A
arte é uma redenção – Ela livra da vontade, e portanto da dor –
Torna as imagens da vida cheias de encanto – A sua missão é
reproduzir-lhe todas as cambiantes, todos os aspectos – Poesia
lírica – Tragédia, comédia – Pintura – Música; a ação do
gênio é aí mais sensível do que noutra arte
Todo
desejo nasce de uma necessidade, de uma privação, de um sofrimento.
Satisfazendo-o, acalma-se; mas embora se satisfaça um, quantos
permanecem insaciados! De mais, o desejo dura muito tempo, as
exigências são infinitas, o gozo é curto e avaramente medido. E
mesmo esse prazer, uma vez obtido, é apenas aparente; sucede-lhe
outro: o primeiro é uma ilusão dissipada; o segundo, uma ilusão
que dura ainda. Nada há no mundo capaz de apaziguar a vontade, nem
fixá-la de um modo duradouro; o mais que se pode obter do destino
parece sempre uma esmola, que se lança aos pés do mendigo, que só
conserva a vida hoje para prolongar o seu tormento amanhã. Assim,
enquanto estamos sob o domínio dos desejos, sob o império da
vontade, enquanto nos abandonamos às esperanças que nos acometem,
aos temores que nos perseguem, ele não é para nós nem repouso nem
felicidade amável. Quer nos encarnicemos em qualquer perseguição
ou fujamos ante qualquer ameaça, agitados pela expectativa ou pela
apreensão, no fundo é a mesma coisa: os cuidados, que nos causam as
exigências da vontade sob todas as formas, não cessam de nos
perturbar e atormentar a existência. Assim o homem, escravo da
vontade, está continuamente preso à roda de Ixion, enche sempre o
tonel das Danaides, é o Tântalo devorado de eterna sede.
Mas
quando uma circunstância estranha ou a nossa harmonia interior nos
arrebata por um momento à torrente infinita do desejo, nos livra o
espírito da opressão da vontade, nos desvia a atenção de tudo que
a solicita, e as coisas nos aparecem desligadas de todos os
prestígios da esperança, de todo interesse próprio, como objetos
de contemplação desinteressada e não de cobiça; é então que
esse repouso, frustrantemente procurado nos caminhos abertos do
desejo, mas que sempre nos fugiu, se apresenta e nos dá o sentimento
da paz em toda a sua plenitude. É esse o estado livre de dores que
celebrava Epicuro como o maior de todos os bens, como a felicidade
dos deuses; porque nos vemos por um momento livres da pesada pressão
da vontade, celebramos o Sabat depois dos trabalhos forçados da
vontade, a roda de Ixion pára… Que importa então que se goze o
pôr-do-sol da janela de um palácio, ou por entre as grades de uma
prisão!
Acordo
íntimo, predomínio do puro pensamento sobre a vontade, pode
produzir-se em todo lugar. Testemunhas são esses admiráveis
pintores holandeses, que souberam ver de um modo tão objetivo coisas
tão pequenas, e que nos deixaram uma prova tão duradoura de
desinteresse e de placidez de espírito nas cenas íntimas. O
espectador não pode observá-las sem se comover, sem se representar
o estado de espírito do artista, tranquilo, sereno, com o maior
sossego, tal como era necessário para fixar a atenção sobre
objetos insignificantes, indiferentes, e reproduzi-los com tanta
solicitude; e a impressão é ainda mais forte porque observando-nos
a nós mesmos, admiramo-nos dos contrastes dessas pinturas tão
calmas com os nossos sentimentos sempre obscurecidos, sempre agitados
pelas inquietações e pelos desejos.
Basta
lançar um olhar desinteressado sobre qualquer homem, qualquer cena
da vida, e reproduzi-los com a pena ou o pincel para que logo pareçam
cheios de interesse e de encanto, e verdadeiramente dignos de inveja;
mas se tomamos parte nessa situação, se somos esse homem, oh!
então, como muitas vezes se diz, só o diabo poderia sustentá-la. É
o pensamento de Goethe:
De
tout se qui nous chagrine dans la vie
La
peinture nous plait…(1)
Quando
eu era novo, houve um tempo em que me esforçava incessantemente para
representar todos os meus atos, como se se tratasse de uma outra
pessoa. – Provavelmente para melhor gozá-los.
As
coisas só têm atrativo enquanto não nos tocam. A vida nunca é
bela, só os quadros da vida são belos, quando o espelho da poesia
os ilumina e os reflete, principalmente na mocidade, quando ignoramos
ainda o que é viver.
Apoderar-se
da inspiração no seu voo e dar-lhe um corpo nos versos, tal é a
obra da poesia lírica. E é contudo a humanidade inteira, nos seus
íntimos arcanos, que reflete o verdadeiro poeta lírico; e todos os
sentimentos que milhões de gerações passadas, presentes e futuras
experimentaram e hão de experimentar nas mesmas circunstâncias que
se reproduzirão sempre encontram na poesia a expressão viva e fiel…
O poeta é homem, universal: tudo o que agitou o coração de um
homem, tudo o que a natureza humana, em todas as circunstâncias pôde
experimentar e produzir, tudo o que reside e fermenta num ser mortal
– é esse o seu domínio que se estende a toda a natureza. Por isso
o poeta pode contar tão bem a voluptuosidade como o misticismo, ser
Angelus Silésius ou Anacreonte, escrever tragédias ou comédias,
representar sentimentos nobres ou vulgares, segundo a fantasia ou a
vocação. Ninguém poderia prescrever ao poeta ser nobre, elevado,
moral, piedoso e cristão, ser ou não ser isto ou aquilo, porque ele
é o espelho da humanidade e apresenta-lhe a imagem clara e fiel do
que ela sente.
É
um fato deveras notável e realmente digno de atenção que o objeto
de toda a alta poesia seja a representação do lado medonho da
natureza humana, a dor sem nome, os tormentos dos homens, o triunfo
da maldade, o domínio irônico do acaso, a queda irremediável do
justo e do inocente: é este um sinal notável da constituição do
mundo e da existência… Não vemos nós na tragédia os entes mais
nobres, após longos combates e prolongados sofrimentos, renunciarem
para sempre aos desígnios que até ali perseguiam com violência, ou
desviarem-se de todos os gozos da vida voluntariamente e com prazer:
como o príncipe de Calderon; Gretchen, no Fausto; Hamlet, a
quem o fiel Horácio seguiria da melhor vontade, mas que lhe promete
ficar e viver ainda algum tempo num mundo tão cruel, tão cheio de
dores, para contar o destino de Hamlet e purificar-lhe a memória;
assim também Joana d’Arc, e a noiva de Messine: todos morrem
purificados pelos sofrimentos, isto é, depois de se extinguir neles
a vontade de viver…
O
verdadeiro sentido da tragédia é essa observação profunda, que as
faltas espiadas pelo herói não são as dele, mas as faltas
hereditárias, isto é, o próprio crime de existir:
Pues
el delito mayor
Del
hombre es haber nacido.(2)
A
tendência e o último objeto da tragédia é inclinar-nos à
resignação, à negação da vontade de viver; a comédia, é certo,
como toda representação da vida humana, coloca-nos inevitavelmente
diante dos olhos os sofrimentos e os lados repugnantes, mas mostra-os
como males passageiros, que acabam por desaparecer numa alegria
final, como um misto de sucessos, de vitórias e de esperanças que
triunfam por fim; e, além disso, faz sobressair o que há de
constantemente alegre, risível, até nas mil e uma contrariedades da
vida, a fim de nos conservar de bom humor, seja em que circunstância
for. Afirma, portanto, como último resultado, que a vida considerada
no seu conjunto é muito boa, sobretudo agradável e muito divertida.
É preciso, bem entendido, deixar cair o pano depressa sobre o alegre
desenlace, para que não se possa ver o que sucede em seguida;
enquanto, geralmente, a tragédia acaba de tal modo que não pode
suceder mais nada.
O
poeta épico ou dramático não deve ignorar que ele é o destino e
que deve ser implacável como este – ele é ao mesmo tempo o
espelho da humanidade e tem de apresentar na cena caracteres maus e
por vezes infames, loucos, tolos, espíritos acanhados, de vez em
quando um personagem razoável ou prudente, ou bom, ou honesto, e
muito raramente, com a mais singular das exceções, um caráter
generoso. – Em todo Homero, não há, me parece, um caráter
verdadeiramente generoso, embora se encontrem muitos bons e honestos;
em Shakespeare, acha-se um ou dois e ainda assim, na sua nobreza,
nada há de sobre-humano, é Cordélia, Coriolano; seria difícil
enumerar mais algum, enquanto os outros se cruzam aí em quantidade…
Na Minna de Barnhelm, de Lessing, há excesso de escrúpulo e
de nobre generosidade de todos os lados. De todos os heróis de
Goethe, combinados e reunidos, dificilmente se formaria um caráter
de uma generosidade tão quimérica como o Marquês de Posa.
Não
há um só homem nem uma só ação que não tenha a sua importância;
em todos e entre tudo, se desenvolve mais ou menos a ideia da
humanidade. Não há circunstância na existência humana que seja
indigna de ser reproduzida pela pintura. Por isso mostram-se injustos
para com os admiráveis pintores da escola holandesa, quando se
limitam a louvar-lhes a habilidade técnica; com respeito ao resto,
olham-nos de cima, com desdém, porque representam, a maior parte das
vezes, fatos da vida comum, e só se confere importância aos
assuntos históricos ou religiosos. Dever-se-ia primeiro pensar que o
interesse de uma ação não tem relação alguma com a sua
importância exterior, e que há, por vezes, entre os dois uma grande
diferença.
A
importância exterior de uma ação avalia-se pelas suas
consequências para o mundo real e no mundo real. A sua importância
interior é a vista profunda que ela nos oferece da própria essência
da humanidade, colocando em plena luz certos lados dessa natureza,
muitas vezes despercebidos, escolhendo certas circunstâncias
favoráveis em que as particularidades se exprimem e se desenvolvem.
A
importância interior só tem valor para a arte, a exterior, para a
história. Uma e outra são absolutamente independentes, e tanto
podem se encontrar separadas como reunidas. Um ato capital na
história pode, considerado em si mesmo, ser da última banalidade,
da última insignificância; e, reciprocamente, uma cena da vida
cotidiana, uma cena íntima, pode ter um grande interesse ideal, se
coloca em plena e brilhante luz seres humanos, atos e desejos humanos
até os mais ocultos recônditos. Sejam quais forem a importância do
fim que se prossegue e as consequências do ato, o traço da natureza
pode ser o mesmo; assim, por exemplo, quer sejam ministros inclinados
sobre um mapa disputando-se territórios e povos, quer sejam os
camponeses numa taberna discutindo por causa de um jogo de cartas ou
dados, não importa absolutamente nada: assim como é indiferente
jogar o xadrez com peões de ouro ou com figuras de madeira.
A
música não exprime nunca o fenômeno, mas unicamente a essência
íntima de todo fenômeno, numa palavra, a própria vontade.
Portanto, não exprime uma alegria especial ou definida, certas
tristezas, certa dor, certo medo, certo transporte, certo prazer,
certa serenidade de espírito, mas a própria alegria, a tristeza, a
dor, o medo, os transportes, o prazer, a serenidade do espírito;
exprime-lhes a essência abstrata e geral, fora de qualquer motivo ou
circunstância. E, todavia, nessa quinta essência abstrata, sabemos
compreendê-la perfeitamente.
A
invenção da melodia, a descoberta de todos os segredos mais íntimos
da vontade e da sensibilidade humana, é a obra do gênio. A sua ação
é aí mais visível que em qualquer outro assunto, mais irrefletida,
mais livre de toda intenção consciente, é uma verdadeira
inspiração. A ideia, isto é, o conhecimento preconcebido das
coisas abstratas e positivas é, neste ponto como em toda a arte,
absolutamente estéril: o compositor revela a essência mais íntima
do mundo e exprime a sabedoria mais profunda numa linguagem que a sua
razão não compreende; do mesmo modo que uma sonâmbula dá
respostas claríssimas a respeito de assuntos sobre os quais,
desperta, não tem conhecimento algum.
O
que há de íntimo e inexplicável em toda música, o que nos procura
a visão rápida e passageira de um paraíso familiar e inacessível
ao mesmo tempo, que compreendemos e que contudo não lograríamos
explicar, é ela dar uma voz às profundas e surdas agitações do
nosso ser, fora de toda a realidade, e por conseguinte, sem
sofrimento.
Assim
como há em nós duas disposições essenciais do sentimento, a
alegria ou ainda o bom humor, a aflição ou ainda a melancolia,
assim a música tem duas tonalidades gerais correspondentes, o
sustenido e o bemol, e conserva-se quase sempre numa ou noutra. Mas
na verdade não é extraordinário que haja um sinal – o bemol –
exprimindo a dor, que não seja doloroso, nem fisicamente, nem sequer
por convenção, e contudo tão expressivo que ninguém se possa
enganar? Por esse fato se pode avaliar a que ponto a música entra na
natureza íntima do homem e das coisas. Entre os povos do Norte, cuja
existência é submetida a tão rudes provas, mormente entre os
russos, é o bemol que domina, mesmo na música de igreja.
O
allegro em bemol é muito frequente na música francesa, e
muito característico; é como se alguém fosse dançar com sapatos
que o incomodassem.
As
frases curtas e claras da música de dança de andamento rápido só
parecem exprimir uma felicidade comum, fácil de atingir; o allegro
maestoso, com as suas grandes frases, exprime um esforço grande
e nobre, para um fim distante que se acaba por atingir. O adágio
fala-nos dos sofrimentos de um grande e nobre esforço, que despreza
toda a alegria mesquinha. O que é, porém, mais surpreendente, é o
efeito do bemol e do sustenido. Não é admirável que a mudança de
um meio tom, a introdução de uma terça menor em lugar de uma
maior, dê imediatamente uma sensação inevitável de dor e de
inquietação, de que o sustenido logo nos livra? O adágio em bemol
eleva-se até a expressão da dor suprema, torna-se um queixume
dilacerante. A música de dança em bemol exprime a decepção de uma
felicidade medíocre, que se deveria desdenhar, dir-se-ia que nos
descreve a perseguição de algum fim inferior, obtido finalmente
depois de muitos esforços e aborrecimentos.
Uma
sinfonia de Beethoven descobre-nos uma ordem maravilhosa sob a
desordem aparente; é como um combate encarniçado, que passado um
momento se resolve num belo acordo: é o rerum concordia
discors(3) – uma imagem fiel e perfeita da essência
deste mundo, que gira dentre o espaço sem pressa e sem repouso, num
tumulto indescritível de formas sem número, que se dissipam
incessantemente. Mas ao mesmo tempo, por meio desta sinfonia falam
todas as paixões, todas as comoções humanas, alegria, tristeza,
amor, ódio, medo, esperança, com infinitos cambiantes, e contudo
perfeitamente abstratas, sem coisa alguma que as distinga nitidamente
umas das outras. É uma forma sem matéria, como um mundo de
espíritos aéreos.
Depois
de haver meditado longamente sobre a essência da música, recomendo
o gozo dessa arte como a mais deliciosa de todas. Não há outra que
atue mais diretamente, mais profundamente, porque também não há
outra que revele mais diretamente e mais profundamente a verdadeira
natureza do mundo. Ouvir longas e belas harmonias é como um banho de
espírito: purifica de toda a mancha, de tudo o que é mau,
mesquinho; eleva o homem e sugere-lhe os pensamentos mais nobres que
lhe seja dado ter, e ele então sente claramente tudo o que vale, ou
antes, quanto poderia valer.
Quando
ouço música, a minha imaginação compraz-se muitas vezes com o
pensamento de que a vida de todos os homens e a minha própria vida
não são mais do que sonhos de um espírito eterno, bons e maus
sonhos; de cada morte é o despertar.
(1)
Dentre tantas coisas que nos causam infelicidade na vida, / A
pintura nos dá prazer…
(2)
Então, o maior crime / Do homem é ter nascido.
(3)
A harmonia dissonante das coisas.
Arthur Schopenhauer, in As dores do mundo
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