A
estação das chuvas começou. Boa parte do dinheiro era gasta em
bebidas, e por isso meus sapatos tinham furos nas solas e minha capa
de chuva estava velha e rota. Qualquer chuvarada mais forte e eu me
molhava a valer — minhas cuecas e meias ficavam ensopadas. Os
carteiros regulares ligavam para dizer que estavam doentes,
telefonavam alegando doenças em todos os postos da cidade, de modo
que havia trabalho o dia inteiro no Posto de Oakford, a bem da
verdade em todos os postos. Até os substitutos ligavam doentes. Não
liguei com essa desculpa porque estava muito cansado para pensar numa
coisa dessas. Naquela manhã em particular, fui escalado para o Posto
Wently. Caía uma dessas tempestades que duram cinco dias, pingos que
pareciam uma cortina contínua de água que afoga a cidade, que afoga
tudo, os bueiros incapazes de escoar a água com a devida rapidez, a
água subindo pelos meios-fios e, em algumas partes, alcançando os
gramados e as casas.
Mandaram-me
para o Posto Wently.
— Disseram
que precisavam de um bom homem — disse o Stone, quando eu já
enfiava o pé em uma tromba d’água.
A
porta se fechou. Se a lata velha pegasse, e pegou, bem, eu seguiria
para Wently. De todo modo, isso não faria diferença: se o carro não
pegasse, eles o metiam num ônibus. Meus pés já estavam úmidos.
O
supervisor de Wently me colocou na frente de uma caixa. Já estava
totalmente lotada e comecei a socar mais cartas nela com a ajuda de
outro substituto. Nunca tinha visto uma caixa daquele jeito! Devia
ser algum tipo de piada de mau gosto. Contei doze pacotes embrulhados
na caixa. Aquela caixa devia cobrir metade da cidade. Eu não sabia
ainda que a rota era composta só por colinas íngremes. Quem quer
que a tenha idealizado é um louco.
Conseguimos
levantar o malote e levá-lo para fora e, assim que eu estava para
sair, o superior se aproximou e disse:
— Não
posso ajudá-lo de nenhuma maneira com isso.
— Beleza
— eu disse.
Beleza
uma ova. Mais tarde, descobri que ele era o melhor amigo de Jonstone.
A
rota começava no posto. Na primeira das doze rondas, pisei em cheio
numa poça d’água e comecei a descer a colina. Era a parte pobre
da cidade — pequenas casas e pátios com caixas de correspondência
cheias de aranhas, caixas presas apenas com um prego, velhas senhoras
dentro das casas enrolando cigarros e mascando fumo, cantando com os
lábios fechados para canários sem tirar os olhos de você, um
idiota perdido no meio da chuva.
Quando
as cuecas se molham elas não param de deslizar, deslizam bunda
abaixo, um aro molhado suspenso apenas pelo fundilho das calças. A
chuva borrava os endereços em algumas cartas; um cigarro não se
mantinha aceso. Você tinha de ficar metendo a mão no malote atrás
das revistas. Era só a primeira ronda e eu já estava cansado. Meus
sapatos estavam empapados de lama e davam a impressão de serem
botas. A cada momento, eu pisava em algo escorregadio e quase caía.
Uma
porta se abriu e uma velha fez a pergunta ouvida cem vezes ao dia:
— O
que houve com o carteiro de sempre?
— Dona,
POR FAVOR, como é que eu vou saber? Diabos, como posso saber uma
coisa dessas? Estou aqui, e ele está em algum outro lugar!
— Ah,
você é um tipo esquentadinho!
— Esquentadinho?
— Sim.
Eu
ri e pus uma carta inchada pela chuva na sua mão, depois segui em
frente. Quem sabe colina acima a coisa esteja melhor, pensei.
Uma
outra tia velha, querendo ser bacana, me perguntou:
— Você
não gostaria de entrar, tomar uma xícara de chá e se secar um
pouco?
— Dona,
a senhora não percebe que não temos tempo sequer para puxar as
cuecas?
— Puxar
as cuecas?
— SIM,
PUXAR NOSSAS CUECAS! — berrei para ela e sumi dentro da cortina
d’água.
Terminei
a primeira ronda. Levou cerca de uma hora. Onze rondas mais, isto é,
onze horas mais. Impossível, pensei. Devem ter deixado a pior rota
de todas para mim já de saída.
Colina
acima era pior porque era preciso carregar ainda o próprio peso.
O
meio-dia chegou e passou. Sem almoço. Estava na quarta ou quinta
ronda. Mesmo num dia seco aquela rota seria impossível. No meu
estado, era tão impossível que não conseguia sequer pensar sobre
isso.
A
certa altura eu estava tão molhado que pensei que iria me afogar.
Descobri uma varanda mais ou menos protegida e fiquei ali, tentando
dar um jeito de acender um cigarro. Tinha dado umas três tragadas
quando ouvi a voz de uma velhinha às minhas costas:
— Carteiro!
Carteiro!
— Sim,
dona? — perguntei.
— AS
SUAS CARTAS ESTÃO SE MOLHANDO!
Olhei
para o malote e, de fato, eu tinha deixado a aba de couro aberta.
Algumas gotas tinham caído de um buraco no teto da varanda.
Me
afastei. Basta, pensei, só um idiota suportaria o que estou
passando. Vou encontrar um telefone e dizer a eles que venham pegar
as cartas e que enfiem esse emprego no rabo. Jonstone venceu.
No
momento em que decidi largar tudo, me senti bem melhor. Através da
chuva avistei um prédio ao pé da colina que parecia ter um
telefone. Eu estava a meio caminho do topo. Quando desci, vi que se
tratava de um pequeno café. Um aquecedor estava ligado lá dentro.
Bem, caralho, pensei, posso ao menos me secar. Tirei minha capa de
chuva e meu quepe, larguei o malote no chão e pedi uma xícara de
café.
Era
um café muito escuro. Requentado. O pior café que eu já tomara,
mas ao menos estava quente. Bebi três xícaras e fiquei sentado por
uma hora, até estar completamente seco. Então olhei para fora:
havia parado de chover! Saí e subi a colina, comecei a entregar mais
uma vez as cartas. Segui meu próprio ritmo e terminei a rota. Lá
pela décima segunda ronda, eu caminhava à luz do crepúsculo.
Quando cheguei ao posto já era noite.
A
entrada dos carteiros estava fechada.
Bati
na porta de ferro.
Um
funcionário pequeno e com um ar irritado apareceu e abriu.
— Mas
que diabo, por que demorou tanto? — gritou para mim.
Fui
até a caixa e larguei no chão o malote úmido, cheio de devoluções,
cartas com endereços errados, cartas recolhidas. Tirei a minha chave
e joguei contra a caixa. Você era obrigado a assinar ao devolver a
chave. Não me dei ao trabalho. O outro ainda estava parado ali.
Olhei
para ele.
— Garoto,
se você me disser mais uma palavra, se você der um espirro que
seja, que Deus me ajude, pois acabo com sua raça!
O
garoto não disse nada. Dei o fora dali.
Na
manhã seguinte, fiquei esperando que Jonstone se virasse e me
dissesse algo. Ele agia como se nada tivesse acontecido. A chuva
tinha parado e nenhum carteiro regular alegou estar doente. O Stone
mandou três substitutos para casa, sem pagamento, um deles era eu.
Quase senti por ele uma espécie de amor.
Tomei
meu rumo e me grudei no rabo quente de Betty.
Charles Bukowski, in Cartas na Rua
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