Depois
que me separei, comprei um caderninho onde escrevia os nomes das
mulheres que iam para a cama comigo.
Quando
estava casado eu não tinha nenhum caderninho, a minha mulher era
muito possessiva e as suas crises de ciúme, além de longas, eram
muito teatrais. Ela rasgava as minhas roupas novas. Eu não dava a
menor importância a isso.
Eu
escondia de Nice a existência das outras mulheres que povoavam o meu
mundo. Ainda não tinha caderninho naquela época, mas já ia para a
cama com outras. O ciúme de Nice era sempre causado por um gesto
inocente da minha parte, como olhar uma dona que passava perto da
nossa mesa no restaurante. Às vezes, num mero exercício
especulativo, eu imaginava o que ela faria se soubesse que eu comia
outras mulheres. Mas eu não corria riscos. Caderninho de endereços,
cartas, retratos, essas coisas clandestinas sempre são descobertas.
Por
que me separei dela? Talvez porque não aguentasse mais ter que usar
as roupas da “última moda” que Nice comprava para mim. Durante
algum tempo eu achava graça em mim mesmo enfiado naqueles
paramentos. Tenho senso de humor, como todo sujeito preguiçoso.
Lembro-me de um jantar, presentes as habituais figurinhas que se
enfeitam com esmero para essas ocasiões, quando uma das mulheres,
uma ruiva bonita, elogiou os meus trajes.
Eu
disse que Nice os havia escolhido. A ruiva virou-se para o marido, um
advogado vestido formalmente que suava pelos cotovelos apesar do ar
refrigerado, e lhe disse que ele devia seguir o meu exemplo. O resto
da noite, os casais presentes — havia profissionais liberais,
empresários, até mesmo uma artista plástica, a maioria trajada
conforme os ditames estilísticos da época — discutiram se as
mulheres deviam ou não escolher a roupa que os maridos usavam. Foi
um debate acalorado e extenso, o advogado falastrão, que não
gostava de mim, foi um dos mais eloquentes.
No
dia seguinte, empacotei minhas roupas velhas e alguns livros, os de
poesia, e mudei de casa. Minha ex-mulher era tão ingênua que rasgou
todas as roupas novas, que eu deixara no apartamento, pensando que se
vingava de mim, e contratou o advogado paspalhão que suava no jantar
para tirar o meu couro, mas ele conseguiu menos do que ela queria.
Minha união com Nice havia durado três anos, alimentada pela
inércia, essa qualidade passiva que faz o sujeito resistir, não
importa a magnitude da escala de Richter, aos rotineiros abalos
sísmicos de todo casamento.
Sou
um indolente. Mas minha preguiça nunca interferiu na minha motivação
de conquistar e possuir as mulheres. Só não quero é casar
novamente. Na vida tudo é motivação. É uma energia psíquica,
como dizem os estudiosos, uma tensão que põe em movimento o
organismo humano, determinando o nosso comportamento. Às vezes eu
penso que, no meu caso, é também uma maldição.
Que
mulheres eu queria conquistar? Famosas? Não me interessavam. Uma
mulher famosa, não importa a origem da sua celebridade, costuma ter
mais defeitos que atrativos, por mais bonita que seja. Ricas? Zero
motivo. Cultas? Zero motivo. Elegantes? Isso é interessante, mas não
basta — evidentemente não estou falando de roupas, elegância é
outra coisa. Esportivas? Pra quê, pra correr comigo na praia com um
daqueles medidores de ritmo cardíaco atado no peito? Zero,
evidentemente. Eu queria mulheres bonitas e bem-humoradas. Só isso.
É claro que se fosse um pouquinho feia mas tivesse um corpo muito
bonito ela entrava no caderninho. Aliás, o corpo bonito era mais
importante do que o rosto bonito.
Que
dificuldades eu encontrava para conseguir o plantei registrado no meu
caderninho? Eu queria mulheres bonitas, mas às vezes acontecia que a
mulher bonita era também inteligente. Teoricamente, uma mulher
inteligente perceberia logo que sou um mulherengo. Teoricamente. Mas,
na prática, elas são ainda mais pacóvias do que as burras. Como,
por exemplo, a penúltima, chamada Safira, que entrou no meu
caderninho.
Antes
de prosseguir, devo dizer que gosto de comer a mulher no dia seguinte
àquele em que a conheço, já que no mesmo dia é um açodamento que
deve ser evitado, a pressa é inimiga da perfeição. Este, aliás, é
um dos meus clichês favoritos, não me incomoda usar lugares-comuns,
são sempre a concepção clara de uma realidade, ainda que gastos
pelo abuso. Mas, como dizia, no segundo encontro com Safira eu, como
de costume, sugeri irmos para a cama.
“Você
não acha que devemos esperar o tempo certo?”
Tenho
sempre um bom clichê na manga.
“Boire
sans soif et faire l’amour en tout temps, madame, il n’y a que ça
qui nous distingue des autres bêtes. Beaumarchais, Mariage de
Figaro”, respondi.
Esqueci
de dizer, sei falar francês, qualquer mandrião consegue aprender
francês. Safira era jovem, não conhecia esse chavão centenário
nem o autor da peça, apenas a ópera de Mozart, sabia um pouco de
francês, mas como era razoavelmente inteligente entendeu que eu
dissera uma verdade: o que nos diferencia dos animais é que bebemos
quando não sentimos sede e fazemos amor a qualquer momento. Faz
parte da natureza humana, da nossa essência. Então, Safira percebeu
que devia seguir seus mais puros instintos e foi para a cama comigo.
Pude pôr o nome dela no caderninho, com uma breve nota sobre as suas
características principais.
Podia
contar outros casos, inúmeros, porém sinto que estou me tornando
prolixo. Mas não posso deixar de falar de Andressa. Um exemplo de
caso difícil.
Andressa
era filha de novos-ricos — nessa esfera social ninguém dá a uma
filha nomes como Maria. Ela evitou ir para a cama comigo no primeiro
dia, no segundo, no terceiro e até mesmo — incrível, não? — no
quarto dia.
“É
assim que você vê as mulheres? Que você me vê? Como um objeto
sexual?”, ela perguntou, quando da minha última tentativa.
Protestei
com veemência, disse que era atraído pelos seus atributos físicos,
morais e mentais, pela sua personalidade como um todo.
Senti
que minha afirmativa categórica não a convencera. Ela ainda tinha
fortes dúvidas a meu respeito, se eu merecia ou não a sua
confiança.
Para
um indolente como eu, essa dificuldade poderia ser desestimulante.
Mas, como disse, a minha motivação, ou maldição, era tão forte
quanto a de Sísifo.
Consegui,
com muito esforço, convencê-la a se encontrar comigo, mais uma vez,
no meu apartamento. Nesse dia crítico, esqueci sobre a mesa da sala
o caderninho com os nomes das mulheres, em cuja capa vermelha estava
escrito: As mulheres que amei.
E
aconteceu o que não podia deixar de acontecer. Andressa achou o
caderninho e pegou-o, estava aparente demais, com sua capa gritante.
As mulheres são curiosas, como sabemos, e essas coisas clandestinas
sempre são descobertas por elas. Azar de quem não sabe disso.
“As
mulheres que amei”, disse Andressa, lendo a capa do caderninho.
Eu
estava perto. Corri e arranquei o caderninho vermelho das suas mãos.
“Desculpe”,
eu disse, nervoso, “mas este caderninho contém coisas que eu não
gostaria que você lesse. Desculpe.”
“Por
quê? O que tem nele, além dos nomes?”
“Bem...”
“O
que mais?”
Coloquei
o caderninho no bolso e juntei as mãos, como numa prece, no melhor
estilo de um italiano suplicante:
“Por
favor, não me peça para ler esse caderninho.”
“Nomes
de mulheres...” repetiu Andressa, com desprezo na voz. “E o que
mais contém essa coisa, que eu não posso ler?”
Passei
as mãos sobre a cabeça e mantive-me calado. Além dos nomes, havia
no caderninho uma breve anotação sobre as particularidades de cada
mulher. Eu não conseguia esconder meu constrangimento, creio mesmo
que fiquei ruborizado.
“Anda,
fala logo. O que tem nele, além dos nomes?”
“As...
ah... características... de cada uma delas.”
“Que
coisa mais sórdida. Você anota num caderninho as obscenidades que
pratica com as mulheres que diz ter amado?”
“Não
é nada disso.”
Andressa
pegou a sua bolsa, que deixara sobre uma cadeira.
“Nunca
pensei que alguém pudesse ser tão canalha.”
Quando
ela já estava na porta, para sair, eu a segurei. Tirei o caderninho
do bolso.
“Pode
ler. Por favor, não vá embora.”
Ela
parou, indecisa…
“Não
quero ler essa porcaria.”
“Agora
você tem que ler. Depois de todas essas coisas horríveis que disse
de mim, mereço que pelo menos este meu pedido seja aceito, me dá
uma chance de provar que sou um homem de caráter. Eu te amo.”
Esfreguei
os olhos, como alguém à beira das lágrimas.
“Assim
como amou as dezenas de mulheres do seu caderninho?”
“Leia,
estou implorando.” Entreguei o caderninho a Andressa. Ela hesitou
um pouco. Começou a ler, e o seu rosto, aos poucos, foi demonstrando
surpresa. Caminhou para o centro da sala e pôs a bolsa de volta
sobre a cadeira.
“São
apenas cinco nomes”, disse Andressa.
“Leia
o que está escrito”, eu disse.
“Já
li. Me desculpe”, disse Andressa.
“Só
desculpo se você ler o que está aí em voz alta.”
Andressa
leu:
“Marta,
gosta de gatos e de assistir ao pôr do sol. Sílvia, preocupa-se com
ecologia. Luíza, adora o lirismo de Florbela Espanca. Renata, canta
as músicas de Cole Porter melhor do que ninguém. Lourdes, tem uma
linda coleção de orquídeas. São apenas essas cinco?”
“Agora,
seis, com você, que vai encerrar esse caderninho para sempre.”
“Quem
é Florbela?”
“Poeta
portuguesa.”
“Você
me desculpa?”
“Claro.
A culpa do mal-entendido foi toda minha.”
“O
meu nome ainda não está no caderninho. Você vai escrever o quê?”
Tirei
o caderninho da sua mão. Escrevi:
“Andressa.
Sofisticada, generosa, inteligente, linda como uma princesa de
histórias de fada.”
Andressa
leu o que eu havia escrito para ela. Abraçou-me, carinhosamente.
Fomos para a cama. Passou a noite comigo. Enquanto fazíamos sexo, me
chamou de meu amor várias vezes.
De
manhã, quando foi embora, peguei o caderninho de nomes que Andressa
deixara sobre a mesa e coloquei-o numa gaveta fechada à chave onde
estava o outro caderninho, o verdadeiro, de discreta capa cinza, o
que continha, resumidamente, as peculiaridades reais e os nomes das
dezenas de mulheres que eu comera. O de capa vermelha, que Andressa
lera, era uma falsificação que eu astutamente preparara para aquela
empreitada difícil. Cinco dias! Com a minha melhor caligrafia,
escrevi, no caderninho verdadeiro:
“Andressa.
Chupa. Anal. Celulite. Não sabe quem é Florbela Espanca.”
Rubem Fonseca, in Pequenas Criaturas
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