domingo, 9 de abril de 2023

Capítulo dezoito | O lume da água

Olhamos a estrela como olhamos o fogo.
Sabendo que são uma mesma substância, apenas diferindo na distância em que a si mesmos se consomem.
Tia Admirança –

Estou na margem do rio, contemplando as mulheres que se banham. Respeitam a tradição: antes de entrar na água, cada uma delas pede permissão ao rio: – Dá licença? Que silêncio lhes responde, autorizando que se afundem na corrente? Não é apenas a língua local que eu desconheço. São esses outros idiomas que me faltam para entender Luar-do-Chão. Para falar com minha mãe, que vai fluindo, ondeada, até ser foz.
As mulheres me olham, provocantes. Ou provoquentes, como diria o Avô. Parecem não ter pudor. Os seios desnudados não são, para elas, uma intimidade com merecimento de vergonha.
Não se estão apenas divertindo. Estão cumprindo a cerimônia que o nganga ordenou para que a terra voltasse a abrir. A maldição que tombara sobre a nossa Ilha sô podia ser vencida por esforço de todos. Em todo lado, os ilhéus enviavam sinais de entendimento com os deuses.
À volta da cintura as mulheres trazem atado um cordel benzido. Só nesta margem lhes é permitido banhar. No outro lado, foi onde se deu a tragédia. O rio, nessa orla, ficou interditado para todo o sempre.
O sucedido infortúnio surge já distante, apagado pelos risos das mulheres que se vão peixando na corrente. Vou amolecendo naquela mornança quando um clamor nos sobressalta a todos. As mulheres saem correndo, algumas esquecidas de se cobrir com as capulanas. É meu Tio Abstinêncio que surge, correndo em pânico. Engole umas lufadas e grita: – Venham) aconteceu uma coisa grave! Há um incêndio no cais! Corremos pelos trilhos, embalados pela inclinação da colina. Junto ao cais, a multidão se agita, em efervescência. Uma embarcação carregada de troncos estava ardendo no cais. É o barco de passageiros em que viajei. Está todo ateado, dir-se-ia constituído só por chamas.
Há feridos?
Só o Tio Ultímio.
Ultímio? Ele estava no barco?
Queimou-se quando tentava apagar o fogo.
É grave?
Não se sabia. Tinha sido levado para casa, estava sendo tratado por Amílcar Mascarenha. Meu pai me fez sinal que esperasse enquanto ele ia examinar a ocorrência.
Quem sabe ainda se carecesse de ajudas? Fico sentado no cais a assistir ao reflexo das chamas na água, num silencioso desdobrar de luz. Abstinêncio se aproxima e se acomoda junto a mim. O suspiro lhe vem quase do chão: – Foi bem feito! Essa era a sua certeza: o incêndio era punição, vingança divina. Estavam desmatando tudo, até a floresta sagrada tinham abatido. A Ilha estava quase dessombreada. O administrador tinha mão no negócio, junto com o Tio Ultímio e outra gente graúda da capital. Usavam o barco público para privados carregamentos de madeiras e deixavam passageiros por transportar sempre que lhes aprouvesse. Às vezes, até doentes ficavam por evacuar. No tempo colonial Mariavilhosa não tinha tido acesso ao barco por motivos de sua raça. Hoje excluíam-se passageiros por outras razões.
Mas, Tio, a companhia de navegação não é do Estado?
E então? Abstinêncio tinha sido advertido por reclamar separação de negócios privados e actividades públicas. Foi despedido quando exigiu maior clareza nos dinheiros.
Aproveito a ausência de meu pai para esclarecer as denúncias que ainda há pouco escutara.
Tio, me diga uma coisa: meu pai falou de um caso de drogas e do assassinato deJuca Sabão. Ele disse que isso explica tudo o que aqui está passando.
Seu pai está delirando. Esses gajos que mataram Juca foram presos. Foram julgados e estão cumprindo penas.
Mas não é verdade que desapareceu uma pistola da esquadra?
Isso é verdade. Mas o que é que isso prova? Os culpados confessaram, eram tipos cadastrados.
Mas, então, porquê meu pai mantém essa versão?
Ele sempre desejou dar uso à arma. Aquilo lhe ficou das guerras. Seu pai acha que tudo se resolve assim.
Fulano Malta achava que o mundo estava tão torto que para um homem ser bom não podia ser justo. Abstinêncio tinha outra explicação, sem enredo sinuoso: o que se passava agora era outra coisa.
Vê aquelas chamas espelhadas no rio? Acha que aquilo é apenas um barco que está a arder? Tudo está sendo queimado pela cobiça dos novos-ricos. É isso que sucede em sua opinião. A Ilha é um barco que funciona às avessas. Flutua porque tem peso. Tem gente feliz, tem árvore, tem bicho e chão parideiro. Quando tudo isso lhe for tirado, a Ilha se afunda.
A Ilha é o barco, nós somos o rio.
Somos interrompidos por meu pai que regressa do cais, trazendo uma mão cheia de cinzas que recolheu dos restos do incêndio. Vai espalhar esses pós sobre a terra, ainda penso. Mas não. Fulano esfrega as palmas das mãos nos meus cabelos. Resisto. O que era aquilo? Por que me untava a cabeça de cinza? Meu pai diz que é para meu bem, para afastar maus espíritos.
Depois, ainda ficamos olhando o cais. O incêndio está agora completamente esmorecido. Como tudo se consome num pestanejar, penso em voz alta. Fulano Malta parece adivinhar-me o pensamento: – O que perdemos acontece depressa.
Não sei se estou de acordo – argumenta meu tio.
Veja um filho. Sem darmos conta, um filho nos sai de casa.
Decidimos voltar para Nyumba-Kaya. Ultímio está cheio de dores. Rodeamos a cama, seguindo os movimentos do médico. Abstinência decide quebrar o silêncio. Dirige-se a meu pai: – Sabe, Fulano? Assim, em redor desta cama e com Ultímio sofrendo, sabe o que me faz lembrar?
É verdade, mano. Eu estava sentindo o mesmo.
Ultímio não se recorda. Era ele ainda criança quando sofreu um acidente grave e a família passou a noite em claro, vigiando o seu estado.
Você esteve mesmo na berma da morte.
Ultímio tombara sobre ferros pontudos enquanto pescava na plataforma, junto ao cais. Quase se esvaíra, tanto o sangue que perdera antes de ser recolhido.
Sabe quem o salvou? Ultímio não tem ideia. Abstinência martela palavra a palavra, num lento versar: – Foi um branco, meu irmão.
Quem o salvou foi um indivíduo de raça branca, um anónimo que passava pela Ilha. Foi ele quem lhe deu sangue, sangue em quantidade para reabastecer o inteiro corpo, como se fosse um segundo nascimento.
Metade do seu sangue é de branco.
Ultímio nega, ajuntados os pés, cruzados os de dos. Primeiro ri-se. Depois, se faz sério e pede a Abstinência que confirme: – Você, o mais velho, comprova? – É verdade, sim, Ultímio.
Não acredito. Isso me dizem agora, que estou traumartirizado.
E fica rezingando até que Fulano, Abstinência e Amílcar se retiram. Combinámos que eu permaneceria no quarto até amanhecer, tomando conta do tio. Me enruguei todo numa cadeira, olhando o luar lá fora. Nunca na cidade a lua ganha tais curvas e requebros. Já me amolento, meio emborcado em sono, quando as palavras de Ultímio me surpreendem: – Gostava que você fosse meu filho, Mariano.
Até as pernas me tombaram. Nunca esperei que tal frase pudesse provir daquele meu tio. Não me acode palavra nem pensamento. É o Tio que regressa às falas: – Não sou pessoa feliz, sobrinho. Meus filhos, eu nem sei onde eles foram buscar aquelas maneiras.. .
Eles não costumam vir aqui, pois não?
Meus filhos não podem voltar a Luar-do-Chão. Nunca mais podem voltar.
Não podem, porquê?
Lembra Juca Sabão? Pois há quem pense que foram meus filhos que o balearam.
Silêncio. Apenas se escuta a ventoinha no tecto.
E o Tio o que é que pensa?
O que eu penso? Eu sou pai, Mariano. Um pai que gostaria de ter um filho como você.
De novo, o rodopiar da ventoinha é o único e solitário ruído. Parece que o próprio tempo vai girando de encontro ao tecto. Como se o futuro ali se enroscasse, sem saída. Às tantas, Ultímio se queixa, dolorido. Faço-lhe chegar um copo de água mais os prescritos remédios. Ele se acalma, gemendo progressivamente mais baixo. Aos poucos, ambos adormecemos.
Pela manhã, o médico vem mudar os pensos. Fico sentado, a assistir. Enquanto Amílcar Mascarenha se ocupa dos curativos, Ultímio vai falando: – Esta noite nem dormi com essa história do sangue. É verdade, doutor, que me deram sangue de branco?
Não sei o que é isso.
Não sabe o que é o quê?
Sangue de branco.
Ultímio se arruma melhor na cama, soerguendo-se sobre as almofadas. Recusa a ajuda do médico, recupera o fôlego e, de novo, se dirige a Mascarenha: – Eu gosto de si. Mas o meu ódio por si é muito mais antigo que eu.
Está falar de mim ou de minha raça?
Lamento, doutor, mas, para mim, você é a sua raça.
Não se preocupe, Ultímio: eu vou voltar para a capital. Você pode ficar descansado.
Você vai embora?
Vou, sim.
Ultímio volta a remexer-se no leito. Qualquer coisa se quebrou no fundo dos seus olhos. A sua voz parece ter perdido todo o brilho: – Não, não vá. Fique. Eu lhe peço, Mascarenha.
Já não é de um médico que vocês precisam.
Mas fique, eu peço.
Mascarenha faz que não ouve e arruma os seus apetrechos numa caixa. Entretanto, Ultímio rectifica o tom implorativo e readquire os ares de mandador: – Aliás, você, Mascarenha, nem pode partir,agora que o barco ardeu.
Um outro barco há-de haver.

Mia Couto, in Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra

Nenhum comentário:

Postar um comentário