Ilustração: Leya Mira Brander
E
quando eu não queria mais que a prima Teresa perambulasse pelos meus
pensamentos, mesmo quando juntos, conversando no quintal, seu braço
a resvalar no meu, seu cheiro entrando nos meus pulmões, e quando eu
só a queria comigo, frente a frente, nós dois mudos, sem saber que
a vida explodia debaixo da nossa quietude, quando eu a queria real,
fora dos meus sonhos, ela voltou para o Rio de Janeiro com a tia
Imaculada.
Inconformado,
fui atrás da mãe, Por quê?, e a mãe, Porque lá é a
casa delas, e eu, Mas, e a mãe, sem desconfiar que eu
estava cheio de sombras, disse, Elas vêm de novo, pro Natal.
Eu
me recolhi todo, o Natal ia demorar demais, uma dor oca no coração,
uma vontade de só dormir, de não crescer. A tristeza me envelhecia,
e eu não me esforçava para afastá-la. Esquecer a prima, como quem
apaga a luz do quarto, era trair o meu sentimento por ela.
Estava
jogando bola com meu irmão e o Paulinho, ou empinando pipa com o
Bolão, e, de repente, a prima Teresa subia à minha memória e então
eu não via mais o sol no sol, nem as árvores nas árvores, tudo o
que era continuava a ser mas sem a quentura do meu olhar, eu era um
menino-deserto, seco de alegrias, e mesmo se me aguassem eu
continuaria a ver o mundo atrás de uma camada de verniz, incapaz de
aceitar o próprio brilho.
Mas,
como a chuva que espera a gente chegar em casa para cair, Cristina
esperava a hora de me salvar. Ela estudava na minha classe e, no dia
em que a percebi de verdade, descobri — no fundo, pressentia! —
que as coisas boas, tanto quanto as ruins, estão o tempo todo ao
nosso lado, basta estender a mão para apanhá-las. Era uma aula
qualquer, a professora distribuiu cópias de um texto e pediu para
ela ler. Cristina começou suavemente — as pernas curtas se movendo
abaixo da carteira, sem tocar o chão, como num balanço —,
continuou naquela leveza, e eu fiquei olhando pra ela, e me
surpreendi por olhá-la daquele jeito, com calor; ela até reparou e,
ao terminar a leitura, fez um gesto que me pareceu uma pergunta. Eu
não tinha a resposta, e foi aí que ela retirou, como uma planta da
terra, a prima Teresa da minha mente e se colocou, inteirinha, no seu
lugar.
No
dia seguinte, mal abri os olhos, a vida retornou, feliz. As árvores,
as casas e o céu se exibiam mais intensos enquanto eu seguia para a
escola. Na sala de aula, à minha direita, Cristina me fitava
fortemente, eu me senti constrangido, mas também bonito, queria
ouvir outra vez a sua voz de sol. E, quando ela disse, ao sairmos
para o intervalo, Me espera, Me espera, senti que a escuridão
estava se limpando de mim e fui andando pelo pátio, sem pressa, ao
lado dela.
Sentamos
num banco. Quer um pedaço?, ela me ofereceu seu sanduíche,
Não, obrigado. Quer um gole?, e ela, sim, com a
cabeça, Adoro suco de uva!, e aí conversamos umas miudezas,
nós dois ainda um riozinho, só a nossa história deslizando. O
Bolão me acenou. Fiz que não vi. O Paulinho e o Lucas cochichavam,
dissimuladamente. Algumas meninas nos apontavam. Uma garota veio
chamá-la, Depois eu vou…, disse, e eu entendi, com aquelas
palavras ela estava dizendo que preferia ficar lá comigo. Eu sentia
febre, uma febre boa que queria continuar sentindo, a minha vida ali,
com a dela, no descuido.
Daí,
como se despertasse ao contrário — da realidade para o sonho —,
me vi a sós com a Cristina, juntinho, sem ninguém por perto, e
tanto me animei ao imaginar essa cena, que, de repente, eu disse,
Quer ir comigo na matinê de domingo? Mal fiz a pergunta, me
encolhi, já sofrendo a sua resposta, com medo da minha esperança,
mas ela afastou do caminho as temíveis palavras “Posso pensar até
amanhã?”, e respondeu no ato, Quero!
Incrédulo,
saí correndo para os dias seguintes, que passaram devagar-devagar, e
neles, buscando preservar o sigilo do nosso pacto, evitei tocar no
assunto com ela, senão com os olhos, que a procuravam e,
encontrando-a, fugiam metendo-se pelas coisas afora. À noite,
encolhido no beliche, eu demorava a dormir. Inventava tramas
heroicas, nas quais — raptada por monstros, alienígenas e
extraterrestres — ela gritava por socorro, e eu aparecia
imediatamente para salvá-la.
O
domingo chegou, enfim, e, ao contrário dos dias anteriores, quando
me distraí com os pequenos fatos do cotidiano, fingindo esquecer
nosso compromisso, despertei visivelmente ansioso. Empurrava os
ponteiros do relógio, construindo no pensamento — em minúcias,
antes de sua hora real — o encontro com Cristina.
A
sessão era às quatro, às três e meia eu já estava à porta do
cinema. Procurei-a entre as pessoas na fila da bilheteria mas não a
vi. Fiquei lá, à sua espera, numa calma falsa, de ator, que eu
desconhecia. Se temia que ela não aparecesse, temia mais pelo
momento de encontrá-la, queria saltar essa etapa e me ver logo ao
seu lado, assistindo ao filme — eu não sabia o que fazer com a
vida que vinha.
Enquanto
Cristina não chegava, e o mundo continuava alheio a mim, observei os
cartazes dos outros filmes, andei inutilmente de lá para cá,
suportando. Aos poucos, distraí-me com o movimento no Bar do Ponto,
os carros que passavam pela rua Quinze, uns casais diante da
sorveteria. Voltei ao cinema e, então, contra os meus planos, eu a
vi lá dentro, atrás da porta de vidro, me acenando. Me espere,
eu disse, como se ela pudesse me ouvir. Enfiei-me às pressas na fila
da bilheteria, que, por sorte, já estava pequena. Comprei a entrada
e, ao chegar ao saguão, onde ela me aguardava, cabelos soltos,
vestido vermelho, senti aquele instante grande, tão grande que
apenas disse, Oi, e ela respondeu, Oi, e completou,
Vamos, já vai começar! Seguimos rapidamente para a sala, mas
antes paramos na bonbonnière, eu queria comprar balas. Mal
nos acomodamos, as luzes se apagaram.
Veio
o noticiário, o Canal 100, depois vieram os trailers, e aí o filme
começou. Não me lembro direito do enredo, só sei que era uma
comédia. Lembro que ríamos não tanto pelas cenas, pouco
engraçadas, mas pelas gargalhadas de um gordo que se divertia à
nossa frente. Eu não sabia como agir, mas, desafiando a minha
insegurança, oferecia balas a ela, contemplava seu rosto no escuro,
desviava-me da tela. Aquele era o lugar no mundo onde eu desejava
estar! Por isso me acalmei, temendo que, com um gesto brusco meu, o
encanto se desfizesse.
Mas
à medida que o filme avançava, eu me convencia de que ela deveria
saber o que se passava comigo, eu precisava dizer à Cristina a minha
alegria, ainda que ela, sem ter consciência de que a causara,
pudesse me responder com uma rejeição.
Então,
de súbito, decidi, Vou pegar na mão dela. Tinha medo de me
precipitar, e de que me julgasse atrevido — nem imaginava que o meu
coração era pequeno para aquele sentimento que não parava de
entrar nele. E, como o filme ia terminar — a gente percebe o fim
chegando —, tomei coragem e deslizei a mão pelo braço da poltrona
até encontrar a sua mão. Cristina estremeceu, virou-se para mim —
e me salvou. Acolheu minha mão com um toque leve, mas decidido, e
assim ficamos, a felicidade latejando entre os meus dedos e os dela.
Logo
o filme terminou e, antes que as luzes se acendessem, soltamos as
mãos, como se o mundo não merecesse saber do nosso amor. E
levantamos sorrindo, não pelo mesmo motivo das pessoas, mas, por
aquele outro, só nosso.
Lá
fora, a tarde ardia nos olhos, de tão bonita, o sol ia baixo no céu
azul, como meus olhos mirando os pés de Cristina a cada passo seu.
Não sabia onde ela morava, mas tinha de acompanhá-la até lá, era
essa a regra, eu ouvira meu irmão comentar uma vez. Caminhamos em
silêncio, para assimilar — pelo menos no meu caso — o susto
daquela iniciação.
Quando
chegamos ao portão de sua casa, eu perguntei, Gostou?, ela
respondeu, Gostei, e eu queria que essa resposta se referisse
mais ao nosso gesto secreto do que ao filme.
E
aí, inesperadamente, até mesmo pra mim, eu a abracei. Trêmula, ela
me recebeu, meio sem jeito. Depois, soltou-se dos meus braços, me
deu um beijo no rosto e saiu correndo. O meu corpo queimava.
Atravessei a rua e fui andando devagar, aquela felicidade — que
poucas vezes voltei a sentir — pulsando forte dentro de mim.
João Carrascoza, in Aquela água toda
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