I
O
Poeta está deitado de sapatos sobre a colcha de renda de bilros —
relíquia de Vovozinha.
— ...
e de melhores dias — suspira o Anjo, completando-lhe o pensamento.
— Anjo,
você está cada vez mais aburguesado.
— Essa
não, menino! Eu não sou comunista...
II
Do
ferro de engomar, que se assoprava por trás, saíam faíscas como do
traseiro do Diabo. As faces de Marianinha ficavam cada vez mais
afogueadas, mais lustrosas e lindas, como as maçãs artificiais que
havia no centro de mesa da sala de jantar. Não sei por que estou
evocando todos esses pormenores — eles não levam a nenhum enredo
notório, desculpem... Eu me aproximo como um gato, por trás.
III
O
auto que passa e a vitrina da esquina trocam um duelo de reflexos.
IV
Escarrapachadas
nas cadeiras da calçada, as comadres fazem trancinha. Nada lhes
escapa. Nem um ponto. Mas para o menino quieto que ali se acha a
tiracolo das tias o grande escândalo é a Lua, que acaba de surgir,
à traição, enorme, sangrenta, assassina — ao contrário de tudo
que se esperava dela —, logo ali entre as torres da igreja.
V
Noite
alta um bêbado passa cantando a marchinha de um antigo carnaval. Tem
uma voz de vidro moído. Uma voz aguda e esfarelada de velho.
VI
Um
rodar, um estrépito de patas. Abafadamente. Mas já não se haviam
sumido, há tempo, esses carros puxados a cavalo? Sia Carolina acorda
e benze-se. É a Morte! É a Morte que passa, no seu carro fantasma,
a visitar seus doentes.
Mário Quintana, in Caderno H
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