terça-feira, 14 de março de 2023

Naufrágios | Capítulo 1


Velhos chapéus de junco em forma de cone se moviam na zona de arrebentação. Borrifos de água erguiam-se das ondas, desde a extremidade dos rochedos que contornavam a praia até a orla de areia, onde as ondas quebravam com força para depois retornar.
A superfície da água estava coberta de espuma branca, devido à chuva incessante. Uma mistura de gotas de chuva e borrifos das ondas escorria pelos buracos no chapéu de Isaku. Havia apenas uma estreita faixa de areia naquela parte da costa rochosa, e ali, também, pessoas com chapéus de junco encontravam-se ocupadas recolhendo pedaços de madeira trazidos pelo mar.
Isaku esperou que a onda recuasse, então entrou na água e pegou um pedaço de madeira preso entre duas pedras. A julgar pelo formato em arco e pelos orifícios de pregos, deveria ser de um barco naufragado. A tábua estava firmemente presa às pedras, e seria difícil um menino de nove anos conseguir soltá-la com facilidade, mas quando Isaku apoiou o pé firmemente em uma das pedras e puxou, a madeira começou a se soltar.
Isaku correu de volta para a praia quando viu outra onda se aproximando, lançando gotículas de água no ar. Ouviu-a arrebentando às suas costas, e a água do mar jorrou ruidosamente sobre seu chapéu. Quando a onda começou a recuar novamente em direção do mar, ele entrou na água espumante e agarrou o pedaço de madeira outra vez.
Depois de várias tentativas, ele conseguiu mover um pouco a grande peça de madeira mais para perto, e por fim uma onda a carregou até a praia. Isaku agarrou-se nela para impedir que fosse levada pela onda seguinte. Enfiando os dedos nas depressões da madeira, ele puxou-a na direção da trilha que levava à aldeia.
Debaixo da chuva, outras pessoas caminhavam pela trilha carregando pedaços de madeira nas costas. A peça que Isaku puxava era consideravelmente maior que as dos outros, e era dura, de boa qualidade. Parecia-lhe um desperdício usá-la para queimar um corpo quando podia ser usada para fazer fogo em casa.
Quando Isaku chegou à trilha, uma mulher com chapéu de junco saiu da casa da família enlutada e o ajudou a carregar o pedaço de madeira. Juntos, puxaram-na para dentro da casa e a deixaram perto de uma pilha desarrumada de madeira no piso de terra, na parte mais baixa da sala.
Isaku desamarrou o chapéu e sentou-se na pilha de lenha, olhando ao redor. O falecido era um homem idoso, com mais de cinquenta anos, chamado Kinzo. Seu corpo estava nu, exceto por uma tira de pano que cobria o baixo-ventre. Quando Kinzo ficara doente demais para andar, ele perdera o apetite, e nos últimos dias a família não lhe oferecia nada além de água. Ninguém dava comida a uma pessoa que se tinha certeza que ia morrer.
Os defuntos que eram enterrados sentados eram colocados nessa posição, com as costas amarradas a uma tala funerária, as pernas dobradas nos joelhos e também amarradas com corda rústica de palha antes de o rigor mortis se instalar.
Os ossos de Kinzo estavam visíveis sob a pele; seu abdome estava esticado, rijo. A cabeça pendia ligeiramente para baixo e para a frente, revelando o ramo de cânhamo amarrado a uma cruz colocada nos ralos cabelos grisalhos para afastar os espíritos maus.
A mãe de Isaku estava limpando o esquife no chão, ao lado do cadáver. Uma grande panela de cozido de legumes, fornecidos pelos habitantes da vila, borbulhava sobre o fogo, o odor bafejando para baixo até o chão de terra.
A chuva se intensificou, abafando o barulho das ondas. Isaku olhou para a mão da mulher que mexia o cozido com uma concha.

Na manhã seguinte a chuva parou e um dia claro, típico de outono, se abriu.
As pessoas saíram de suas casas e se reuniram na casa da família enlutada.
Lá dentro, as mulheres idosas da vila entoavam sutras com vozes sussurrantes.
Isaku deixou a casa de Kinzo levando nas costas uma carga de madeira recolhida do mar. Ele juntou-se aos homens que também carregavam madeira nas costas pela trilha estreita que ia da vila até a montanha.
A face escarpada do morro, marcada por trechos de rocha aparente, erguia-se ameaçadoramente sobre a aldeia. As dezessete casinhas pareciam agarrar-se à faixa estreita da orla para não serem empurradas para o mar. Talvez em conseqüência da constante exposição à brisa salgada do oceano, as paredes de madeira das casas eram brancas, como que salpicadas por algum tipo de pó. Os telhados de sapé eram mantidos no lugar por pedras igualmente embranquecidas. Ao redor das casas, nas áreas onde o solo era menos inclinado, havia campos de plantação em terraços. Mesmo com adubo, o solo rochoso oferecia uma colheita escassa, apenas algumas variedades simples de milho miúdo.
Isaku seguiu os homens, saindo da trilha e entrando na floresta. O solo estava úmido por causa da chuva e havia aqui e ali uma poça de lama; às vezes era difícil manter-se em pé. Por fim, a vegetação foi se tornando menos densa e eles saíram para uma clareira onde havia uma fileira de lápides de pedra e de madeira. Os homens empilharam a lenha e os galhos secos ao lado do crematório, que consistia em um nicho de três paredes de pedra, a um canto da clareira.
Isaku sentou-se em uma pedra, perto dos homens. O suor lhe escorria da testa e pela nuca, mas a brisa do mar produzia um efeito refrescante. Ele olhou para sua pilha de lenha.
O longo e estreito cortejo fúnebre se afastava da casa de Kinzo pela trilha que acompanhava a orla. Na frente, uma bandeira branca desfraldava-se no alto de um bambu; logo atrás vinha o caixão, suspenso sobre uma vara grossa. Um grupo de crianças formava o final do cortejo.
Eu não quero morrer como ele — sussurrou um dos homens.
Kinzo havia ficado em casa desde o verão. Certo dia ele escorregara e batera as costas numa pedra quando pescava polvos com uma lança, nos recifes. Incapacitado para o trabalho, ele se tornara um fardo para a família. Em uma aldeia que lutava contra a fome, um inválido era considerado morto.
As pessoas lamentariam durante algum tempo, mas como acreditavam em reencarnação, aceitariam rapidamente a perda. A vida era dada às pessoas pelos deuses e, com a morte, o espírito partia para um lugar distante nos mares mas depois de algum tempo retornava à aldeia, para abrigar-se no útero de uma mulher e reencarnar numa criança. A morte era apenas um período de sono profundo antes do retorno do espírito; lamentações excessivas perturbavam o repouso da pessoa morta. As lápides dos túmulos ficavam de frente para o mar para guiar os espíritos na direção certa, quando chegasse o momento de regressar.
O cortejo começou a avançar com mais lentidão ao alcançar a trilha na encosta do morro. Enquanto observava a procissão, Isaku pensou no pai. Naquela primavera, seu pai tinha vendido a si mesmo como servo por três anos para um agente de transporte em um porto do sul que acolhia embarcações que faziam o roteiro leste-oeste. Seu pai partira com disposição, e sem dúvida agora estava trabalhando nos barcos. Aparentemente, ele tomara a decisão de tornar-se servo no fim do ano anterior, quando mais uma menina nascera. Isaku era o mais velho, a seguir vinham Isokichi e a menina Kane.
Isaku ouvira dizer que havia lugares onde se matavam os recém-nascidos, mas na sua aldeia não faziam isso. Uma gestação significava que o espírito de alguém que morrera havia retornado à aldeia, e o infanticídio era algo inadmissível, mesmo que a família estivesse a ponto de morrer de fome.
Em várias ocasiões, Isaku havia visto o corpo do pai mover-se de forma ritmada em cima da mãe, à noite, na semi-escuridão da casa deles, as pernas dela abertas e dobradas nos joelhos, os quais de súbito se esticavam para o alto. Ele sabia que estavam convidando os espíritos dos ancestrais para retornarem, mas sabia também que a chegada de outra criança tornaria a família ainda mais pobre.
Ao sul da aldeia ficavam os penhascos de um cabo que se projetava abruptamente mar adentro. O único caminho para o mundo exterior era a trilha que atravessava a montanha rumo ao norte. A trilha era íngreme e rochosa, beirava duas ravinas profundas e depois subia por uma encosta íngreme, cortando um bosque de árvores e vinhas. A aldeia devia o seu isolamento ao solo árido. Os habitantes percorriam essa trilha para chegar a outros vilarejos a fim de trocar frutos do mar por produtos agrícolas e outros alimentos. Mas isso não era suficiente para satisfazer a fome da população.
Uma maneira simples de evitar que a família morresse de fome era a servidão por contrato. No primeiro povoado do outro lado da montanha, havia um mercador de sal que também trabalhava como intermediário. Ele pagava uma boa quantia por um contrato. A família usava o dinheiro para comprar grãos, que levavam para casa.
Muitas das filhas eram vendidas, mas às vezes o pai da família vendia a si mesmo. Uma garota de catorze anos chamada Tatsu deixara a vila na mesma ocasião que o pai de Isaku, com um contrato de dez anos de servidão em troca de sessenta momme de prata, porém seu pai recebera o mesmo valor por um contrato de três anos, o que era sem dúvida um negócio muito bom. Seu pai era conhecido na aldeia por ser um homem muito forte, além de um timoneiro experiente.
Vou voltar daqui a três anos. Não deixe as crianças morrer de fome enquanto eu estiver fora.
O pai de Isaku havia olhado demoradamente para ele e para a mãe, parados diante da porta do escritório do intermediário.
Sua mãe comprara uma quantidade de grãos com parte do dinheiro, e os dois retornaram para a aldeia pela trilha montanhosa, carregando a carga nas costas. Isaku ficara impressionado com o feito do pai, de ter conseguido tanto dinheiro, e desejava ter um corpo admirável como o dele.
Todos os homens que tinham parado para descansar no cemitério haviam vendido filhos e filhas para ser servos. No outono anterior, o homem franzino sentado do lado de Isaku vendera a esposa por um contrato de cinco anos. Aqueles que haviam carregado a madeira e os galhos até o cemitério e os quatro que levavam o caixão eram os únicos homens remanescentes nas casas da aldeia.
Assim que avistaram os primeiros componentes do cortejo adentrando a floresta, os homens se levantaram. Ajeitaram as brasas no crematório e removeram a terra e as cinzas que bloqueavam os orifícios para a passagem do ar nas paredes de pedra. Depois de desamarrar os feixes de galhos secos, colocaram a madeira em cruzes paralelas contra as paredes internas.
Um sino badalou melancolicamente, indicando que o cortejo estava se aproximando. A mãe de Isaku carregava o bambu com a bandeira branca enrolada sob o braço, e o ergueu alto quando saíram para a clareira. Atrás do homem que tocava o sino vinham as mulheres idosas, entoando os surras, à frente do caixão. A mãe de Isaku fincou o bambu no solo e o caixão foi colocado ao lado do crematório. Os carregadores se sentaram no chão, abrindo as camisas e enxugando o suor da testa. Os homens que haviam preparado a pira desprenderam o caixão da vara usada para transportá-lo e o levaram até a pira. Seguindo as instruções dos homens, Isaku distribuiu pedaços de lenha nos espaços entre os galhos.
A fumaça ergueu-se assim que o galho de cânhamo em chamas foi lançado sobre a lenha, e logo os galhos estavam pegando fogo. Os que estavam sentados se levantaram e formaram um círculo junto às paredes. O sino tocou, e novamente os sutras foram recitados.
Quando a pilha de madeira entrelaçada pegou fogo, o caixão foi envolvido pelas chamas. A brisa do mar fazia as labaredas dançar, produzindo estalos e espalhando fagulhas.
Isaku e os homens haviam molhado algumas esteiras de palha no riacho, que agora jogavam no alto da pira, abafando as chamas para garantir que o corpo queimasse direito. Finalmente, o caixão se desmanchou e chamas multicoloridas começaram a se erguer do corpo exposto. Mais madeira foi colocada na pira, e mais esteiras molhadas em cima.
Depois que o corpo queimou até diminuir de tamanho, espigas de milho miúdo tostadas foram passadas de mão em mão. Isaku comeu enquanto olhava o fogo. As últimas pequenas chamas coloridas saltaram quando os homens cutucaram o corpo com varas, até que o fogo apagou por completo, e o corpo assumiu uma tonalidade viva de vermelho, de carvão em chamas.
O sol começou a se pôr.
A família de Kinzo iria passar a noite sob o teto de esteiras de palha improvisado sobre os galhos das árvores, no limite da clareira; na manhã seguinte, recolheriam os ossos. Os habitantes da vila juntaram as mãos em prece e então começaram a se afastar lentamente em direção à aldeia.
Isaku conduziu sua mãe corpulenta pela trilha da floresta, Ela havia batido nele repetidamente no passado. Era surpreendentemente forte, e às vezes seus bofetões o deixavam temporariamente surdo de um ouvido. Ela batia nele por vários motivos, mas na maioria das vezes por ser preguiçoso.
Olhe os peixes! — admoestava ela — Eles nunca diminuem a velocidade.
Ela era uma figura assustadora, mas ao mesmo tempo Isaku sentia uma espécie de segurança, pois sabia que podia confiar plenamente naquela mãe que batia nele sem dó.
Seguiram pela floresta e depois desceram a trilha da montanha. A paisagem era iluminada pela luz fraca do fim de tarde, e o mar brilhava. Eles podiam avistar os corvos voando em círculos ao redor do pequeno cabo.
A mãe de Isaku conversava com as mulheres idosas, enquanto seguiam trilha abaixo. Isaku estava feliz; pela primeira vez, tinha ajudado os homens a levar lenha para o crematório, para um funeral. Estava começando a ser tratado como adulto; em pouco tempo estaria carregando o caixão, junto com os homens. Mas era pequeno para sua idade, e de constituição franzina. Seu pai iria retornar dali a dois anos e meio e, como os outros meninos e meninas adolescentes da aldeia, Isaku sem dúvida seria mandado para a servidão no lugar do pai, fingindo ser dois ou três anos mais velho do que era realmente. Se até lá ele não crescesse, o intermediário ou o recusaria ou o aceitaria em troca de um pagamento insignificante.
Como costumava fazer, Isaku andou pela trilha na ponta dos pés, tentando parecer mais alto. Então as mulheres diante dele pararam, assim como os habitantes da aldeia que vinham atrás. Todos, ao mesmo tempo, olharam para a esquerda. Isaku também olhou.
À distância, entre duas montanhas baixas com faces rochosas, ele podia avistar uma encosta coberta de vegetação.
As montanhas começaram a ficar vermelhas — sussurrou a mulher idosa a seu lado.
As encostas cintilavam à luz do sol que descia no horizonte, mas o topo de uma delas, que se erguia acima das outras, parecia ter uma tonalidade clara de vermelho. Dois dias de chuva tinham mantido o cume rodeado por nuvens, mas durante esse período as árvores deviam ter começado a adquirir uma coloração avermelhada.
O olhar de Isaku deteve-se no cume da montanha. A cada ano, as cores do outono apareciam primeiro naquele local, espalhando-se depois pelas outras encostas e então ganhando velocidade como uma avalanche, tingindo de vermelho a superfície das montanhas enquanto se espalhavam. Em breve atravessariam vales profundos, tomariam as colinas e logo coloririam as montanhas atrás da vila. Quando isso acontecesse, o marrom-amarelado das folhas a ponto de cair poderia ser visto se espalhando nas encostas mais distantes. […]

Akira Yoshimura, in Naufrágios

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