[…]
Em Alepo era só poeira. Afra não queria ir embora. Todo mundo tinha
partido. Agora, até Mustafá estava desesperado para partir. Mas
Afra não. A casa de Mustafá ficava na estrada que dava para o rio,
e eu descia a colina para visitá-lo. Não era uma longa caminhada,
mas havia franco-atiradores e eu precisava tomar cuidado. Os
passarinhos cantavam normalmente. O som do canto dos pássaros nunca
muda. Mustafá me disse isso muitos anos atrás. E sempre que não
havia ruído de bombas, os passarinhos saíam para cantar.
Empoleiravam-se nos esqueletos de árvores, em crateras, fios e muros
destruídos e cantavam. Voavam lá para o alto, no céu intocado, e
cantavam.
Conforme
eu me aproximava da casa de Mustafá, podia ouvir, mesmo à
distância, o leve som de música. Sempre o encontrava sentado na
cama do seu quarto semibombardeado, um vinil tocando num velho
toca-discos, mordendo e inalando a ponta do seu cigarro, a fumaça
subindo em nuvens acima dele, ao seu lado, na cama, um gato
ronronando. Mas naquele dia, quando cheguei, Mustafá não estava lá.
O gato dormia no lugar onde ele costumava se sentar, sua cauda
enrolada ao redor do corpo. No criado-mudo, encontrei uma foto de nós
dois, tirada no ano em que abrimos nosso negócio em parceria.
Estávamos os dois apertando os olhos contra o sol, Mustafá no
mínimo trinta centímetros mais alto do que eu, os apiários atrás
de nós. Eu sabia que estávamos cercados por abelhas, embora elas
não fossem visíveis na foto. Debaixo da fotografia, havia uma
carta.
Caro
Nuri,
Às
vezes acho que se continuar andando, encontrarei alguma luz, mas sei
que posso andar até o outro lado do mundo e ainda haverá escuridão.
Não é como a escuridão da noite, que também tem a luz branca das
estrelas, da lua. Esta escuridão está dentro de mim, e não tem
nada a ver com o mundo exterior.
Agora,
tenho uma imagem do meu filho deitado naquela mesa, e nada pode
fazê-la se apagar. Vejo-o sempre que fecho os olhos.
Agradeço
por vir comigo todos os dias até o jardim. Se pelo menos tivéssemos
algumas flores para pôr no túmulo dele! Às vezes, em minha mente,
ele está sentado à mesa, comendo lakhma8. Com a outra mão, ele
cutuca o nariz, e depois limpa-a no short, e eu lhe digo para parar
de ser como o pai dele, e ele diz: “Mas você é meu pai!”, e ri.
Aquela risada. Posso ouvi-la. Ela voa acima da terra e desaparece à
distância com os passarinhos. Acho que isto é sua alma, agora ela
está livre. Ah, Alá, mantenha-me vivo enquanto for bom para mim, e
quando a morte for melhor para mim, leve-me.
Ontem,
saí para dar uma caminhada até o rio, e vi quando quatro soldados
enfileiraram um grupo de meninos. Vendaram-nos e atiraram neles, um a
um, e jogaram seus corpos no rio. Recuei e assisti a tudo isso, e
imaginei Firas ali parado, entre eles, o medo em seu coração,
sabendo que iria morrer, o fato de ele não poder ver o que estava
acontecendo e só poder ouvir os tiros. Espero que ele tenha sido o
primeiro da fila a morrer. Nunca pensei que um dia desejaria isto.
Também fechei os olhos e escutei, e entre os tiros e os baques de
corpos caindo, ouvi um menino chorando. Chamava pelo pai. Os outros
meninos estavam calados, temerosos demais para fazer um som. Num
grupo, sempre tem uma pessoa com mais coragem do que o resto. É
preciso bravura para gritar, para soltar o que existe no coração.
Então, ele foi silenciado. Eu tinha um rifle na mão. Encontrei-o na
semana passada, ao lado da rua, carregado com três balas. Então, eu
tinha três tiros e havia quatro homens. Esperei até eles estarem
com a guarda baixa, até se sentarem à margem do rio fumando
cigarros e colocando os pés na água onde haviam jogado os corpos.
Minha
pontaria foi boa. Acertei um na cabeça, um no estômago e o terceiro
no coração. O quarto homem ficou em pé e ergueu as mãos para
cima, e quando percebeu que já não me restavam tiros, partiu para
sua arma e eu corri. Ele viu meu rosto e eles vão me encontrar.
Preciso partir esta noite. Preciso chegar até Dahab e Aya. Não
devia ter esperado tanto tempo para partir, mas não queria ir sem
você e abandoná-lo aqui, no inferno.
Não
posso esperar aqui para me despedir. Você precisa convencer Afra a
partir. Você é compreensivo demais, sensível demais. Isto são
qualidades admiráveis quando se trata de trabalhar com abelhas, mas
não agora. Vou para a Inglaterra encontrar minha mulher e minha
filha. Saia deste lugar, Nuri, ele já não é nossa casa. Agora,
Alepo é como o cadáver de um ente amado, não tem vida, nem alma,
está cheia de sangue podre.
Lembro-me
da primeira vez em que você veio até os apiários do meu pai nas
montanhas, e ficou ali parado, cercado de abelhas, sem equipamento de
proteção, cobrindo os olhos com as mãos, e você me disse:
“Mustafá, é aqui que eu quero estar”, mesmo sabendo que seu pai
não ficaria feliz. Lembre-se disto, Nuri. Lembre-se da força que
você teve então. Pegue Afra e venha ao meu encontro.
Mustafá.
Sentei-me
na cama e chorei, solucei como uma criança. A partir daquele dia,
trago a fotografia e a carta no bolso, mas Afra não queria partir,
então eu saía todos os dias e explorava as ruínas à procura de
comida, e voltava com um presente para ela. Encontrava muitos
fragmentos estranhos, peças quebradas ou não da vida das pessoas:
um sapato de criança, uma coleira de cachorro, um celular, uma luva,
uma chave. Interessante achar uma chave quando não há portas para
abrir. Pensando nisso, ainda mais estranho era achar um sapato ou uma
luva quando já não existe mão ou pé para calçá-los.
Eram
presentes tristes. Mesmo assim, eu os oferecia a ela, colocava-os no
seu colo, esperando uma reação que nunca veio. Mas continuava
tentando. Era uma boa distração. Todos os dias eu saía e
encontrava uma coisa nova. Um dia, encontrei o melhor presente de
todos, uma romã.
– O
que você viu? – ela me perguntou, quando parei junto à porta.
Estava
sentada na cama de armar, onde Sami costumava dormir, de frente para
a janela, com as costas para a parede. Lembrou-me um gato, em seu
hijab preto, aquele rosto branco petrificado e grandes olhos cinza.
Nem um mínimo de expressão. Eu só conseguia entender como ela se
sentia pela sua voz, ou quando ela beliscava sua pele com tanta força
que sangrava.
O
cômodo cheirava a pão quente, a vida normal. Comecei a falar, mas
parei, e ela virou o ouvido para mim, com uma leve torção da
cabeça.
Vi
que ela tinha voltado a fazer pão.
– Você
fez khubz?– perguntei.
– Fiz
para o Sami, não para você. Mas o que foi que você viu? – ela
disse.
– Afra…
– Não
sou idiota, sabe? Não perdi o juízo. Só queria fazer um pouco de
pão para ele. Tudo bem pra você? Minha mente é mais perspicaz do
que a sua, não se esqueça. O que você viu?
– A
gente tem que fazer isto toda vez?
Olhei
para ela. Entrelaçou os dedos.
– Então...
as casas – comecei – parecem carcaças, Afra. Carcaças. Se você
pudesse vê-las, choraria.
– Você
me disse isto ontem.
– E
agora o armazém está vazio. Mas ainda tem frutas nos engradados
onde Adnan as deixou: romãs, figos, bananas e maçãs. E estão
todas podres, agora, e as moscas, milhares delas infestando no calor.
Mas remexi por lá e achei uma boa. E trouxe pra você. – Fui até
ela e coloquei a romã em seu colo. Ela a pegou, sentiu sua carne com
os dedos, girou-a, apertou-a nas mãos.
– Obrigada
– disse. Mas não havia qualquer expressão.
Eu
tinha esperança de que a romã fosse sensibilizá-la. Antes, ela
passava horas descascando-as e tirando as sementes. Cortava-as ao
meio, empurrava o centro um pouquinho para fora, depois começava a
bater nelas com uma colher de pau, e quando tinha enchido a vasilha
de vidro até o topo, sorria e dizia que tinha mil pedras preciosas.
Gostaria que ela sorrisse. Mas era um desejo estúpido e egoísta.
Ela não tinha nada pelo que sorrir. Seria melhor desejar que a
guerra chegasse ao fim. Mas eu precisava de algo em que me agarrar, e
se ela sorrisse, se por algum milagre ela sorrisse, seria como
encontrar água no deserto.
– Por
favor, me diga – ela não desistia. – O que você viu?
– Eu
te contei.
– Não,
você me contou o que viu ontem. Não o que viu hoje. E hoje você
viu alguém morrer.
– Sua
mente está te pregando peças. É toda essa escuridão.
Eu
não deveria ter dito isso. Pedi desculpas uma, duas, três vezes,
mas seu rosto não mudou.
– Eu
sei pelo jeito que você respirava quando entrou – ela disse.
– E
como é que eu estava respirando?
– Como
um cachorro.
– Eu
estava totalmente calmo.
– Calmo
como uma tempestade.
– Tudo
bem, então, quando saí da mercearia, fiz um pequeno desvio. Queria
ver se Akram ainda estava aqui, e peguei a longa estrada que leva a
Damasco, logo depois da ribanceira, naquela curva onde aquela
caminhonete vermelha costumava parar às segundas-feiras.
Ela
assentiu com um gesto de cabeça. Podia visualizar tudo, agora, em
sua mente. Precisava de todos os detalhes. Acabei percebendo isto;
ela precisava dos pequenos detalhes para poder ver o quadro por
inteiro, de modo a fingir que eram seus olhos que viam aquilo tudo.
Ela voltou a assentir com a cabeça, incitando-me a continuar.
– Então,
me aproximei atrás de dois homens armados e entreouvi-os fazendo
apostas sobre alguma coisa. Planejavam usar algo para praticar
pontaria. Quando concordaram com as apostas, percebi que falavam
sobre um menino de oito anos que brincava sozinho na rua. Para ser
sincero, não sei o que ele estava fazendo ali. Por que sua mãe
deixou-o…
– Que
roupa ele estava usando? – ela perguntou. – O menino de oito
anos, que roupa ele estava usando?
– Um
pulôver vermelho e short azul. Era um short jeans.
– E
de que cor eram seus olhos?
– Não
vi seus olhos. Imagino que fossem castanhos.
– É
um menino que eu conhecia?
– Pode
ser – respondi. – Eu não o reconheci.
– E
do que ele estava brincando?
– Tinha
um caminhão de brinquedo.
– De
que cor?
– Amarelo.
Ela
estava adiando o inevitável, segurando-se no menino vivo o maior
tempo possível, mantendo-o vivo. Deixei que ficasse em silêncio por
alguns momentos, enquanto ela revirava aquilo em sua mente. Talvez
estivesse memorizando as cores, os movimentos do menino. Ficaria com
aquilo.
– Continue
– disse.
– Percebi
tarde demais – eu disse. – Um deles tinha feito a aposta e
acertou na cabeça. Todo mundo correu e a rua ficou deserta.
– O
que você fez?
– Não
consegui me mexer. A criança estava deitada na rua. Não consegui me
mexer.
– Você
poderia ter levado um tiro.
– Não
foi um tiro certeiro, e ele não morreu na mesma hora. A mãe dele
estava dentro de casa, na mesma rua, e gritava. Ela queria ir até
ele, mas os homens continuaram disparando na rua, gritando. Gritavam:
“Você não pode ir até o seu filho. Você não pode ir até o seu
filho”.
Chorei
com o rosto nas mãos, pressionando as palmas contra os olhos. Queria
poder me livrar daquilo que vi. Queria me livrar de tudo.
Uma
bomba caiu na escuridão, o céu se iluminou com um clarão, e ajudei
Afra a se aprontar para dormir. A essa altura, ela sabia se
movimentar pela casa, sentindo as paredes com as mãos, palmas
abertas, pés arrastando-se, e conseguia fazer pão, mas à noite
queria que eu a despisse. Queria que eu dobrasse suas roupas,
colocasse-as na cadeira junto à cama, onde costumava colocá-las.
Tirei seu abaya, enquanto ela erguia os braços acima da cabeça,
como uma criança. Removi seu hijab e seu cabelo caiu sobre os
ombros. Então, ela se sentou na cama e esperou por mim, enquanto eu
me aprontava. Fazia silêncio naquela noite, não havia mais bombas,
e o quarto estava imerso em paz e luar.
Havia
uma imensa cratera naquele cômodo; faltavam a parede do outro lado e
parte do teto, deixando uma boca aberta para o jardim e o céu. O
jasmim sobre a marquise captou a luz, e atrás dele a figueira estava
escura, pendendo baixa sobre o balanço de madeira, aquele que fiz
para Sami. Mas era um silêncio oco; faltava o eco de vida. A guerra
estava sempre presente. As casas estavam vazias ou eram lares para
mortos. Os olhos de Afra brilhavam sob a luz fraca. Quis abraçá-la,
beijar a pele macia dos seus seios, perder-me nela. Por um minuto,
apenas um, esqueci. Então, ela se virou para mim como se pudesse me
ver, e, como se soubesse o que eu estava pensando, disse:
– Sabe,
se amarmos alguma coisa, ela será levada embora.
Nós
dois nos deitamos, e lá de longe veio o cheiro de fogo, coisas
queimadas e cinzas. Embora estivesse de frente para mim, ela não me
tocou. Não tínhamos feito amor desde a morte de Sami, mas às vezes
ela me deixava segurar na sua mão, e eu girava o dedo em volta da
sua palma.
– Temos
que ir, Afra – eu disse.
– Eu
já te disse. Não.
– Se
a gente ficar…
– Se
a gente ficar, morreremos – ela disse.
– Exatamente.
– Exatamente.
– Agora, seus olhos estavam abertos e vazios.
– Você
está esperando sermos atingidos por uma bomba. Se quiser que
aconteça isto, jamais acontecerá.
– Então,
vou parar de querer. Não vou deixá-lo.
Eu
estava prestes a dizer “Mas ele já se foi. Sami foi embora. Não
está aqui. Não está aqui no inferno, conosco, está em algum outro
lugar. E não estamos mais perto dele ficando aqui”. E ela
responderia: “Eu sei disso. Não sou idiota”.
Então,
fiquei calado. Percorri com o dedo o redor da sua palma, enquanto ela
esperava sermos atingidos por uma bomba. E quando acordei à noite,
estendi a mão para tocá-la, para ter certeza de que ela continuava
ali, de que ainda estávamos vivos. E no escuro, lembrei-me dos
cachorros comendo cadáveres humanos nos campos onde costumava haver
rosas, e em algum lugar à distância escutei um guincho selvagem,
metal com metal, como uma criatura sendo arrastada para a morte.
Coloquei a mão no peito dela, entre seus seios, e senti seu coração
bater. Voltei a dormir.
Christy Lefteri, in O homem que escutava as abelhas
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