frente ao meu prédio e, de
repente, ela disse que precisava ir embora. Eu achei esquisito, havia
alguma coisa errada. Fui pra casa mas, passado um tempo, decidi ir
até o apartamento em que esse rapaz morava, dois andares acima do
meu. Ao chegar lá, encontrei minha amiga na porta conversando com
ele. Fiquei com tanta raiva, até ficamos sem nos falar por um tempo.
Quando perguntei o porquê de ela fazer aquilo, ouvi um “Todos os
meninos da rua querem ficar comigo, não é possível que ele não
queira”. E realmente eles acabaram ficando depois de um tempo, para
minha tristeza. Não era, afinal, nenhuma surpresa. Eu já estava
acostumada com aquele tipo de situação.
Eu
poderia ter namorado esse rapaz, vó. Minha mãe tinha medo de que
isso acontecesse, aliás, por ele ser branco. Ela temia que a família
dele me tratasse mal, me desrespeitasse. “Filha, tenho medo de que
na primeira oportunidade ele te ofenda, te chame de macaca. Vou
precisar quebrar a cara dele se isso acontecer”, ela me disse uma
vez. À época, eu não entendia direito a preocupação dela, não
me ocorria que um garoto que gostasse de mim pudesse me desrespeitar
daquela maneira, mas hoje entendo o que minha mãe pensava. Não que
ela fosse contra relacionamentos interraciais, alguns dos meus tios
eram casados com mulheres brancas, mas para uma mãe preta, machucada
pelo racismo, não me permitir namorar com o garoto branco foi uma
das tantas formas que ela encontrou de me proteger.
O
segundo evento ocorreu logo em seguida. Você já tinha falecido e
foi a primeira vez que fui a Piracicaba sem ficar na sua casa. Foram
dias importantes, que criaram boas e novas memórias, para além da
casa em São Dimas. Foi como ser acolhida mais uma vez, agora na
adolescência.
Naquela
viagem, Dara e eu ficamos uns dias na casa do tio Lino e sua esposa
Vilma, sendo muito mimadas. Eles nos trataram como filhas. Lembro das
idas à locadora para alugarmos os filmes que queríamos, dos doces
que Vilma preparava, dos passeios de carro. Foi incrível. Os outros
tios até brigaram para que fôssemos à casa de todos. Um sentido de
continuidade do amor que você plantou.
A
maior parte do tempo, porém, ficamos na casa do tio Edmilson, o
Dema. Ele havia casado com uma mulher muito legal, a tia Valéria, e
à época morava com a família dela, muito afetuosa e generosa. A
casa ficava numa região simples da cidade, e logo fizemos amizade
com algumas garotas das redondezas. Era Carnaval e havia um grupo de
jovens na vizinhança que se organizava para pular numa quadra no
centro. Todos se arrumavam, as garotas trançavam os cabelos umas das
outras e dos garotos, tudo dava a impressão de um grande
acontecimento. Para minha surpresa, os garotos do bairro se
interessaram por mim e por minha irmã, as garotas foram acolhedoras
e nós quisemos sair com o grupo. Liguei para a minha mãe pedindo
autorização, e sem surpresa alguma ela negou. Pedi pra tia Valéria
interceder, o que fez com que dona Erani ficasse ainda mais brava —
você sabe, ela detestava não ter a autoridade dela respeitada.
Vou
te contar, vó: nós fomos mesmo assim, com nossa nova tia
acobertando. E não nos arrependemos, foi um evento lindo. Estávamos
acostumadas com uma vizinhança branca, que não se via como classe
trabalhadora, de mentalidade provinciana e, de repente, encontrávamos
numa rua de terra, com casas populares, muito rap, samba e,
sobretudo, rapazes nos disputando pela primeira vez.
Minha
irmã acabou ficando com um garoto, já eu fui logo me interessar por
um que estava interessado em outra, e assim foi. Mas a experiência
de estar lá, de irmos em grupo para o ponto de ônibus, nos
arrumarmos como se fosse para um grande evento, me deu uma sensação
de pertença. Minha mãe não gostava que a gente andasse em bando,
controlava nossos passos, então aquelas semanas foram libertadoras,
apresentaram uma nova realidade.
De
volta a Santos, eu me sentia diferente, mudada. Havia descoberto que
a vida era muito mais do que o apartamento entre os canais 4 e 5, que
havia pessoas acolhedoras por aí, e, acima de tudo, que eu era, sim,
bonita.
Djamila Ribeiro, in Cartas para minha avó
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