segunda-feira, 10 de abril de 2023

As primeiras quinze vidas de Harry August | Capítulo 12


Já mencionei alguns dos estágios pelos quais passamos ao tentar entender o que somos. Reconheço que fui pouco original e me matei para acabar com minha segunda vida, e na terceira vida eu busquei uma resposta em Deus.
Eu já contei que, durante a Segura Guerra Mundial, dei o melhor de mim para encontrar postos escondidos e seguros. O que eu não contei foi que a guerra também me deu a oportunidade de aprender um pouco mais sobre os limites do meu aprendizado atual. Então, de um engenheiro jamaicano com o duvidoso nome de Friday Boy, ouvi a respeito das almas dos mortos e dos fantasmas furiosos que continuam vagando por não terem sido honrados. De um circunspecto oficial americano chamado Walter S. Brody aprendi os mistérios dos batistas, dos anabatistas, dos mórmons e dos luteranos, tudo isso explicado com a seguinte conclusão:
Minha mãe foi tudo isso por um tempo, e o que ela aprendeu foi que o melhor jeito de falar com Deus é ir atrás dele da sua própria maneira.
Antes de fugir — ou ser capturado, o rumor nunca foi esclarecido —, um soldado sudanês que transportara as bagagens para os tanques de Rommel em retirada da Tunísia me mostrou o caminho para Meca. Ele me ensinou a recitar as palavras “Sou testemunha de que não há Deus senão Alá, e sou testemunha de que Maomé é servo de Deus e seu mensageiro”, primeiro em inglês, depois num árabe deficiente, por fim, em acholi, que ele declarava orgulhosamente ser um idioma incomparável, e ele, sendo muçulmano e acholi, era um homem incomparável. Recitei a frase em acholi diversas vezes tentando acertar a entonação, e quando ele ficou satisfeito me deu um tapa nas costas e disse:
Veja só! Talvez você não precise queimar no fogo do inferno, no fim das contas!
Acho que foi este soldado, mais do que os outros, que me encorajou a viajar. Ele contou histórias fantásticas e, como acabei descobrindo na maioria das vezes, completamente inventadas de terras gloriosas do outro lado do mar Mediterrâneo, de mistérios e respostas aguardando nas areias. Quando a guerra terminou fui atrás do primeiro navio em direção a essas terras que tantos ingleses estavam deixando e, embebido pelo espírito da época, cometi uma série de delitos e acabei passando por aventuras na impetuosa ignorância digna de minha aparente juventude. No Egito, eu me converti num crente fervoroso das palavras de Alá, até que um dia, três de meus irmãos da mesquita me encurralaram num beco no Cairo, e apanhei deles até desmaiar. Alegando que era um espião judeu — embora um espião judeu ruivo —, um imperialista, um comunista, um fascista, um sionista e, acima tudo, alguém diferente deles, eles arrancaram minha barba, rasparam a minha cabeça com facas cegas, cuspiram no meu rosto e rasgaram minha túnica branca, a qual eu comprara durante um arroubo típico de um recém-convertido e que ficara do tamanho errado. Passei quatro dias no hospital e, ao ter alta, procurei meu mulá em busca de conforto. Com educação, ele me serviu chá numa tulipa e me perguntou como eu me sentia a respeito da minha vocação.
Fui embora no dia seguinte.
Eu me diverti por um tempo com o judaísmo no recém-fundado estado de Israel, mas, apesar de todas as minhas credenciais de ex-soldado ferido na guerra a serviço da espionagem hebraica, estava claro que eu não me adaptaria, e minha condição de ex-soldado dos odiados britânicos também não ajudou. Vi homens e mulheres com marcas na pele ainda azuladas das tatuagens de campos de concentração, ajoelhando-se no Muro das Lamentações e chorando de alívio ao verem as pedras que refletiam a luz do sol, e soube que não pertencia àquele universo.
No topo do monte Sinai, um padre católico me cumprimentou quando eu subi em busca de um deus que atendesse às minhas preces. Eu me ajoelhei aos seus pés, beijei sua mão, disse que sua presença ali era um sinal, um sinal de que havia um deus e que ele tinha um propósito para mim, então lhe contei a minha história. Ao final foi ele quem se ajoelhou aos meus pés, beijou minha mão e disse que eu era um sinal, um sinal enviado por Deus de que afinal sua vida tinha um propósito, que através de mim sua fé havia sido renovada, e falava sobre meus prodígios com um ar tão sincero que comecei a duvidar deles eu mesmo. Ele disse que me levaria a Roma para conhecer o papa, que eu teria uma vida de meditação e oração para decifrar os mistérios da minha existência, e três dias depois acordei e o encontrei no chão do meu quarto, nu, a não ser por um colar de contas, ajoelhado e beijando minha mão enquanto eu dormia. Disse que eu era um mensageiro e pediu desculpas por ter em algum momento nutrido qualquer dúvida, e fugi pela janela dos fundos e pulei o muro do jardim logo antes de o sol raiar.
Tendo ouvido falar do misticismo e de filosofias que talvez conseguissem explicar minha situação onde a teologia ocidental havia falhado, rumei para a Índia. Cheguei em 1953, e foi fácil conseguir um emprego de mecânico para uma sucessão de linhas aéreas comerciais fadadas ao fracasso. Os fracassos em si quase nunca me afetavam; podia acontecer de, uma segunda-feira, eu sair do trabalho empregado por um homem e chegar para trabalhar na terça e encontrar meu antigo contrato de trabalho destruído e um novo somente esperando pela minha assinatura, idêntico, com todas as cláusulas, exceto a data e o nome do empregador. A Índia vinha se recuperando de seu processo de divisão, e eu estava no sul, longe da pior parte do derramamento de sangue que manchou sua independência. Nehru era o primeiro-ministro, e eu me vi completamente apaixonado, primeiro por uma atriz cujos olhos pareciam olhar para mim e somente para mim da tela do cinema, depois por uma sósia dela que vendia frutas no aeroporto e nunca havia aberto a boca para falar uma palavra importante durante toda a vida, a quem eu idolatrava de forma humilhante e a quem cortejei de forma desastrosa. Já se observou que até os mais velhos de nós, kalachakra, são movidos por um certo incentivo biológico, não importando a idade da nossa mente. Quando criança, senti apenas o incentivo biológico para crescer e o desalento intelectual que o processo provocava. Quando adolescente, lutei contra a depressão mantendo-me ocupado e prestando atenção às conspirações da Mansão Hulne. Já homem, no auge da vida, sentia mais do que nunca o impulso, a vontade de cair no mundo e desafiá-lo como um toureiro na arena. Viajei em busca de respostas, discuti com homens que retrucavam, amei até o fundo da alma e fui rejeitado até o fundo do coração, e idolatrei Meena Kumari, deusa de Bollywood, como símbolo da perfeição, embora não falasse uma palavra de híndi quando vi seus filmes pela primeira vez.
Não encontrei respostas nem no amor nem em Deus. Falei de ressurreição e reencarnação com os brâmanes, e eles me disseram que, se eu vivesse uma vida boa e pura, poderia retornar como algo maior do que eu mesmo.
E como eu mesmo? Posso retornar como eu mesmo?
A questão causou comoção entre os sábios do hinduísmo para os quais perguntei. Gosto de pensar que fui eu a introduzir os primeiros indícios da física relativística no discurso deles, enquanto acadêmicos debatiam com fervor se, na natureza, a ressurreição precisava se dar na mesma linha temporal. Por fim a resposta veio de um sábio barrigudo com bons hábitos alimentares, que proclamou,
Não seja ridículo, inglês! Você melhora ou piora, mas todas as coisas mudam!
A resposta pouco me satisfez, e, com as economias de dez anos consertando o mesmo jato que tinha um nome diferente a cada semana, eu me mudei. A China era bem pouco acolhedora, e o momento não era bom para uma visita ao Tibete, então rumei para o sul, desviando de Vietnã, Tailândia, Birmânia e Nepal, tentando me movimentar por lugares que os americanos não invadiriam ou uma guerra civil não estava prestes a ser deflagrada. Raspei a cabeça e passei a comer apenas vegetais, aprendi a rezar em voz alta usando palavras incompreensíveis e perguntei a cada representação de Buda, de Gautama a suas dez mil encarnações, por que eu era daquele jeito, e se a morte seguinte seria a minha última. Ganhei certa reputação, a de inglês que sabia o discurso de todas as religiões, que era capaz de argumentar com qualquer monge ou imame, padre ou pastor, sobre qualquer questão filosófica que eles fossem capazes de levantar, contanto que se referissem à alma imortal. Em 1969, recebi a visita de um homem alegre com óculos de aro redondo que se sentou de pernas cruzadas à minha frente na minha choupana e disse:
Boa tarde, venerado senhor. Meu nome é Shen. Venho aqui representando uma instituição interessada, e estou aqui para descobrir suas intenções.
Na época, eu morava em Bangcoc e tinha descoberto que, por mais puras que fossem minhas orações, elas não aliviavam as penúrias provocadas pelos fungos tropicais que se desenvolvem nas dobras da pele quando se vive numa selva úmida. Os jornais publicavam histórias sobre a grandeza do governo em letras garrafais e negrito, e, em letras de corpo bem menor e usando uma tinta preta melancólica, boatos a respeito de guerrilhas comunistas nas montanhas. Eu custava a crer que aquele enésimo caminho me conduziria à iluminação, mas sabia que estava ficando velho demais para acreditar em qualquer outra coisa, então dividi o tempo entre consertar carros com minha túnica laranja e meditar sobre o que faria se não fosse capaz de morrer.
Com o rosto tão reluzente quanto uma castanha-da-índia e uma camisa azul grudenta de suor nas costas e nas axilas, o senhor Shen ergueu os óculos de leve e acrescentou:
Você está aqui para se dedicar a atividades contrarrevolucionárias?
Eu havia passado por uma fase de dar respostas místicas e sábias, mas, francamente, em certo momento ficamos velhos demais para essas coisas, então soltei:
Você trabalha para os serviços de segurança chineses?
É claro, venerado senhor — entoou ele, inclinando-se numa reverência mesmo sentado com as mãos juntas, do jeito que os tailandeses demonstram respeito ao tratar com um professor. — Temos pouquíssimo interesse neste país, mas algumas pessoas têm sugerido que você é, na verdade, um agente imperialista do Ocidente que pretende se aliar às forças contrarrevolucionárias com esse separatista burguês que chamam de Dalai Lama, e que seu templo é um polo de subversão capitalista criado para atacar o coração do nosso povo glorioso.
Ele respondeu de um jeito tão cordial que eu me vi forçado a perguntar:
E isso é ruim?
É claro que é ruim, venerado senhor! Esse tipo de atividade subversiva seria motivo para represália por parte do meu governo, embora seja claro que — um breve sorriso, brilhante e alegre —, naturalmente, você seria protegido por seus aliados imperialistas, e sem dúvida isso causaria repercussões.
Ah! — exclamei, enfim compreendendo. — Você está ameaçando me matar?
Eu odiaria que chegasse a esse ponto, venerado senhor, ainda mais porque acredito que você é apenas um inglês excêntrico em busca de uma vida tranquila.
Como você me mataria? Seria rápido?
Eu gostaria que sim! Ao contrário da propaganda do seu governo, não somos bárbaros.
E eu precisaria saber? Seria possível, por exemplo, você me matar sem dor, enquanto eu durmo? Isso seria uma opção?
Um olhar consternado atravessou o rosto de Shen enquanto ele considerava a possibilidade.
Imagino que seria conveniente para todos os envolvidos que sua morte parecesse indolor e natural. Se você estivesse acordado, sem dúvida haveria briga e sinais de autodefesa, o que seria inaceitável para um monge, mesmo que seja um monge porco imperialista. Você... não é um porco imperialista, é?
Eu sou inglês — salientei.
Existem muitos ingleses comunistas.
Não sou comunista.
Indeciso, Shen mordeu o lábio inferior e correu os olhos pelos cantos da sala, como se esperasse encontrar uma rachadura na parede de bambus por onde um rifle pudesse aparecer. Então, abafando a voz, murmurou:
Espero que não seja um agente imperialista, venerado senhor. Recebi ordens de compilar o dossiê contra você e não encontrei evidências de que você seja algo diferente de um louco inofensivo com crenças antiquadas. Meu trabalho ficaria bem manchado se você se revelasse um espião.
Com certeza não sou espião — garanti.
Shen pareceu aliviado.
Obrigado, senhor! — exclamou, enxugando a testa com a manga da camisa e logo depois pedindo desculpas por aquela suada falta de desrespeito. — De fato parecia bem pouco provável, mas, nos tempos em que vivemos, é preciso ser meticuloso.
Aceita um chá?
Não, obrigado. Não posso ser visto confraternizando desnecessariamente com o inimigo.
Pensei que você havia concluído que eu não era o inimigo.
Você é ideologicamente corrompido, mas inofensivo — corrigiu ele.
Ao dizer isso, e depois de abundantes reverências, Shen se encaminhou à porta.
Senhor Shen — chamei-o.
Ele parou à porta, e seu rosto traía a expressão tensa de um homem que sinceramente esperava não estar prestes a ficar mais atarefado.
Eu não consigo morrer — expliquei com educação. — Eu nasço, vivo, morro, nasço outra vez, mas é a mesma vida. Por acaso seu governo tem alguma informação a respeito disso que me possa ser útil?
Ele sorriu, dessa vez com uma verdadeira expressão de alívio tomando conta de suas feições.
Não, venerado senhor. Obrigado pela cooperação. — Então, um adendo: — Boa sorte com esse assunto.
Shen abriu a porta e saiu.
Ele foi o primeiro espião que conheci, e Franklin Phearson foi o segundo. Dos dois, acho que preferi Shen.

Claire North, in As primeiras quinze vidas de Harry August

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