segunda-feira, 3 de abril de 2023

Caderninho de nomes


Depois que me separei, comprei um caderninho onde escrevia os nomes das mulheres que iam para a cama comigo.
Quando estava casado eu não tinha nenhum caderninho, a minha mulher era muito possessiva e as suas crises de ciúme, além de longas, eram muito teatrais. Ela rasgava as minhas roupas novas. Eu não dava a menor importância a isso.
Eu escondia de Nice a existência das outras mulheres que povoavam o meu mundo. Ainda não tinha caderninho naquela época, mas já ia para a cama com outras. O ciúme de Nice era sempre causado por um gesto inocente da minha parte, como olhar uma dona que passava perto da nossa mesa no restaurante. Às vezes, num mero exercício especulativo, eu imaginava o que ela faria se soubesse que eu comia outras mulheres. Mas eu não corria riscos. Caderninho de endereços, cartas, retratos, essas coisas clandestinas sempre são descobertas.
Por que me separei dela? Talvez porque não aguentasse mais ter que usar as roupas da “última moda” que Nice comprava para mim. Durante algum tempo eu achava graça em mim mesmo enfiado naqueles paramentos. Tenho senso de humor, como todo sujeito preguiçoso. Lembro-me de um jantar, presentes as habituais figurinhas que se enfeitam com esmero para essas ocasiões, quando uma das mulheres, uma ruiva bonita, elogiou os meus trajes.
Eu disse que Nice os havia escolhido. A ruiva virou-se para o marido, um advogado vestido formalmente que suava pelos cotovelos apesar do ar refrigerado, e lhe disse que ele devia seguir o meu exemplo. O resto da noite, os casais presentes — havia profissionais liberais, empresários, até mesmo uma artista plástica, a maioria trajada conforme os ditames estilísticos da época — discutiram se as mulheres deviam ou não escolher a roupa que os maridos usavam. Foi um debate acalorado e extenso, o advogado falastrão, que não gostava de mim, foi um dos mais eloquentes.
No dia seguinte, empacotei minhas roupas velhas e alguns livros, os de poesia, e mudei de casa. Minha ex-mulher era tão ingênua que rasgou todas as roupas novas, que eu deixara no apartamento, pensando que se vingava de mim, e contratou o advogado paspalhão que suava no jantar para tirar o meu couro, mas ele conseguiu menos do que ela queria. Minha união com Nice havia durado três anos, alimentada pela inércia, essa qualidade passiva que faz o sujeito resistir, não importa a magnitude da escala de Richter, aos rotineiros abalos sísmicos de todo casamento.
Sou um indolente. Mas minha preguiça nunca interferiu na minha motivação de conquistar e possuir as mulheres. Só não quero é casar novamente. Na vida tudo é motivação. É uma energia psíquica, como dizem os estudiosos, uma tensão que põe em movimento o organismo humano, determinando o nosso comportamento. Às vezes eu penso que, no meu caso, é também uma maldição.
Que mulheres eu queria conquistar? Famosas? Não me interessavam. Uma mulher famosa, não importa a origem da sua celebridade, costuma ter mais defeitos que atrativos, por mais bonita que seja. Ricas? Zero motivo. Cultas? Zero motivo. Elegantes? Isso é interessante, mas não basta — evidentemente não estou falando de roupas, elegância é outra coisa. Esportivas? Pra quê, pra correr comigo na praia com um daqueles medidores de ritmo cardíaco atado no peito? Zero, evidentemente. Eu queria mulheres bonitas e bem-humoradas. Só isso. É claro que se fosse um pouquinho feia mas tivesse um corpo muito bonito ela entrava no caderninho. Aliás, o corpo bonito era mais importante do que o rosto bonito.
Que dificuldades eu encontrava para conseguir o plantei registrado no meu caderninho? Eu queria mulheres bonitas, mas às vezes acontecia que a mulher bonita era também inteligente. Teoricamente, uma mulher inteligente perceberia logo que sou um mulherengo. Teoricamente. Mas, na prática, elas são ainda mais pacóvias do que as burras. Como, por exemplo, a penúltima, chamada Safira, que entrou no meu caderninho.
Antes de prosseguir, devo dizer que gosto de comer a mulher no dia seguinte àquele em que a conheço, já que no mesmo dia é um açodamento que deve ser evitado, a pressa é inimiga da perfeição. Este, aliás, é um dos meus clichês favoritos, não me incomoda usar lugares-comuns, são sempre a concepção clara de uma realidade, ainda que gastos pelo abuso. Mas, como dizia, no segundo encontro com Safira eu, como de costume, sugeri irmos para a cama.
Você não acha que devemos esperar o tempo certo?”
Tenho sempre um bom clichê na manga.
Boire sans soif et faire l’amour en tout temps, madame, il n’y a que ça qui nous distingue des autres bêtes. Beaumarchais, Mariage de Figaro”, respondi.
Esqueci de dizer, sei falar francês, qualquer mandrião consegue aprender francês. Safira era jovem, não conhecia esse chavão centenário nem o autor da peça, apenas a ópera de Mozart, sabia um pouco de francês, mas como era razoavelmente inteligente entendeu que eu dissera uma verdade: o que nos diferencia dos animais é que bebemos quando não sentimos sede e fazemos amor a qualquer momento. Faz parte da natureza humana, da nossa essência. Então, Safira percebeu que devia seguir seus mais puros instintos e foi para a cama comigo. Pude pôr o nome dela no caderninho, com uma breve nota sobre as suas características principais.
Podia contar outros casos, inúmeros, porém sinto que estou me tornando prolixo. Mas não posso deixar de falar de Andressa. Um exemplo de caso difícil.
Andressa era filha de novos-ricos — nessa esfera social ninguém dá a uma filha nomes como Maria. Ela evitou ir para a cama comigo no primeiro dia, no segundo, no terceiro e até mesmo — incrível, não? — no quarto dia.
É assim que você vê as mulheres? Que você me vê? Como um objeto sexual?”, ela perguntou, quando da minha última tentativa.
Protestei com veemência, disse que era atraído pelos seus atributos físicos, morais e mentais, pela sua personalidade como um todo.
Senti que minha afirmativa categórica não a convencera. Ela ainda tinha fortes dúvidas a meu respeito, se eu merecia ou não a sua confiança.
Para um indolente como eu, essa dificuldade poderia ser desestimulante. Mas, como disse, a minha motivação, ou maldição, era tão forte quanto a de Sísifo.
Consegui, com muito esforço, convencê-la a se encontrar comigo, mais uma vez, no meu apartamento. Nesse dia crítico, esqueci sobre a mesa da sala o caderninho com os nomes das mulheres, em cuja capa vermelha estava escrito: As mulheres que amei.
E aconteceu o que não podia deixar de acontecer. Andressa achou o caderninho e pegou-o, estava aparente demais, com sua capa gritante. As mulheres são curiosas, como sabemos, e essas coisas clandestinas sempre são descobertas por elas. Azar de quem não sabe disso.
As mulheres que amei”, disse Andressa, lendo a capa do caderninho.
Eu estava perto. Corri e arranquei o caderninho vermelho das suas mãos.
Desculpe”, eu disse, nervoso, “mas este caderninho contém coisas que eu não gostaria que você lesse. Desculpe.”
Por quê? O que tem nele, além dos nomes?”
Bem...”
O que mais?”
Coloquei o caderninho no bolso e juntei as mãos, como numa prece, no melhor estilo de um italiano suplicante:
Por favor, não me peça para ler esse caderninho.”
Nomes de mulheres...” repetiu Andressa, com desprezo na voz. “E o que mais contém essa coisa, que eu não posso ler?”
Passei as mãos sobre a cabeça e mantive-me calado. Além dos nomes, havia no caderninho uma breve anotação sobre as particularidades de cada mulher. Eu não conseguia esconder meu constrangimento, creio mesmo que fiquei ruborizado.
Anda, fala logo. O que tem nele, além dos nomes?”
As... ah... características... de cada uma delas.”
Que coisa mais sórdida. Você anota num caderninho as obscenidades que pratica com as mulheres que diz ter amado?”
Não é nada disso.”
Andressa pegou a sua bolsa, que deixara sobre uma cadeira.
Nunca pensei que alguém pudesse ser tão canalha.”
Quando ela já estava na porta, para sair, eu a segurei. Tirei o caderninho do bolso.
Pode ler. Por favor, não vá embora.”
Ela parou, indecisa…
Não quero ler essa porcaria.”
Agora você tem que ler. Depois de todas essas coisas horríveis que disse de mim, mereço que pelo menos este meu pedido seja aceito, me dá uma chance de provar que sou um homem de caráter. Eu te amo.”
Esfreguei os olhos, como alguém à beira das lágrimas.
Assim como amou as dezenas de mulheres do seu caderninho?”
Leia, estou implorando.” Entreguei o caderninho a Andressa. Ela hesitou um pouco. Começou a ler, e o seu rosto, aos poucos, foi demonstrando surpresa. Caminhou para o centro da sala e pôs a bolsa de volta sobre a cadeira.
São apenas cinco nomes”, disse Andressa.
Leia o que está escrito”, eu disse.
Já li. Me desculpe”, disse Andressa.
Só desculpo se você ler o que está aí em voz alta.”
Andressa leu:
Marta, gosta de gatos e de assistir ao pôr do sol. Sílvia, preocupa-se com ecologia. Luíza, adora o lirismo de Florbela Espanca. Renata, canta as músicas de Cole Porter melhor do que ninguém. Lourdes, tem uma linda coleção de orquídeas. São apenas essas cinco?”
Agora, seis, com você, que vai encerrar esse caderninho para sempre.”
Quem é Florbela?”
Poeta portuguesa.”
Você me desculpa?”
Claro. A culpa do mal-entendido foi toda minha.”
O meu nome ainda não está no caderninho. Você vai escrever o quê?”
Tirei o caderninho da sua mão. Escrevi:
Andressa. Sofisticada, generosa, inteligente, linda como uma princesa de histórias de fada.”
Andressa leu o que eu havia escrito para ela. Abraçou-me, carinhosamente. Fomos para a cama. Passou a noite comigo. Enquanto fazíamos sexo, me chamou de meu amor várias vezes.
De manhã, quando foi embora, peguei o caderninho de nomes que Andressa deixara sobre a mesa e coloquei-o numa gaveta fechada à chave onde estava o outro caderninho, o verdadeiro, de discreta capa cinza, o que continha, resumidamente, as peculiaridades reais e os nomes das dezenas de mulheres que eu comera. O de capa vermelha, que Andressa lera, era uma falsificação que eu astutamente preparara para aquela empreitada difícil. Cinco dias! Com a minha melhor caligrafia, escrevi, no caderninho verdadeiro:
Andressa. Chupa. Anal. Celulite. Não sabe quem é Florbela Espanca.”

Rubem Fonseca, in Pequenas Criaturas

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