sexta-feira, 3 de março de 2023

Nas garras de Praga

Existe um mapa que serve de guia para a Praga de Kafka. Nele estão assinalados com precisão os quinze lugares onde morou e escreveu, e outros dezenove que vão do portal barroco da casa natal no centro da cidade até o cemitério judaico em que está enterrado com os pais num bairro distante. Entre o ponto de partida e o túmulo é possível descobrir, entre outras coisas, o prédio em que o escritor aprendeu, aos dois anos de idade, a língua tcheca com uma governanta, os lugares onde fez o primário, o liceu e a faculdade de direito em língua alemã, e as casas que viram o nascimento de O processo, O castelo, dos contos, novelas e cartas, além do clube de leitura, da sede dos anarquistas e de pelo menos três cafés que frequentou com os amigos interessados em filosofia e literatura.
Não faltam também as indicações sobre o salão de Berta Fanta (na praça mais extraordinária de Praga), do qual foi habitué em 1910-1 para ouvir as preleções de Albert Einstein, nem sobre o local das firmas em que trabalhou até se aposentar como jurista especializado em seguros contra acidentes de trabalho — sem falar de uma escola de remo e natação à beira do rio Moldava onde tinha um barco, e da quadra da ilha Sofia em que jogava tênis.
Apesar de tudo, não há comparação possível com a relação que se estabeleceu entre Dublin e Joyce ou entre o Rio de Janeiro e Machado de Assis. Ao contrário do que acontece nas narrativas desses escritores, não aparece na ficção madura de Kafka nenhuma menção aos nomes de ruas, becos, praças, jardins, monumentos ou igrejas da cidade. É verdade, por outro lado, que de vários pontos de Praga pode ser avistado o castelo, iluminado em cores até tarde da noite como um Xanadu boêmio que, visto pelo ângulo do romance kafkiano, tem aspecto sinistro, mas olhado como cartão-postal pode virar kitsch. Ainda assim há quem afirme que o modelo para o castelo de Kafka não é esse, e, se de fato ele deriva de uma realidade imediata, sua localização tem de ser no campo. De todo modo, a semelhança existe e a experiência daquele que sai do centro para chegar à parte baixa pela ponte de Carlos e depois começa a subir a ladeira calçada de pedras vendo o castelo surgir e desaparecer a cada curva é (conforme o caso) a de recompor através de sugestões sucessivas os passos do agrimensor K. no primeiro capítulo de O castelo. Nessa mesma linha de cogitação, não escapa ao observador que a vista da janela do quarto onde Kafka escreveu esse Fausto do século XX, na esquina da rua Paris com o anel da cidade velha, no centro abre para a maciça presença da torre do relógio medieval, para uma igreja barroca e para as agulhas da catedral que do alto da colina dominam as muralhas do burgo até hoje ocupado pela administração do Estado.
Não é menos expressiva a proximidade entre os cenários de O processo, as vias de comunicação urbana e um tipo de arquitetura remanescente da antiga capital do reino. As cidades em geral destacam o espaço interno do externo separando casas, ruas, avenidas, praças e bairros. Mas, no miolo de Praga, o espaço aberto está ligado ao ambiente privado por inúmeras “passagens internas” (em alemão, Durchhäusern), que levam o cidadão, debaixo de abóbadas, de uma rua a um pátio, a um labirinto ou a outra rua pelo interior das residências. Esse traçado não deve ser equiparado sem especificações às galerias pelas quais o flâneur baudelairiano de Benjamin passeava sob o olhar das mercadorias que o espiavam das vitrines como armadilhas de consumo e modernidade. As passagens internas de Praga sugerem, antes, os vasos comunicantes que articulam o convívio da cidade ancestral com a metrópole, e do ponto de vista utilitário elas podem oferecer ao passante um itinerário alternativo onde são plausíveis algumas considerações históricas. Dessa topografia pouco comum, que na terra de Kafka é habitual, parece tirar proveito estético a trama espacial do grande romance kafkiano. Assim, o tribunal que persegue Josef K. tem acesso a qualquer domínio público ou particular, podendo invadir a moradia do herói, emergir sem aviso na sala dos fundos de uma casa de cômodos do subúrbio, deslocar os cartórios judiciais para sótãos imundos, estar representado na água-furtada de um pintor de paisagens e magistrados e fazer baixar a condenação sobre o acusado numa catedral gótica mergulhada no escuro. Um passo adiante, vale a pena recordar que o herói ou anti-herói dessa obra-fragmento é executado por dois carrascos de cartola numa pedreira fora da cidade com uma faca de açougueiro, que eles giram duas vezes no coração do réu, que não sabe por que nem por quem foi processado, mas que nem por isso deixa de morrer como um cão.
Insistindo mais um pouco, também os apartamentos de Praga podem ser diferentes, uma vez que não é sempre que neles se veem corredores isolando os aposentos, como seria de esperar, ou seja: é muito comum que um espaço entre no outro, como acontece no domicílio classe média da família Samsa, em A metamorfose, no qual o quarto de Gregor, através de três portas, põe o inseto rejeitado em contato direto — sob o mesmo teto — com o quarto dos pais, com o da irmã e com a sala de jantar até então calma e recatada.
Num ensaio clássico sobre o escritor, Walter Benjamin afirma que em Kafka as deformações são precisas; não é para menos. Nessa direção, talvez não seja um impulso de fantasia imaginar que a estrutura interna da cidade e sua posição de posto avançado do velho império habsburguês na confluência dos caminhos cruzados da Europa têm algo a ver com a maneira literária que se manifestou na Escola de Praga em fins do século xix e começo do XX — da qual, aliás, Kafka poderia ser representante já aos vinte anos se uma originalidade pertinaz não o tivesse mais tarde impedido de fazê-lo.
Seja como for, não é razoável assimilar sem cautela a escrita e os temas kafkianos à cadência intimista do primeiro Rilke (que por sinal falava de um “espaço interno do mundo” — Weltinnenraum), aos transbordamentos de Werfel, à mística de Meyrinck ou ao erotismo art nouveau de Brod. Por menos que pareça — a ideia vem de uma comparação feita por Roberto Schwarz —, Kafka está mais próximo do Bravo soldado Schweik do tcheco Haček do que dos esforços estetizantes dos seus companheiros de geração. À diferença destes, que buscavam superar o beco-sem-saída do alemão cartorial da classe dirigente por meio de uma inventividade verbal postiça, o autor da Carta ao pai foi pelo caminho inverso, assumindo a linguagem desvitalizada da burocracia como instrumento inesperado de criação literária.
Klaus Wagenbach descreveu o idioma germânico praticado em Praga como uma língua de cerimônia subvencionada pelo Estado — e foi dele que saiu, como pão do forno, o famoso protocolo kafkiano. Pois era justamente aquele tipo de esclerose linguística que vinha facilitar o exame à distância de cada palavra (coisa que talvez um dialeto não permitisse), circunstância que transparece no recuo narrativo, no rigor vocabular e na sintaxe empertigada de Kafka, principalmente a partir de O veredicto (1912), ponto de inflexão de sua obra.
Falando de outro modo, é como se a Dupla Monarquia, já agonizante, estivesse dando o melhor de si para compensar a derrocada que se consumaria logo depois em Sarajevo. Mas havia outros motivos para essa desforra intelectual — um dos que contam foi a emancipação dos judeus na metade do século XIX. Os avós de Kafka pertenceram completamente ao mundo dos guetos, mas o mesmo não aconteceu com o pai, Herrmann, que se impôs como comerciante e self-made man implacável, capaz inclusive de infernizar o filho com comparações supostamente desabonadoras, segundo consta na Carta ao pai. A outra face da moeda é que tanto Franz (homenagem ao imperador Franz Josef) como seus amigos mais ilustrados receberam o benefício da emancipação política (relativa e sujeita a graves retrocessos) e da acumulação material alcançada pelos pais. Isso possibilitou que eles se voltassem para as artes e o pensamento com rebeldia, ardor e maior ou menor grau de talento, buscando quem sabe recuperar a espiritualidade dos avós por uma via secularizada: não surpreende que quase todos tivessem simpatia pelo povo tcheco explorado e pelas posições políticas de esquerda.
Evidentemente todo esse trançado corre paralelo à tensão entre as três culturas — alemã, tcheca e judaica — que conviviam e colidiam umas com as outras em Praga. Transformada de periferia dos Habsburgo em capital do reino, ela foi até o fim do século xix (Kafka é de 1883) uma cidade mais alemã do que tcheca, mas antes ainda da Primeira Guerra Mundial, que selou o fim da monarquia do Danúbio, Praga já era predominantemente tcheca, o que se consolidou de uma vez na República de Masarik.
Embora oficial, a língua alemã era o veículo de uma minoria, tanto a da classe governamental quanto a da parte abastada da comunidade judaica, que a adotou depois de atraída pela ascensão social, o que a tornava alvo dramático da hostilidade, potenciada pelo antissemitismo, da maioria tcheca e dos próprios alemães. Sob títulos diferentes Kafka nunca deixou de definir a si mesmo como alguém que pertencia a esse triângulo das Bermudas centro-europeu: à minoria alemã pela cultura e pela língua em que escrevia, à população tcheca cujas aspirações legítimas apoiava, e aos judeus com quem mantinha os laços de origem. No primeiro capítulo de O processo, Josef K. fica perplexo ao constatar que entre os representantes do tribunal incumbidos de detê-lo — o que afinal não acontece, porque ele fica solto até o fim do livro — figuram três funcionários do banco onde trabalha: Kullich, nome tcheco, Rabensteiner, nome judeu, e Kaminer, nome alemão. A alusão é sibilina, mas está lá; como se sabe, Kafka impediu, na sua obra, qualquer identificação fácil com a realidade histórica.
Voltando a Praga, uma das suas experiências mais desnorteantes é que a heterogeneidade das culturas que ela abrigava acabou por torná-la um lugar de desabrigados (em alemão, Heimatlose, cifra rilkiana), onde, no limite, ninguém conseguia garantir para si mesmo um lar definido e muito menos definitivo. Para quem fazia literatura em língua alemã no país dos tchecos, a sensação de desenraizamento correspondia taco a taco à realidade: Franz Werfel afirmava que Praga não tinha realidade e Paul Kornfeld a descreveu como um hospício metafísico. A tradução idealizada desse estado de coisas foi, durante muito tempo, a fórmula “Praga mágica”, que ninguém menos que Thomas Mann usou ao definir a cidade como a mais mágica do mundo. Mas a leitura a contrapelo dos paradoxos que marcavam a capital da Boêmia e mais tarde da Tchecoslováquia ficou a cargo de exilados como Malte Laurids Brigge e dos personagens-forasteiros de Kafka, fossem eles Karl Rossmann, Gregor Samsa, Josef K. ou K.
Exílio e expulsão são experiências que se complementam. Num de seus aforismos praguenses, Kornfeld dispara que a porta pela qual o homem foi expulso do Paraíso dava para uma delegacia de polícia. A imagem revive a contiguidade de espaços incompatíveis em termos de repressão social, embora o que veio depois tenha sido muito, muito pior. Em última análise, o desterramento da literatura alemã de Praga foi vivido de maneira irreparavelmente dolorosa pela última geração de judeus que escaparam à fúria cega do nazismo, mas não ao horror de saber que sua cidade chegou a ser pensada como sede do hediondo museu da raça extinta.
Não espanta, portanto, que nas invenções de Kafka o narrador de O processo, depois de apresentar a seco a macabra execução de Josef K., feche o romance declarando que “era como se a vergonha devesse sobreviver a ele”. É pertinente relembrar que a obra foi escrita entre agosto de 1914 e janeiro de 1915, editada em 1925 por Max Brod, caçada pelos nazistas e posta no ostracismo pela estética oficial stalinista. Ela no entanto resistiu, e a história da prosa universal lhe assegurou a posteridade: na Alemanha do pós-Segunda Guerra o seu teor de verdade foi imediatamente reconhecido diante da brutalidade inconcebível dos fatos recentes, e agora faz muito tempo que ela consta das leituras obrigatórias de qualquer cidadão civilizado — seja onde for.
Mas como eram as relações pessoais de Kafka com Praga? É raro que um escritor passe praticamente a vida inteira em alguns quilômetros quadrados de uma cidade, como foi o caso do maior artista literário da língua alemã neste século. É conhecido que Kafka podia ler a história desse lugar a partir das velhas paredes dos prédios que ele conhecia na palma da mão. Mas o comportamento afetivo profundo passava por outros caminhos que não os do conhecimento factual e é possível que encontrasse sua expressão mais complexa e matizada no ódio-amor (em alemão, Hassliebe) que o ligava àquele pedaço do “coração da Europa”. No conto “O brasão da cidade” fala-se da nostalgia pelo dia profetizado em que a cidade será destroçada por um punho gigantesco com cinco golpes em rápida sucessão; por isso no seu brasão figura um punho fechado.
A associação com Praga no plano subjetivo não é forçada e remete a analogias materiais contundentes. Nas suas memórias, Willy Haas afirma que “sem dúvida Kafka disse tudo que nós [escritores alemães da cidade] tínhamos para dizer e não dissemos, não pudemos dizer [...]. Não posso imaginar como um homem possa compreendê-lo se não nasceu na Praga dos anos 1880-90”. A forma literária criada por Kafka generalizou a experiência que ele internalizou para torná-la inteligível em toda parte, sem dispensar indícios e vestígios relevantes. Mas mesmo sob o aspecto estritamente individual, o escritor não perdeu a oportunidade de exprimir o que sentia pela cidade natal que conservou o portal da casa onde ele nasceu e ali fixou uma placa comemorativa. A frase que resume esse sentimento é famosa: Praga laesst nicht los. Das Muetterchen hat Krallen (Praga não solta. A mãezinha tem garras). Dificilmente a obra de Kafka teria sido o que foi sem as feridas que ele recebeu dessa bela cidade.

Modesto Carone, in Lição de Kafka

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