Já
mencionei alguns dos estágios pelos quais passamos ao tentar
entender o que somos. Reconheço que fui pouco original e me matei
para acabar com minha segunda vida, e na terceira vida eu busquei uma
resposta em Deus.
Eu
já contei que, durante a Segura Guerra Mundial, dei o melhor de mim
para encontrar postos escondidos e seguros. O que eu não contei foi
que a guerra também me deu a oportunidade de aprender um pouco mais
sobre os limites do meu aprendizado atual. Então, de um engenheiro
jamaicano com o duvidoso nome de Friday Boy, ouvi a respeito das
almas dos mortos e dos fantasmas furiosos que continuam vagando por
não terem sido honrados. De um circunspecto oficial americano
chamado Walter S. Brody aprendi os mistérios dos batistas, dos
anabatistas, dos mórmons e dos luteranos, tudo isso explicado com a
seguinte conclusão:
— Minha
mãe foi tudo isso por um tempo, e o que ela aprendeu foi que o
melhor jeito de falar com Deus é ir atrás dele da sua própria
maneira.
Antes
de fugir — ou ser capturado, o rumor nunca foi esclarecido —, um
soldado sudanês que transportara as bagagens para os tanques de
Rommel em retirada da Tunísia me mostrou o caminho para Meca. Ele me
ensinou a recitar as palavras “Sou testemunha de que não há Deus
senão Alá, e sou testemunha de que Maomé é servo de Deus e seu
mensageiro”, primeiro em inglês, depois num árabe deficiente, por
fim, em acholi, que ele declarava orgulhosamente ser um idioma
incomparável, e ele, sendo muçulmano e acholi, era um homem
incomparável. Recitei a frase em acholi diversas vezes tentando
acertar a entonação, e quando ele ficou satisfeito me deu um tapa
nas costas e disse:
— Veja
só! Talvez você não precise queimar no fogo do inferno, no fim das
contas!
Acho
que foi este soldado, mais do que os outros, que me encorajou a
viajar. Ele contou histórias fantásticas e, como acabei descobrindo
na maioria das vezes, completamente inventadas de terras gloriosas do
outro lado do mar Mediterrâneo, de mistérios e respostas aguardando
nas areias. Quando a guerra terminou fui atrás do primeiro navio em
direção a essas terras que tantos ingleses estavam deixando e,
embebido pelo espírito da época, cometi uma série de delitos e
acabei passando por aventuras na impetuosa ignorância digna de minha
aparente juventude. No Egito, eu me converti num crente fervoroso das
palavras de Alá, até que um dia, três de meus irmãos da mesquita
me encurralaram num beco no Cairo, e apanhei deles até desmaiar.
Alegando que era um espião judeu — embora um espião judeu ruivo
—, um imperialista, um comunista, um fascista, um sionista e, acima
tudo, alguém diferente deles, eles arrancaram minha barba, rasparam
a minha cabeça com facas cegas, cuspiram no meu rosto e rasgaram
minha túnica branca, a qual eu comprara durante um arroubo típico
de um recém-convertido e que ficara do tamanho errado. Passei quatro
dias no hospital e, ao ter alta, procurei meu mulá em busca de
conforto. Com educação, ele me serviu chá numa tulipa e me
perguntou como eu me sentia a respeito da minha vocação.
Fui
embora no dia seguinte.
Eu
me diverti por um tempo com o judaísmo no recém-fundado estado de
Israel, mas, apesar de todas as minhas credenciais de ex-soldado
ferido na guerra a serviço da espionagem hebraica, estava claro que
eu não me adaptaria, e minha condição de ex-soldado dos odiados
britânicos também não ajudou. Vi homens e mulheres com marcas na
pele ainda azuladas das tatuagens de campos de concentração,
ajoelhando-se no Muro das Lamentações e chorando de alívio ao
verem as pedras que refletiam a luz do sol, e soube que não
pertencia àquele universo.
No
topo do monte Sinai, um padre católico me cumprimentou quando eu
subi em busca de um deus que atendesse às minhas preces. Eu me
ajoelhei aos seus pés, beijei sua mão, disse que sua presença ali
era um sinal, um sinal de que havia um deus e que ele tinha um
propósito para mim, então lhe contei a minha história. Ao final
foi ele quem se ajoelhou aos meus pés, beijou minha mão e disse que
eu era um sinal, um sinal enviado por Deus de que afinal sua vida
tinha um propósito, que através de mim sua fé havia sido renovada,
e falava sobre meus prodígios com um ar tão sincero que comecei a
duvidar deles eu mesmo. Ele disse que me levaria a Roma para conhecer
o papa, que eu teria uma vida de meditação e oração para decifrar
os mistérios da minha existência, e três dias depois acordei e o
encontrei no chão do meu quarto, nu, a não ser por um colar de
contas, ajoelhado e beijando minha mão enquanto eu dormia. Disse que
eu era um mensageiro e pediu desculpas por ter em algum momento
nutrido qualquer dúvida, e fugi pela janela dos fundos e pulei o
muro do jardim logo antes de o sol raiar.
Tendo
ouvido falar do misticismo e de filosofias que talvez conseguissem
explicar minha situação onde a teologia ocidental havia falhado,
rumei para a Índia. Cheguei em 1953, e foi fácil conseguir um
emprego de mecânico para uma sucessão de linhas aéreas comerciais
fadadas ao fracasso. Os fracassos em si quase nunca me afetavam;
podia acontecer de, uma segunda-feira, eu sair do trabalho empregado
por um homem e chegar para trabalhar na terça e encontrar meu antigo
contrato de trabalho destruído e um novo somente esperando pela
minha assinatura, idêntico, com todas as cláusulas, exceto a data e
o nome do empregador. A Índia vinha se recuperando de seu processo
de divisão, e eu estava no sul, longe da pior parte do derramamento
de sangue que manchou sua independência. Nehru era o
primeiro-ministro, e eu me vi completamente apaixonado, primeiro por
uma atriz cujos olhos pareciam olhar para mim e somente para mim da
tela do cinema, depois por uma sósia dela que vendia frutas no
aeroporto e nunca havia aberto a boca para falar uma palavra
importante durante toda a vida, a quem eu idolatrava de forma
humilhante e a quem cortejei de forma desastrosa. Já se observou que
até os mais velhos de nós, kalachakra, são movidos por um certo
incentivo biológico, não importando a idade da nossa mente. Quando
criança, senti apenas o incentivo biológico para crescer e o
desalento intelectual que o processo provocava. Quando adolescente,
lutei contra a depressão mantendo-me ocupado e prestando atenção
às conspirações da Mansão Hulne. Já homem, no auge da vida,
sentia mais do que nunca o impulso, a vontade de cair no mundo e
desafiá-lo como um toureiro na arena. Viajei em busca de respostas,
discuti com homens que retrucavam, amei até o fundo da alma e fui
rejeitado até o fundo do coração, e idolatrei Meena Kumari, deusa
de Bollywood, como símbolo da perfeição, embora não falasse uma
palavra de híndi quando vi seus filmes pela primeira vez.
Não
encontrei respostas nem no amor nem em Deus. Falei de ressurreição
e reencarnação com os brâmanes, e eles me disseram que, se eu
vivesse uma vida boa e pura, poderia retornar como algo maior do que
eu mesmo.
— E
como eu mesmo? Posso retornar como eu mesmo?
A
questão causou comoção entre os sábios do hinduísmo para os
quais perguntei. Gosto de pensar que fui eu a introduzir os primeiros
indícios da física relativística no discurso deles, enquanto
acadêmicos debatiam com fervor se, na natureza, a ressurreição
precisava se dar na mesma linha temporal. Por fim a resposta veio de
um sábio barrigudo com bons hábitos alimentares, que proclamou,
— Não
seja ridículo, inglês! Você melhora ou piora, mas todas as coisas
mudam!
A
resposta pouco me satisfez, e, com as economias de dez anos
consertando o mesmo jato que tinha um nome diferente a cada semana,
eu me mudei. A China era bem pouco acolhedora, e o momento não era
bom para uma visita ao Tibete, então rumei para o sul, desviando de
Vietnã, Tailândia, Birmânia e Nepal, tentando me movimentar por
lugares que os americanos não invadiriam ou uma guerra civil não
estava prestes a ser deflagrada. Raspei a cabeça e passei a comer
apenas vegetais, aprendi a rezar em voz alta usando palavras
incompreensíveis e perguntei a cada representação de Buda, de
Gautama a suas dez mil encarnações, por que eu era daquele jeito, e
se a morte seguinte seria a minha última. Ganhei certa reputação,
a de inglês que sabia o discurso de todas as religiões, que era
capaz de argumentar com qualquer monge ou imame, padre ou pastor,
sobre qualquer questão filosófica que eles fossem capazes de
levantar, contanto que se referissem à alma imortal. Em 1969, recebi
a visita de um homem alegre com óculos de aro redondo que se sentou
de pernas cruzadas à minha frente na minha choupana e disse:
— Boa
tarde, venerado senhor. Meu nome é Shen. Venho aqui representando
uma instituição interessada, e estou aqui para descobrir suas
intenções.
Na
época, eu morava em Bangcoc e tinha descoberto que, por mais puras
que fossem minhas orações, elas não aliviavam as penúrias
provocadas pelos fungos tropicais que se desenvolvem nas dobras da
pele quando se vive numa selva úmida. Os jornais publicavam
histórias sobre a grandeza do governo em letras garrafais e negrito,
e, em letras de corpo bem menor e usando uma tinta preta melancólica,
boatos a respeito de guerrilhas comunistas nas montanhas. Eu custava
a crer que aquele enésimo caminho me conduziria à iluminação, mas
sabia que estava ficando velho demais para acreditar em qualquer
outra coisa, então dividi o tempo entre consertar carros com minha
túnica laranja e meditar sobre o que faria se não fosse capaz de
morrer.
Com
o rosto tão reluzente quanto uma castanha-da-índia e uma camisa
azul grudenta de suor nas costas e nas axilas, o senhor Shen ergueu
os óculos de leve e acrescentou:
— Você
está aqui para se dedicar a atividades contrarrevolucionárias?
Eu
havia passado por uma fase de dar respostas místicas e sábias, mas,
francamente, em certo momento ficamos velhos demais para essas
coisas, então soltei:
— Você
trabalha para os serviços de segurança chineses?
— É
claro, venerado senhor — entoou ele, inclinando-se numa reverência
mesmo sentado com as mãos juntas, do jeito que os tailandeses
demonstram respeito ao tratar com um professor. — Temos pouquíssimo
interesse neste país, mas algumas pessoas têm sugerido que você é,
na verdade, um agente imperialista do Ocidente que pretende se aliar
às forças contrarrevolucionárias com esse separatista burguês que
chamam de Dalai Lama, e que seu templo é um polo de subversão
capitalista criado para atacar o coração do nosso povo glorioso.
Ele
respondeu de um jeito tão cordial que eu me vi forçado a perguntar:
— E
isso é ruim?
— É
claro que é ruim, venerado senhor! Esse tipo de atividade subversiva
seria motivo para represália por parte do meu governo, embora seja
claro que — um breve sorriso, brilhante e alegre —, naturalmente,
você seria protegido por seus aliados imperialistas, e sem dúvida
isso causaria repercussões.
— Ah!
— exclamei, enfim compreendendo. — Você está ameaçando me
matar?
— Eu
odiaria que chegasse a esse ponto, venerado senhor, ainda mais porque
acredito que você é apenas um inglês excêntrico em busca de uma
vida tranquila.
— Como
você me mataria? Seria rápido?
— Eu
gostaria que sim! Ao contrário da propaganda do seu governo, não
somos bárbaros.
— E
eu precisaria saber? Seria possível, por exemplo, você me matar sem
dor, enquanto eu durmo? Isso seria uma opção?
Um
olhar consternado atravessou o rosto de Shen enquanto ele considerava
a possibilidade.
— Imagino
que seria conveniente para todos os envolvidos que sua morte
parecesse indolor e natural. Se você estivesse acordado, sem dúvida
haveria briga e sinais de autodefesa, o que seria inaceitável para
um monge, mesmo que seja um monge porco imperialista. Você... não é
um porco imperialista, é?
— Eu
sou inglês — salientei.
— Existem
muitos ingleses comunistas.
— Não
sou comunista.
Indeciso,
Shen mordeu o lábio inferior e correu os olhos pelos cantos da sala,
como se esperasse encontrar uma rachadura na parede de bambus por
onde um rifle pudesse aparecer. Então, abafando a voz, murmurou:
— Espero
que não seja um agente imperialista, venerado senhor. Recebi ordens
de compilar o dossiê contra você e não encontrei evidências de
que você seja algo diferente de um louco inofensivo com crenças
antiquadas. Meu trabalho ficaria bem manchado se você se revelasse
um espião.
— Com
certeza não sou espião — garanti.
Shen
pareceu aliviado.
— Obrigado,
senhor! — exclamou, enxugando a testa com a manga da camisa e logo
depois pedindo desculpas por aquela suada falta de desrespeito. —
De fato parecia bem pouco provável, mas, nos tempos em que vivemos,
é preciso ser meticuloso.
— Aceita
um chá?
— Não,
obrigado. Não posso ser visto confraternizando desnecessariamente
com o inimigo.
— Pensei
que você havia concluído que eu não era o inimigo.
— Você
é ideologicamente corrompido, mas inofensivo — corrigiu ele.
Ao
dizer isso, e depois de abundantes reverências, Shen se encaminhou à
porta.
— Senhor
Shen — chamei-o.
Ele
parou à porta, e seu rosto traía a expressão tensa de um homem que
sinceramente esperava não estar prestes a ficar mais atarefado.
— Eu
não consigo morrer — expliquei com educação. — Eu nasço,
vivo, morro, nasço outra vez, mas é a mesma vida. Por acaso seu
governo tem alguma informação a respeito disso que me possa ser
útil?
Ele
sorriu, dessa vez com uma verdadeira expressão de alívio tomando
conta de suas feições.
— Não,
venerado senhor. Obrigado pela cooperação. — Então, um adendo: —
Boa sorte com esse assunto.
Shen
abriu a porta e saiu.
Ele
foi o primeiro espião que conheci, e Franklin Phearson foi o
segundo. Dos dois, acho que preferi Shen.
Claire North, in As primeiras quinze vidas de Harry August
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