segunda-feira, 3 de abril de 2023

A morte

O amor e a morte – É à humanidade, e não às individualidades, insignificantes e miseráveis, que se pode assegurar a duração – O que o sono é para o indivíduo é a morte para a espécie – Só a vontade é indestrutível – Eternidade da matéria – Suprema indiferença da natureza perante a ruína dos seres que, pela morte, recaem no seu seio

A morte é o gênio inspirador, a musa da filosofia… Sem ela, dificilmente ter-se-ia filosofado.
Nascimento e morte pertencem igualmente à vida, e formam um contrapeso; um é a condição da outra; são as duas extremidades, os dois pólos de todas as manifestações da vida. É o que a mitologia hindu, a mais sábia de todas as mitologias, exprime por um símbolo, dando como tributo a Shiva, o Deus da Destruição, um colar de caveiras, e o Lingam, órgão e símbolo da geração; porque o amor é a compensação da morte, o seu correlativo essencial; neutralizam-se, suprimem-se um ao outro. – Por isso os gregos e os romanos adoravam esses preciosos sarcófagos que ainda hoje se veem, com baixos relevos figurando festas, danças, casamentos, caçadas, combates de animais, bacanais, numa palavra, imagens da vida mais alegre, mais animada, mais intensa, até mesmo grupos voluptuosos, sátiros unidos a cabras. O seu fim tendia evidentemente a preocupar o espírito da maneira mais sensível com o contraste da morte do homem que se chora, encerrado no túmulo, e da vida imortal da natureza.
A morte é a solução dolorosa do laço formado pela geração com voluptuosidade, é a destruição violenta do erro fundamental do nosso ser; o grande desengano.
A individualidade da maioria dos homens é tão miserável e tão insignificante que nada perde com a morte: o que neles pode ter ainda algum valor, isto é, os traços gerais da humanidade, subsiste nos outros homens. É à humanidade, e não ao indivíduo, que se pode assegurar a duração.
Se fosse concedida ao homem uma vida eterna, a rígida mutabilidade do seu caráter e os acanhados limites da sua inteligência parecer-lhe-iam com o tempo tão monótonos e inspirar-lhe-iam um tão grande aborrecimento que, para se livrar deles, acabaria por preferir o nada. Exigir a imortalidade do indivíduo é querer perpetuar um erro. Porque toda individualidade é um erro especial, um engano, qualquer coisa que não deveria existir; e o verdadeiro fim da vida é nos livrarmos dela. Prova-o bem o fato de que a maioria dos homens, pode-se dizer todos os homens, são constituídos de tal modo que não poderiam ser felizes, fosse qual fosse o mundo onde sonhassem se encontrar. Se esse mundo fosse isento de miséria e de dor, tornar-se-iam a presa do tédio, e na medida em que pudessem fugir a esse mal, recairiam nas misérias, nos tormentos, nos sofrimentos. Não bastaria, portanto, para conduzir o homem a um estado melhor, colocá-lo num mundo também melhor; seria necessário transformá-lo inteiramente, proceder de modo que deixasse de ser o que é, e se tornasse o que não é. Deve, pois, necessariamente, cessar de ser o que é; essa condição preliminar é a morte que a realiza, e desse ponto de vista concebe-se-lhe a necessidade moral. Ser colocado num outro mundo, e mudar totalmente de ser, é no fundo uma só e mesma coisa. Mas desde o momento em que a morte pôs termo a uma consciência individual, seria para desejar que essa mesma consciência fosse de novo reanimada para durar uma eternidade? O que ela contém, a maior parte do tempo? Nada mais do que uma torrente de pensamentos insignificantes, acanhados, terrestres, cuidados sem fim. Deixá-los, pois, de uma vez por todas, repousar em paz.
Parece que o fim de toda atividade vital é um maravilhoso alívio para a força que a mantém: é o que explica, talvez, essa expressão de doce serenidade espalhada sobre o rosto da maioria dos mortos.
Quão longa é a noite do tempo sem limites comparada ao curto sonho da vida!
Quando no outono se observa o pequeno mundo dos insetos, e se nota que um prepara o leito para dormir o pesado e longo sono do inverno, que outro prepara o casulo para passar o inverno no estado de crisálida e renascer num dia de primavera com toda a mocidade e em plena perfeição, e que, enfim, esses insetos, na maior parte, pensando em repousar nos braços da morte, contentam-se em colocar cautelosamente o ovo no local favorável, para renascerem um dia rejuvenescidos, num novo ser, que é isso senão a doutrina da imortalidade ensinada pela natureza?
Ela desejaria fazer-nos compreender que entre o sono e a morte não há uma diferença radical, que nem um nem outro põe a existência em perigo. O cuidado com que o inseto prepara a célula, o buraco, o ninho, assim como o alimento para a larva que deve nascer na seguinte primavera, e feito isso, morre tranquilo, assemelha-se perfeitamente ao cuidado com que o homem arruma, à noite, o fato e prepara o almoço para o dia seguinte, indo depois dormir em sossego.
E esse caso não se daria se o inseto que deve morrer no outono, considerado em si mesmo e na sua verdadeira essência, não fosse idêntico ao que se deve desenvolver na primavera, assim como o homem que se deita é o mesmo que se levanta.
Observe o seu cão: como está sossegado e bem disposto. Milhares de cães morreram antes que ele nascesse. Mas o seu desaparecimento não perturbou absolutamente nada a ideia do cão; essa ideia não foi de modo nenhum obscurecida pela morte. Eis o motivo porque o seu cão se encontra tão fresco, tão cheio de força, como se fosse este o seu primeiro dia, e como se não devesse ter fim; por entre os seus olhos brilha o princípio indestrutível que está nele, o archaeus.
Que foi, pois, que a morte destruiu em tantos milhares de anos? Não foi o cão, ele está aí sem ter sofrido dano algum; foi a sua sombra, a sua figura, que a fraqueza do nosso entendimento não pode discernir senão no tempo.
A matéria, pela sua persistência absoluta, assegura-nos uma indestrutibilidade em virtude da qual aquele que fosse incapaz de conceber uma outra poderia consolar-se com a ideia de uma certa imortalidade. “O quê? – dir-se-ia – A persistência de um mero pó, de uma matéria bruta, seria a continuidade do nosso ser?”
Conhecem então esse pó, sabem o que ele é e o que pode ser? Antes de o desprezarem aprendam a conhecê-lo. Essa matéria que não é mais que pó e cinza, dentro em pouco dissolvida na água, vai se tornar num cristal, brilhar como os metais, lançar faíscas elétricas, manifestar o seu poder magnético… moldar-se em plantas e em animais, e do seu seio misterioso desenvolver enfim essa vida cuja perda atormenta a tal ponto o espírito acanhado. Não é, pois, nada, durar sob a forma dessa matéria?
Não conhecemos maior jogo de dados que o jogo do nascimento e da morte; preocupados, interessados, ansiosos pelo último ponto, assistimos a cada partida, porque aos nossos olhos tudo se resume a isso. A natureza, pelo contrário, que não mente nunca, a natureza, sempre franca e aberta, exprime-se a esse respeito de um modo muito diverso: diz ela que a vida ou a morte do indivíduo nada lhe importa; é o que exprime entregando a vida do animal e também a do homem a todos os acasos, sem empregar o mínimo esforço para salvá-los. Observem o inseto no nosso caminho: o mais pequeno desvio involuntário do nosso pé decide da sua vida ou da sua morte. Veja-se a lesma dos bosques, destituída de qualquer meio de fugir, de se defender, de enganar, de se ocultar, presa, exposta a todos os perigos; veja-se o peixe saltitar sem inquietação na rede ainda aberta; a rã cuja moleza impede de fugir e de se escapar; a ave, sob o olhar do falcão que paira por cima dela e que ela não vê; a ovelha, que o lobo espreita oculto no arvoredo; todas essas vítimas fracas, desarmadas, imprudentes vagueiam em meio a perigos ignorados, que a todo momento as ameaçam. A natureza – abandonando assim sem resistência os seus organismos, obras de uma arte infinita, não só à avidez do mais forte, mas ao mais cego dos acasos, à fantasia do primeiro imbecil que passa, à maldade da criança – exprime dessa maneira, no seu estilo lacônico, oracular, que o aniquilamento desses seres lhe é indiferente, que não pode prejudicá-la, que nada significa, e que em casos idênticos a causa é tão indiferente como o efeito…
Portanto, quando essa mãe soberana, universal, expõe sem escrúpulo algum dos filhos a mil perigos iminentes, sabe que, quando sucumbem, é para voltarem ao seu seio onde os conserva ocultos; a sua morte não passa de uma brincadeira. Sucede com o homem o mesmo que com os animais. O oráculo da natureza estende-se a nós; a nossa vida ou a nossa morte não a comove, e não deveria comover-nos, porque também fazemos parte da natureza.
Essas considerações reconduzem-nos à nossa própria espécie, e, se olharmos para um futuro muito distante e procurarmos representar-nos, as gerações futuras com os seus milhões de indivíduos humanos, diferentes de nós pelos seus usos e costumes, dirigimos esta pergunta a nós mesmos: donde virão todos? onde estão agora? – onde se acha o ubérrimo seio do nada, produtor do mundo, que oculta ainda as gerações futuras?
Mas a essa pergunta, deve-se sorrir e responder: onde poderia ser senão onde toda a realidade é e será, no presente e no que ele contém; em si, portanto, insensato perguntador, que desconheces a tua própria essência, e assemelhas-te à folha na árvore, que, quando chega o outono, murchando e pensando que vai cair, se lamenta pela sua queda e não busca consolação à vista da fresca verdura que na primavera há de adornar a árvore. Ela diz e geme: “já não sou eu, serão outras folhas”. – Oh! folha insensata! onde queres tu ir, e donde poderiam vir as outras folhas? Onde está esse nada cujo abismo temes? – Reconhece, pois, o teu próprio ser nessa força íntima, oculta, sempre ativa da árvore, que por meio de todas as suas gerações de folhas não é atingida pelo nascimento nem pela morte. Não sucede com as gerações dos homens o mesmo que com as das folhas?

Arthur Schopenhauer, in As dores do mundo

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