Vai
o título em castelhano porque assim foi a frase dita. Este escrito
também poderia chamar-se “Os silêncios de Marcos”, o que
esclarece tudo. A prosa de hoje refere-se ao mítico, ainda que muito
real, subcomandante. A poucas pessoas admirei tanto em minha vida, de
pouquíssimas esperei tanto. Nunca lho disse pela simples razão de
que estas coisas não se dizem, sentem-se e por aí se ficam. Questão
de pudor, parece. Quando os zapatistas saíram da Selva Lacandona
para chegarem ao Zócalo depois de terem atravessado meio México, eu
estava ali, um entre um milhão. Conheci a exaltação, o pulsar da
esperança em todo o corpo, a vontade de mudar para converter-me em
algo melhor, menos egoísta, mais capaz de entrega. Marcos falou,
nomeou todas as etnias de Chiapas, e a cada uma foi como se as cinzas
de milhões de índios se tivessem desprendido dos túmulos e outra
vez reencarnado. Não estou a fazer literatura fácil, tento,
canhestramente, pôr em palavras o que nenhuma palavra pode
expressar: o instante em que o humano se torna sobre-humano e, do
mesmo passo, regressa à sua mais estreme humanidade.
No
dia seguinte, no campus modesto de uma universidade, houve um comício
que reuniu alguns milhares de pessoas e aí se falou do presente e do
futuro de Chiapas, da luta exemplar das comunidades índias que eu
sonhava ver um dia estendida a toda a América (tranquilizem-se os
tímidos, não aconteceu). Na tribuna estavam, entre outros, Carlos
Monsivais, Elena Poniatowska, Manuel Vázquez Montalbán, eu próprio.
Todos falámos, mas o que a gente queria era ouvir Marcos. O seu
discurso foi breve, mas intenso, quase insuportável para o sistema
emotivo de cada um. Quando tudo terminou fui abraçar Marcos e foi
então que ele me disse ao ouvido, numa voz apenas sussurrada: “Não
nos abandones”. Respondi-lhe no mesmo tom: “Teria que
abandonar-me a mim mesmo para que isso sucedesse”. Nunca mais o vi
até hoje.
Pensei,
e disse-o, que Marcos deveria ter falado no Congresso. Por decisão
da comandancia interveio a comandante Esther, e fê-lo
admiravelmente. Comoveu o México inteiro, mas, repito, em meu
entender, era Marcos quem deveria ter falado. O significado político
de uma intervenção sua culminaria de maneira mais eficaz a marcha
zapatista. Assim pensava e assim continuo a pensar. O tempo passou, o
processo revolucionário variou os rumos, Marcos saiu da Selva
Lacandona. Durante o último ano Marcos guardou um silêncio total,
deixou-nos órfãos daquelas palavras que só ele saberia dizer ou
escrever. Sentimos-lhe a falta. No dia 1 houve em Oventic um encontro
para celebrar e recordar o início da revolução, a tomada de San
Cristóbal de las Casas, os altos e baixos de um caminho difícil.
Marcos não foi a Oventic, não mandou sequer uma mensagem, uma
palavra. Não compreendi, e continuo a não compreender. Marcos, há
poucos dias, anunciou para o ano que entrou uma nova estratégia
política. Oxalá, se a antiga perdeu as virtudes. Oxalá, sobretudo,
que não volte a calar-se. Com que direito o digo? Com o simples
direito de quem não abandonou. Sim, de quem não abandonou.
José Saramago, in O caderno
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