L
Tenho
chorado muito ultimamente, mais do que de costume. E, o que é pior,
sem motivo.
Fui
ao médico e ele me perguntou: O senhor tem fígado? Tinha, respondi,
quando era criança; agora já nem sei mais. A vida me tem roubado
tanta coisa! O senhor tem tuberculose na sua família? Tuberculosos
não tenho, não senhor, nem tampouco tenho família. Sou órfão por
todos os lados, como se pode ver perfeitamente. E loucos? Houve algum
caso de loucura entre os seus antepassados? Que eu saiba, só três
tios e vinte e sete tias. Mas, se me permite, eu vim aqui saber o que
tenho e não o que tiveram ou deixaram de ter meus avós e tataravós,
o macaco de Darwin inclusive. O senhor é uma besta!
E
assim fiquei sem saber exatamente o que tenho, ou mesmo se tenho,
graças à enciclopédica ignorância do doutorzinho que me atendeu e
que na sua placa dizia trazer longa prática dos hospitais de Berlim,
Roma, Tejucupapo, Hollywood, Cannes e Punta del Este. (Esquecia-me de
dizer que não lhe paguei a consulta, que era caríssima, mas lhe dei
em troca um piparote no cocuruto, no instante mesmo em que ele se
abaixava para examinar-me o sexo com o ar mais cínico deste mundo. É
sempre assim que pago a esses professores de meia-tigela, quando os
pego distraídos e com a mão na massa, em flagrante delito de
autossuficiência.) Mas, para não dizer que havia perdido o dia,
entrei numa farmácia e comprei um tubo de comprimidos de qualquer
coisa, e saí chupando-os pela rua afora, ainda com um resto de
lágrimas entre as pálpebras para não perder o hábito.
Entre
os vários motivos de pranto que conheço, e que suponho sejam os
mesmos de todo mundo, não há nenhum que eu possa legitimamente
invocar como fonte deste choro convulso que me tem visitado nestes
últimos tempos e que ainda agora, neste banco de jardim, me arrebata
por inteiro, como se eu fora o mais triste dos assassinos. Seja ao pé
do meu cipreste funéreo — o que ainda seria uma justificativa —
seja durante o banho ou quando estou simplesmente à mesa esperando
pelo meu almoço, vem-me de súbito, com uma força incoercível, a
necessidade de chorar todas as lágrimas que trago guardadas dentro
de mim, exatamente como se eu sentisse necessidade de esvaziar a
bexiga ou os intestinos, naquele mesmo instante e não dez minutos
depois. Ainda ontem à noite, quando me encontrava num bordel
copulando com uma bela desconhecida, e no instante mesmo em que o
espasmo final se aproximava, em meio a uma farândola de pernas e
braços entrelaçados — subiu-me de súbito à cabeça, e daí aos
olhos, uma torrente de lágrimas quentes e amargas, que não só me
tirou de pronto todo o entusiasmo exigido pelas circunstâncias como
ainda molhou por inteiro as costas e a nuca da minha companheira, a
ponto de causar-lhe um começo de resfriado. Da quase plenitude do
gozo passei, sem transição, ao cúmulo da angústia física e
moral, para grande pasmo e surpresa da tresnoitada mulher, que a essa
altura já se preparava para cobrar-me o preço da viagem. A custo
conseguiu ela safar as nádegas de sob o meu corpo convulso e
desgovernado, e quando dei por mim ela já havia fugido do quarto e
deixado a porta escancarada, o que fez aumentar ainda mais minha
situação de pânico e de vergonha. Esse insucesso carnal, regado a
pranto de desespero, foi que me fez procurar hoje mesmo a tal
sumidade médica de várias nações — charlatão internacional,
fichado em hospitais e universidades do Velho e do Novo Mundo — o
qual, como ficou dito, não contente de imiscuir-se na vida íntima
dos meus avós e bisavós, ainda teve o desplante de querer
examinar-me o sexo como se o meu mal fora destempero de urina e não
de pranto.
Aos
que só choram quando há motivos para chorar, e não costumam bancar
carpideiras sobre a nudez ardente da bem amacia ou mesmo de uma
simples rameira (quando toda a nossa atenção deve estar concentrada
num único ponto, como o arqueiro no instante de visar o centro do
alvo) eu formulo aqui um apelo ao mesmo tempo simples e desesperado,
como o formularia ao próprio Deus caso ele existisse e estivesse
presente, já que não tenho um só amigo que me possa valer nesta
angústia infinita. Dai-me, eu vos peço, a receita de não chorar à
toa sobre as mazelas e as incongruências deste mundo tão cotidiano,
e de ver com olhos de cego, como vós fazeis, as aparentes belezas
deste vasto cemitério sobre o qual caminhamos e que, de tão repleto
de mortos, já está até cheirando mal, apesar da primavera que há
no céu e nas flores. Dai-me a fórmula de sabedoria que me permita,
aos quarenta anos — idade da minha imagem no espelho —
contentar-me com o efêmero espetáculo do dinheiro e da mulher nua,
e com os fugidios prazeres que nos podem advir do corpo ou do
espírito, QUANDO sobre nossas cabeças paira, cada vez mais densa, a
gigantesca sombra da morte, com a sua certeza que não admite
sofismas nem tergiversações, por mais que a queiramos ignorar em
nossos instantes de sono ou mesmo de vigília. Se a morte para a qual
caminhamos a passos rápidos — e que ainda hoje pode colher-nos de
surpresa, como nos colhe um raio em meio à tempestade — se essa
morte é, cada dia mais, de minuto a minuto, a grande verdade contra
a qual não prevalece nenhuma filosofia do homem nem tampouco seu
incomensurável orgulho, dizei-me como e sobretudo por que devo eu
ignorá-la com um sorriso nos lábios, como se este mundo fora o
paraíso terrestre e não a terra deserta e sem caminho de que fala a
Bíblia, livro que em tudo mais não merece grande crédito. Eu que
sempre levei uma vida aventurosa, modéstia à parte, rindo-me de
tudo e de todos sem pedir licença ao papa nem ao chefe de polícia,
sempre fui no íntimo um pobre espantalho dentro da noite, mais
triste do que o palhaço mais triste, com o riso da caveira à guisa
de gargalhada. É que o meu riso, que a muitos parecia louco, era em
verdade e apenas um pranto disfarçado, como só agora me dou conta
de todo, em face desta lacrimorreia aparentemente absurda em que me
afogo. Em suma: nada mais vos peço senão que afugenteis a morte da
minha vista, já que não podeis afugentá-la das minhas costas, e
que me deis o segredo desse filtro que vos faz tão tranquilos e ao
mesmo tempo tão vivos, mesmo com o cheiro de cadáver já exalando
de vossas narinas. Dai-me, enfim, a arte de mentir a mim mesmo, eu
que não sei mentir nem aos outros, e fazei com que eu pise sobre os
mortos como se pisasse apenas sobre esqueletos antediluvianos, que
não me dissessem respeito e muito menos desrespeito, dada a minha
alta qualidade de ser imortal e indiferente aos abismos.
Walter Campos de Carvalho, in A Lua Vem da Ásia
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