quinta-feira, 23 de março de 2023

Cristina

Ilustração: Leya Mira Brander


E quando eu não queria mais que a prima Teresa perambulasse pelos meus pensamentos, mesmo quando juntos, conversando no quintal, seu braço a resvalar no meu, seu cheiro entrando nos meus pulmões, e quando eu só a queria comigo, frente a frente, nós dois mudos, sem saber que a vida explodia debaixo da nossa quietude, quando eu a queria real, fora dos meus sonhos, ela voltou para o Rio de Janeiro com a tia Imaculada.
Inconformado, fui atrás da mãe, Por quê?, e a mãe, Porque lá é a casa delas, e eu, Mas, e a mãe, sem desconfiar que eu estava cheio de sombras, disse, Elas vêm de novo, pro Natal.
Eu me recolhi todo, o Natal ia demorar demais, uma dor oca no coração, uma vontade de só dormir, de não crescer. A tristeza me envelhecia, e eu não me esforçava para afastá-la. Esquecer a prima, como quem apaga a luz do quarto, era trair o meu sentimento por ela.
Estava jogando bola com meu irmão e o Paulinho, ou empinando pipa com o Bolão, e, de repente, a prima Teresa subia à minha memória e então eu não via mais o sol no sol, nem as árvores nas árvores, tudo o que era continuava a ser mas sem a quentura do meu olhar, eu era um menino-deserto, seco de alegrias, e mesmo se me aguassem eu continuaria a ver o mundo atrás de uma camada de verniz, incapaz de aceitar o próprio brilho.
Mas, como a chuva que espera a gente chegar em casa para cair, Cristina esperava a hora de me salvar. Ela estudava na minha classe e, no dia em que a percebi de verdade, descobri — no fundo, pressentia! — que as coisas boas, tanto quanto as ruins, estão o tempo todo ao nosso lado, basta estender a mão para apanhá-las. Era uma aula qualquer, a professora distribuiu cópias de um texto e pediu para ela ler. Cristina começou suavemente — as pernas curtas se movendo abaixo da carteira, sem tocar o chão, como num balanço —, continuou naquela leveza, e eu fiquei olhando pra ela, e me surpreendi por olhá-la daquele jeito, com calor; ela até reparou e, ao terminar a leitura, fez um gesto que me pareceu uma pergunta. Eu não tinha a resposta, e foi aí que ela retirou, como uma planta da terra, a prima Teresa da minha mente e se colocou, inteirinha, no seu lugar.
No dia seguinte, mal abri os olhos, a vida retornou, feliz. As árvores, as casas e o céu se exibiam mais intensos enquanto eu seguia para a escola. Na sala de aula, à minha direita, Cristina me fitava fortemente, eu me senti constrangido, mas também bonito, queria ouvir outra vez a sua voz de sol. E, quando ela disse, ao sairmos para o intervalo, Me espera, Me espera, senti que a escuridão estava se limpando de mim e fui andando pelo pátio, sem pressa, ao lado dela.
Sentamos num banco. Quer um pedaço?, ela me ofereceu seu sanduíche, Não, obrigado. Quer um gole?, e ela, sim, com a cabeça, Adoro suco de uva!, e aí conversamos umas miudezas, nós dois ainda um riozinho, só a nossa história deslizando. O Bolão me acenou. Fiz que não vi. O Paulinho e o Lucas cochichavam, dissimuladamente. Algumas meninas nos apontavam. Uma garota veio chamá-la, Depois eu vou…, disse, e eu entendi, com aquelas palavras ela estava dizendo que preferia ficar lá comigo. Eu sentia febre, uma febre boa que queria continuar sentindo, a minha vida ali, com a dela, no descuido.
Daí, como se despertasse ao contrário — da realidade para o sonho —, me vi a sós com a Cristina, juntinho, sem ninguém por perto, e tanto me animei ao imaginar essa cena, que, de repente, eu disse, Quer ir comigo na matinê de domingo? Mal fiz a pergunta, me encolhi, já sofrendo a sua resposta, com medo da minha esperança, mas ela afastou do caminho as temíveis palavras “Posso pensar até amanhã?”, e respondeu no ato, Quero!
Incrédulo, saí correndo para os dias seguintes, que passaram devagar-devagar, e neles, buscando preservar o sigilo do nosso pacto, evitei tocar no assunto com ela, senão com os olhos, que a procuravam e, encontrando-a, fugiam metendo-se pelas coisas afora. À noite, encolhido no beliche, eu demorava a dormir. Inventava tramas heroicas, nas quais — raptada por monstros, alienígenas e extraterrestres — ela gritava por socorro, e eu aparecia imediatamente para salvá-la.
O domingo chegou, enfim, e, ao contrário dos dias anteriores, quando me distraí com os pequenos fatos do cotidiano, fingindo esquecer nosso compromisso, despertei visivelmente ansioso. Empurrava os ponteiros do relógio, construindo no pensamento — em minúcias, antes de sua hora real — o encontro com Cristina.
A sessão era às quatro, às três e meia eu já estava à porta do cinema. Procurei-a entre as pessoas na fila da bilheteria mas não a vi. Fiquei lá, à sua espera, numa calma falsa, de ator, que eu desconhecia. Se temia que ela não aparecesse, temia mais pelo momento de encontrá-la, queria saltar essa etapa e me ver logo ao seu lado, assistindo ao filme — eu não sabia o que fazer com a vida que vinha.
Enquanto Cristina não chegava, e o mundo continuava alheio a mim, observei os cartazes dos outros filmes, andei inutilmente de lá para cá, suportando. Aos poucos, distraí-me com o movimento no Bar do Ponto, os carros que passavam pela rua Quinze, uns casais diante da sorveteria. Voltei ao cinema e, então, contra os meus planos, eu a vi lá dentro, atrás da porta de vidro, me acenando. Me espere, eu disse, como se ela pudesse me ouvir. Enfiei-me às pressas na fila da bilheteria, que, por sorte, já estava pequena. Comprei a entrada e, ao chegar ao saguão, onde ela me aguardava, cabelos soltos, vestido vermelho, senti aquele instante grande, tão grande que apenas disse, Oi, e ela respondeu, Oi, e completou, Vamos, já vai começar! Seguimos rapidamente para a sala, mas antes paramos na bonbonnière, eu queria comprar balas. Mal nos acomodamos, as luzes se apagaram.
Veio o noticiário, o Canal 100, depois vieram os trailers, e aí o filme começou. Não me lembro direito do enredo, só sei que era uma comédia. Lembro que ríamos não tanto pelas cenas, pouco engraçadas, mas pelas gargalhadas de um gordo que se divertia à nossa frente. Eu não sabia como agir, mas, desafiando a minha insegurança, oferecia balas a ela, contemplava seu rosto no escuro, desviava-me da tela. Aquele era o lugar no mundo onde eu desejava estar! Por isso me acalmei, temendo que, com um gesto brusco meu, o encanto se desfizesse.
Mas à medida que o filme avançava, eu me convencia de que ela deveria saber o que se passava comigo, eu precisava dizer à Cristina a minha alegria, ainda que ela, sem ter consciência de que a causara, pudesse me responder com uma rejeição.
Então, de súbito, decidi, Vou pegar na mão dela. Tinha medo de me precipitar, e de que me julgasse atrevido — nem imaginava que o meu coração era pequeno para aquele sentimento que não parava de entrar nele. E, como o filme ia terminar — a gente percebe o fim chegando —, tomei coragem e deslizei a mão pelo braço da poltrona até encontrar a sua mão. Cristina estremeceu, virou-se para mim — e me salvou. Acolheu minha mão com um toque leve, mas decidido, e assim ficamos, a felicidade latejando entre os meus dedos e os dela.
Logo o filme terminou e, antes que as luzes se acendessem, soltamos as mãos, como se o mundo não merecesse saber do nosso amor. E levantamos sorrindo, não pelo mesmo motivo das pessoas, mas, por aquele outro, só nosso.
Lá fora, a tarde ardia nos olhos, de tão bonita, o sol ia baixo no céu azul, como meus olhos mirando os pés de Cristina a cada passo seu. Não sabia onde ela morava, mas tinha de acompanhá-la até lá, era essa a regra, eu ouvira meu irmão comentar uma vez. Caminhamos em silêncio, para assimilar — pelo menos no meu caso — o susto daquela iniciação.
Quando chegamos ao portão de sua casa, eu perguntei, Gostou?, ela respondeu, Gostei, e eu queria que essa resposta se referisse mais ao nosso gesto secreto do que ao filme.
E aí, inesperadamente, até mesmo pra mim, eu a abracei. Trêmula, ela me recebeu, meio sem jeito. Depois, soltou-se dos meus braços, me deu um beijo no rosto e saiu correndo. O meu corpo queimava. Atravessei a rua e fui andando devagar, aquela felicidade — que poucas vezes voltei a sentir — pulsando forte dentro de mim.

João Carrascoza, in Aquela água toda

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