Olhamos
a estrela como olhamos o fogo.
Sabendo
que são uma mesma substância, apenas diferindo na distância em que
a si mesmos se consomem.
– Tia
Admirança –
Estou
na margem do rio, contemplando as mulheres que se banham. Respeitam a
tradição: antes de entrar na água, cada uma delas pede permissão
ao rio: – Dá licença? Que silêncio lhes responde, autorizando
que se afundem na corrente? Não é apenas a língua local que eu
desconheço. São esses outros idiomas que me faltam para entender
Luar-do-Chão. Para falar com minha mãe, que vai fluindo, ondeada,
até ser foz.
As
mulheres me olham, provocantes. Ou provoquentes, como diria o Avô.
Parecem não ter pudor. Os seios desnudados não são, para elas, uma
intimidade com merecimento de vergonha.
Não
se estão apenas divertindo. Estão cumprindo a cerimônia que o
nganga ordenou para que a terra voltasse a abrir. A maldição que
tombara sobre a nossa Ilha sô podia ser vencida por esforço de
todos. Em todo lado, os ilhéus enviavam sinais de entendimento com
os deuses.
À
volta da cintura as mulheres trazem atado um cordel benzido. Só
nesta margem lhes é permitido banhar. No outro lado, foi onde se deu
a tragédia. O rio, nessa orla, ficou interditado para todo o sempre.
O
sucedido infortúnio surge já distante, apagado pelos risos das
mulheres que se vão peixando na corrente. Vou amolecendo naquela
mornança quando um clamor nos sobressalta a todos. As mulheres saem
correndo, algumas esquecidas de se cobrir com as capulanas. É meu
Tio Abstinêncio que surge, correndo em pânico. Engole umas lufadas
e grita: – Venham) aconteceu uma coisa grave! Há um incêndio no
cais! Corremos pelos trilhos, embalados pela inclinação da colina.
Junto ao cais, a multidão se agita, em efervescência. Uma
embarcação carregada de troncos estava ardendo no cais. É o barco
de passageiros em que viajei. Está todo ateado, dir-se-ia
constituído só por chamas.
– Há
feridos?
– Só
o Tio Ultímio.
– Ultímio?
Ele estava no barco?
– Queimou-se
quando tentava apagar o fogo.
– É
grave?
Não
se sabia. Tinha sido levado para casa, estava sendo tratado por
Amílcar Mascarenha. Meu pai me fez sinal que esperasse enquanto ele
ia examinar a ocorrência.
Quem
sabe ainda se carecesse de ajudas? Fico sentado no cais a assistir ao
reflexo das chamas na água, num silencioso desdobrar de luz.
Abstinêncio se aproxima e se acomoda junto a mim. O suspiro lhe vem
quase do chão: – Foi bem feito! Essa era a sua certeza: o incêndio
era punição, vingança divina. Estavam desmatando tudo, até a
floresta sagrada tinham abatido. A Ilha estava quase dessombreada. O
administrador tinha mão no negócio, junto com o Tio Ultímio e
outra gente graúda da capital. Usavam o barco público para privados
carregamentos de madeiras e deixavam passageiros por transportar
sempre que lhes aprouvesse. Às vezes, até doentes ficavam por
evacuar. No tempo colonial Mariavilhosa não tinha tido acesso ao
barco por motivos de sua raça. Hoje excluíam-se passageiros por
outras razões.
– Mas,
Tio, a companhia de navegação não é do Estado?
– E
então? Abstinêncio tinha sido advertido por reclamar separação de
negócios privados e actividades públicas. Foi despedido quando
exigiu maior clareza nos dinheiros.
Aproveito
a ausência de meu pai para esclarecer as denúncias que ainda há
pouco escutara.
– Tio,
me diga uma coisa: meu pai falou de um caso de drogas e do
assassinato deJuca Sabão. Ele disse que isso explica tudo o que aqui
está passando.
– Seu
pai está delirando. Esses gajos que mataram Juca foram presos. Foram
julgados e estão cumprindo penas.
– Mas
não é verdade que desapareceu uma pistola da esquadra?
– Isso
é verdade. Mas o que é que isso prova? Os culpados confessaram,
eram tipos cadastrados.
– Mas,
então, porquê meu pai mantém essa versão?
– Ele
sempre desejou dar uso à arma. Aquilo lhe ficou das guerras. Seu pai
acha que tudo se resolve assim.
Fulano
Malta achava que o mundo estava tão torto que para um homem ser bom
não podia ser justo. Abstinêncio tinha outra explicação, sem
enredo sinuoso: o que se passava agora era outra coisa.
– Vê
aquelas chamas espelhadas no rio? Acha que aquilo é apenas um barco
que está a arder? Tudo está sendo queimado pela cobiça dos
novos-ricos. É isso que sucede em sua opinião. A Ilha é um barco
que funciona às avessas. Flutua porque tem peso. Tem gente feliz,
tem árvore, tem bicho e chão parideiro. Quando tudo isso lhe for
tirado, a Ilha se afunda.
– A
Ilha é o barco, nós somos o rio.
Somos
interrompidos por meu pai que regressa do cais, trazendo uma mão
cheia de cinzas que recolheu dos restos do incêndio. Vai espalhar
esses pós sobre a terra, ainda penso. Mas não. Fulano esfrega as
palmas das mãos nos meus cabelos. Resisto. O que era aquilo? Por que
me untava a cabeça de cinza? Meu pai diz que é para meu bem, para
afastar maus espíritos.
Depois,
ainda ficamos olhando o cais. O incêndio está agora completamente
esmorecido. Como tudo se consome num pestanejar, penso em voz alta.
Fulano Malta parece adivinhar-me o pensamento: – O que perdemos
acontece depressa.
– Não
sei se estou de acordo – argumenta meu tio.
– Veja
um filho. Sem darmos conta, um filho nos sai de casa.
Decidimos
voltar para Nyumba-Kaya. Ultímio está cheio de dores. Rodeamos a
cama, seguindo os movimentos do médico. Abstinência decide quebrar
o silêncio. Dirige-se a meu pai: – Sabe, Fulano? Assim, em redor
desta cama e com Ultímio sofrendo, sabe o que me faz lembrar?
– É
verdade, mano. Eu estava sentindo o mesmo.
Ultímio
não se recorda. Era ele ainda criança quando sofreu um acidente
grave e a família passou a noite em claro, vigiando o seu estado.
– Você
esteve mesmo na berma da morte.
Ultímio
tombara sobre ferros pontudos enquanto pescava na plataforma, junto
ao cais. Quase se esvaíra, tanto o sangue que perdera antes de ser
recolhido.
– Sabe
quem o salvou? Ultímio não tem ideia. Abstinência martela palavra
a palavra, num lento versar: – Foi um branco, meu irmão.
Quem
o salvou foi um indivíduo de raça branca, um anónimo que passava
pela Ilha. Foi ele quem lhe deu sangue, sangue em quantidade para
reabastecer o inteiro corpo, como se fosse um segundo nascimento.
– Metade
do seu sangue é de branco.
Ultímio
nega, ajuntados os pés, cruzados os de dos. Primeiro ri-se. Depois,
se faz sério e pede a Abstinência que confirme: – Você, o mais
velho, comprova? – É verdade, sim, Ultímio.
– Não
acredito. Isso me dizem agora, que estou traumartirizado.
E
fica rezingando até que Fulano, Abstinência e Amílcar se retiram.
Combinámos que eu permaneceria no quarto até amanhecer, tomando
conta do tio. Me enruguei todo numa cadeira, olhando o luar lá fora.
Nunca na cidade a lua ganha tais curvas e requebros. Já me amolento,
meio emborcado em sono, quando as palavras de Ultímio me
surpreendem: – Gostava que você fosse meu filho, Mariano.
Até
as pernas me tombaram. Nunca esperei que tal frase pudesse provir
daquele meu tio. Não me acode palavra nem pensamento. É o Tio que
regressa às falas: – Não sou pessoa feliz, sobrinho. Meus filhos,
eu nem sei onde eles foram buscar aquelas maneiras.. .
– Eles
não costumam vir aqui, pois não?
– Meus
filhos não podem voltar a Luar-do-Chão. Nunca mais podem voltar.
– Não
podem, porquê?
– Lembra
Juca Sabão? Pois há quem pense que foram meus filhos que o
balearam.
Silêncio.
Apenas se escuta a ventoinha no tecto.
– E
o Tio o que é que pensa?
– O
que eu penso? Eu sou pai, Mariano. Um pai que gostaria de ter um
filho como você.
De
novo, o rodopiar da ventoinha é o único e solitário ruído. Parece
que o próprio tempo vai girando de encontro ao tecto. Como se o
futuro ali se enroscasse, sem saída. Às tantas, Ultímio se queixa,
dolorido. Faço-lhe chegar um copo de água mais os prescritos
remédios. Ele se acalma, gemendo progressivamente mais baixo. Aos
poucos, ambos adormecemos.
Pela
manhã, o médico vem mudar os pensos. Fico sentado, a assistir.
Enquanto Amílcar Mascarenha se ocupa dos curativos, Ultímio vai
falando: – Esta noite nem dormi com essa história do sangue. É
verdade, doutor, que me deram sangue de branco?
– Não
sei o que é isso.
– Não
sabe o que é o quê?
– Sangue
de branco.
Ultímio
se arruma melhor na cama, soerguendo-se sobre as almofadas. Recusa a
ajuda do médico, recupera o fôlego e, de novo, se dirige a
Mascarenha: – Eu gosto de si. Mas o meu ódio por si é muito mais
antigo que eu.
– Está
falar de mim ou de minha raça?
– Lamento,
doutor, mas, para mim, você é a sua raça.
– Não
se preocupe, Ultímio: eu vou voltar para a capital. Você pode ficar
descansado.
– Você
vai embora?
– Vou,
sim.
Ultímio
volta a remexer-se no leito. Qualquer coisa se quebrou no fundo dos
seus olhos. A sua voz parece ter perdido todo o brilho: – Não, não
vá. Fique. Eu lhe peço, Mascarenha.
– Já
não é de um médico que vocês precisam.
– Mas
fique, eu peço.
Mascarenha
faz que não ouve e arruma os seus apetrechos numa caixa. Entretanto,
Ultímio rectifica o tom implorativo e readquire os ares de mandador:
– Aliás, você, Mascarenha, nem pode partir,agora que o barco
ardeu.
– Um
outro barco há-de haver.
Mia Couto, in Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra
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