terça-feira, 11 de abril de 2023

Cartas para minha avó

Vó, tive muitos amores platônicos na adolescência. Se alguma amiga branca se interessava pelo mesmo rapaz que eu, já tirava meu time de campo, pois sabia que não teria chance. E eu tinha várias amigas brancas, por morar em um bairro classe média. Dara e eu éramos tão legais e divertidas quanto elas, mas, diferentemente das garotas brancas da vizinhança, não tínhamos namorado. Éramos invisíveis.
As garotas do bairro sabiam disso. Elas não nos enxergavam como bonitas ou nos viam como alguém que poderia ser um obstáculo para as pretensões amorosas delas. Se algum garoto mexia com a gente na rua, sempre era para elas; se elas estavam a fim de um garoto, era a gente que intermediava. Se eu achasse um garoto bonito, branco ou negro, elas já diziam: “Mas ele não vai querer ficar com você, né?”.
Antes da balada black, dois eventos amenizaram essa realidade. O primeiro aconteceu quando eu tinha quinze anos: uma família havia se mudado recentemente para o prédio onde morávamos e logo eu e meus irmãos nos afeiçoamos aos filhos, dois rapazes. Brincávamos juntos na rua, organizávamos bailes da vassoura, ensaiávamos as coreografias das bandas do momento pra dançar nas festas. Logo eu me apaixonei pelo mais velho deles. Contra todas as minhas expectativas, ele também se interessou por mim. Uma amiga loira que morava perto do nosso prédio também estava a fim dele e não se conformava de não ser correspondida. Ela ficava tanto atrás dele que um dia ele sugeriu que a gente inventasse que estava namorando pra ela desistir. Aceitei. Mesmo assim, ela não desistiu.
Uma vez, nós duas estávamos brincando em frente ao meu prédio e, de repente, ela disse que precisava ir embora. Eu achei esquisito, havia alguma coisa errada. Fui pra casa mas, passado um tempo, decidi ir até o apartamento em que esse rapaz morava, dois andares acima do meu. Ao chegar lá, encontrei minha amiga na porta conversando com ele. Fiquei com tanta raiva, até ficamos sem nos falar por um tempo. Quando perguntei o porquê de ela fazer aquilo, ouvi um “Todos os meninos da rua querem ficar comigo, não é possível que ele não queira”. E realmente eles acabaram ficando depois de um tempo, para minha tristeza. Não era, afinal, nenhuma surpresa. Eu já estava acostumada com aquele tipo de situação.
Eu poderia ter namorado esse rapaz, vó. Minha mãe tinha medo de que isso acontecesse, aliás, por ele ser branco. Ela temia que a família dele me tratasse mal, me desrespeitasse. “Filha, tenho medo de que na primeira oportunidade ele te ofenda, te chame de macaca. Vou precisar quebrar a cara dele se isso acontecer”, ela me disse uma vez. À época, eu não entendia direito a preocupação dela, não me ocorria que um garoto que gostasse de mim pudesse me desrespeitar daquela maneira, mas hoje entendo o que minha mãe pensava. Não que ela fosse contra relacionamentos interraciais, alguns dos meus tios eram casados com mulheres brancas, mas para uma mãe preta, machucada pelo racismo, não me permitir namorar com o garoto branco foi uma das tantas formas que ela encontrou de me proteger.
O segundo evento ocorreu logo em seguida. Você já tinha falecido e foi a primeira vez que fui a Piracicaba sem ficar na sua casa. Foram dias importantes, que criaram boas e novas memórias, para além da casa em São Dimas. Foi como ser acolhida mais uma vez, agora na adolescência.
Naquela viagem, Dara e eu ficamos uns dias na casa do tio Lino e sua esposa Vilma, sendo muito mimadas. Eles nos trataram como filhas. Lembro das idas à locadora para alugarmos os filmes que queríamos, dos doces que Vilma preparava, dos passeios de carro. Foi incrível. Os outros tios até brigaram para que fôssemos à casa de todos. Um sentido de continuidade do amor que você plantou.
A maior parte do tempo, porém, ficamos na casa do tio Edmilson, o Dema. Ele havia casado com uma mulher muito legal, a tia Valéria, e à época morava com a família dela, muito afetuosa e generosa. A casa ficava numa região simples da cidade, e logo fizemos amizade com algumas garotas das redondezas. Era Carnaval e havia um grupo de jovens na vizinhança que se organizava para pular numa quadra no centro. Todos se arrumavam, as garotas trançavam os cabelos umas das outras e dos garotos, tudo dava a impressão de um grande acontecimento. Para minha surpresa, os garotos do bairro se interessaram por mim e por minha irmã, as garotas foram acolhedoras e nós quisemos sair com o grupo. Liguei para a minha mãe pedindo autorização, e sem surpresa alguma ela negou. Pedi pra tia Valéria interceder, o que fez com que dona Erani ficasse ainda mais brava — você sabe, ela detestava não ter a autoridade dela respeitada.
Vou te contar, vó: nós fomos mesmo assim, com nossa nova tia acobertando. E não nos arrependemos, foi um evento lindo. Estávamos acostumadas com uma vizinhança branca, que não se via como classe trabalhadora, de mentalidade provinciana e, de repente, encontrávamos numa rua de terra, com casas populares, muito rap, samba e, sobretudo, rapazes nos disputando pela primeira vez.
Minha irmã acabou ficando com um garoto, já eu fui logo me interessar por um que estava interessado em outra, e assim foi. Mas a experiência de estar lá, de irmos em grupo para o ponto de ônibus, nos arrumarmos como se fosse para um grande evento, me deu uma sensação de pertença. Minha mãe não gostava que a gente andasse em bando, controlava nossos passos, então aquelas semanas foram libertadoras, apresentaram uma nova realidade.
De volta a Santos, eu me sentia diferente, mudada. Havia descoberto que a vida era muito mais do que o apartamento entre os canais 4 e 5, que havia pessoas acolhedoras por aí, e, acima de tudo, que eu era, sim, bonita.

Djamila Ribeiro, in Cartas para minha avó 

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