terça-feira, 28 de março de 2023

Cosmogonia

L

Tenho chorado muito ultimamente, mais do que de costume. E, o que é pior, sem motivo.
Fui ao médico e ele me perguntou: O senhor tem fígado? Tinha, respondi, quando era criança; agora já nem sei mais. A vida me tem roubado tanta coisa! O senhor tem tuberculose na sua família? Tuberculosos não tenho, não senhor, nem tampouco tenho família. Sou órfão por todos os lados, como se pode ver perfeitamente. E loucos? Houve algum caso de loucura entre os seus antepassados? Que eu saiba, só três tios e vinte e sete tias. Mas, se me permite, eu vim aqui saber o que tenho e não o que tiveram ou deixaram de ter meus avós e tataravós, o macaco de Darwin inclusive. O senhor é uma besta!
E assim fiquei sem saber exatamente o que tenho, ou mesmo se tenho, graças à enciclopédica ignorância do doutorzinho que me atendeu e que na sua placa dizia trazer longa prática dos hospitais de Berlim, Roma, Tejucupapo, Hollywood, Cannes e Punta del Este. (Esquecia-me de dizer que não lhe paguei a consulta, que era caríssima, mas lhe dei em troca um piparote no cocuruto, no instante mesmo em que ele se abaixava para examinar-me o sexo com o ar mais cínico deste mundo. É sempre assim que pago a esses professores de meia-tigela, quando os pego distraídos e com a mão na massa, em flagrante delito de autossuficiência.) Mas, para não dizer que havia perdido o dia, entrei numa farmácia e comprei um tubo de comprimidos de qualquer coisa, e saí chupando-os pela rua afora, ainda com um resto de lágrimas entre as pálpebras para não perder o hábito.
Entre os vários motivos de pranto que conheço, e que suponho sejam os mesmos de todo mundo, não há nenhum que eu possa legitimamente invocar como fonte deste choro convulso que me tem visitado nestes últimos tempos e que ainda agora, neste banco de jardim, me arrebata por inteiro, como se eu fora o mais triste dos assassinos. Seja ao pé do meu cipreste funéreo — o que ainda seria uma justificativa — seja durante o banho ou quando estou simplesmente à mesa esperando pelo meu almoço, vem-me de súbito, com uma força incoercível, a necessidade de chorar todas as lágrimas que trago guardadas dentro de mim, exatamente como se eu sentisse necessidade de esvaziar a bexiga ou os intestinos, naquele mesmo instante e não dez minutos depois. Ainda ontem à noite, quando me encontrava num bordel copulando com uma bela desconhecida, e no instante mesmo em que o espasmo final se aproximava, em meio a uma farândola de pernas e braços entrelaçados — subiu-me de súbito à cabeça, e daí aos olhos, uma torrente de lágrimas quentes e amargas, que não só me tirou de pronto todo o entusiasmo exigido pelas circunstâncias como ainda molhou por inteiro as costas e a nuca da minha companheira, a ponto de causar-lhe um começo de resfriado. Da quase plenitude do gozo passei, sem transição, ao cúmulo da angústia física e moral, para grande pasmo e surpresa da tresnoitada mulher, que a essa altura já se preparava para cobrar-me o preço da viagem. A custo conseguiu ela safar as nádegas de sob o meu corpo convulso e desgovernado, e quando dei por mim ela já havia fugido do quarto e deixado a porta escancarada, o que fez aumentar ainda mais minha situação de pânico e de vergonha. Esse insucesso carnal, regado a pranto de desespero, foi que me fez procurar hoje mesmo a tal sumidade médica de várias nações — charlatão internacional, fichado em hospitais e universidades do Velho e do Novo Mundo — o qual, como ficou dito, não contente de imiscuir-se na vida íntima dos meus avós e bisavós, ainda teve o desplante de querer examinar-me o sexo como se o meu mal fora destempero de urina e não de pranto.
Aos que só choram quando há motivos para chorar, e não costumam bancar carpideiras sobre a nudez ardente da bem amacia ou mesmo de uma simples rameira (quando toda a nossa atenção deve estar concentrada num único ponto, como o arqueiro no instante de visar o centro do alvo) eu formulo aqui um apelo ao mesmo tempo simples e desesperado, como o formularia ao próprio Deus caso ele existisse e estivesse presente, já que não tenho um só amigo que me possa valer nesta angústia infinita. Dai-me, eu vos peço, a receita de não chorar à toa sobre as mazelas e as incongruências deste mundo tão cotidiano, e de ver com olhos de cego, como vós fazeis, as aparentes belezas deste vasto cemitério sobre o qual caminhamos e que, de tão repleto de mortos, já está até cheirando mal, apesar da primavera que há no céu e nas flores. Dai-me a fórmula de sabedoria que me permita, aos quarenta anos — idade da minha imagem no espelho — contentar-me com o efêmero espetáculo do dinheiro e da mulher nua, e com os fugidios prazeres que nos podem advir do corpo ou do espírito, QUANDO sobre nossas cabeças paira, cada vez mais densa, a gigantesca sombra da morte, com a sua certeza que não admite sofismas nem tergiversações, por mais que a queiramos ignorar em nossos instantes de sono ou mesmo de vigília. Se a morte para a qual caminhamos a passos rápidos — e que ainda hoje pode colher-nos de surpresa, como nos colhe um raio em meio à tempestade — se essa morte é, cada dia mais, de minuto a minuto, a grande verdade contra a qual não prevalece nenhuma filosofia do homem nem tampouco seu incomensurável orgulho, dizei-me como e sobretudo por que devo eu ignorá-la com um sorriso nos lábios, como se este mundo fora o paraíso terrestre e não a terra deserta e sem caminho de que fala a Bíblia, livro que em tudo mais não merece grande crédito. Eu que sempre levei uma vida aventurosa, modéstia à parte, rindo-me de tudo e de todos sem pedir licença ao papa nem ao chefe de polícia, sempre fui no íntimo um pobre espantalho dentro da noite, mais triste do que o palhaço mais triste, com o riso da caveira à guisa de gargalhada. É que o meu riso, que a muitos parecia louco, era em verdade e apenas um pranto disfarçado, como só agora me dou conta de todo, em face desta lacrimorreia aparentemente absurda em que me afogo. Em suma: nada mais vos peço senão que afugenteis a morte da minha vista, já que não podeis afugentá-la das minhas costas, e que me deis o segredo desse filtro que vos faz tão tranquilos e ao mesmo tempo tão vivos, mesmo com o cheiro de cadáver já exalando de vossas narinas. Dai-me, enfim, a arte de mentir a mim mesmo, eu que não sei mentir nem aos outros, e fazei com que eu pise sobre os mortos como se pisasse apenas sobre esqueletos antediluvianos, que não me dissessem respeito e muito menos desrespeito, dada a minha alta qualidade de ser imortal e indiferente aos abismos.

Walter Campos de Carvalho, in A Lua Vem da Ásia

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