quinta-feira, 16 de março de 2023

Carta aos pais de um filho gay

Um dia encontrei uma amiga da minha mãe chorando de forma tão desesperada que tive certeza de que um de seus filhos havia morrido. Meu coração foi à boca. Sabendo que todos estavam vivos, comecei a me perguntar qual deles teria descoberto que sofria de uma grave doença. Nenhum. O choro da mãe era porque um dos filhos tinha revelado ser homossexual naquela manhã.
Eu não vou dizer que vocês, pais de filhos gays, não tenham razão para se preocupar. Têm, sim. Todos os pais têm. Preocupar-se é a mais natural das características dos pais. Preocupam-se com a nossa alimentação, com os nossos agasalhos, com nossos estudos e, sobretudo, com a forma como as pessoas que povoarão nosso caminho nos tratarão. E, sim, nesse ponto eu entendo a preocupação dos pais de um filho gay. Porque tem muito imbecil por aí. Mas o mais importante é que os primeiros imbecis desse caminho não sejam os próprios pais dessa pessoa.
Não escrevo este texto para os pais que acham que ser gay é uma ofensa a Deus, uma vergonha, uma aberração ou uma simples opção de um filho. Neste nível de ignorância eu acredito que seja inútil tentar penetrar. Escrevo esta carta, de coração, aos pais que não sabem bem como agir. Aos que teoricamente os aceitam, ou pelo menos pensam aceitar. Escrevo também aos pais que suspeitam ter um filho homossexual e não sabem como lidar. Escrevo aos bons pais que se esforçam para apoiá-los e que estão dispostos a fazer o melhor que podem.
O fato é que existem muitas léguas de distância entre o ato de aceitar e o ato de acolher. Entre a mera tolerância e a necessária compreensão. Entre o mero olhar sem censura e o tão esperado abraço que diz: “Eu te aceito, te acolho, te amo e me orgulho de você, independentemente de qualquer coisa.” Aceitar não é tudo. É só um primeiro passo.
Lembro-me bem da madrugada na qual um namorado terminou um relacionamento de sete anos comigo. Destruída, fechei a porta para ele ir embora pela última vez e corri para o quarto dos meus pais, às três da manhã. Eu sabia que não estava sozinha e que a minha dor seria suportada por eles. Eu sabia que tinha uma rede. Já um amigo, gay, quando sofreu a mesma dor, foi chorar no banho. Saiu do banho olhando para baixo, fechou-se no quarto, esperando que seus pais – que aceitam sua homossexualidade – não perguntassem nada. Porque eles nem sabiam que o filho vivia um relacionamento estável que já durava cerca de três anos.
A questão é: até quando tantos pais esconderão a poeira debaixo do tapete? “Seja gay, a gente tolera, mas saiba que nunca trataremos isso com naturalidade.” Esse é o discurso que ninguém diz e que segue velado em tantas famílias. É preciso abrir este caminho, mostrar aos seus filhos que vocês se interessam pela vida afetiva deles tanto quanto se interessariam pela de um filho hétero. É preciso sair da zona de conforto, que foca as conversas no trabalho, no dinheiro e nas amenidades, buscando fugir de tudo o que diz respeito à homossexualidade em si.
Não tenha medo de perguntar quais são os lugares que ele frequenta. Nem com quem ele vai, nem qual música toca. A vida de um gay não é mais nem menos promíscua que a de um hétero. Não é a orientação sexual que determina se alguém vai dormir com uma pessoa a vida inteira ou com três na mesma semana. Isso não tem nada a ver com ser gay ou não. Livrem-se desses dogmas.
Participe da vida do seu filho gay. Pergunte sobre seus sonhos. Se ele quer casar, se vai querer festa, se vai querer um buquê, seja ele homem ou mulher. Pergunte se ele sonha com filhos. Se vai querer adotar, se pensa em inseminação ou numa barriga de aluguel. Pergunte se ele gosta daquelas camisas brancas que você compra para ele ou se preferia que elas fossem floridas. Pergunte à sua filha se ela se protege no sexo, ainda que saiba que o tipo de relação que ela mantém não resulta em gravidez. Mostre que você se importa e que o espaço de diálogo entre vocês pode ser cada vez maior.
Mostre ao seu filho que ele é muito mais importante do que seus amigos conservadores. Mostre que você está disposto a abrir mão desses seus “amigos” que ficam escandalizados com a homossexualidade em respeito a ele. Mostre que esse tipo de gente não te interessa mais, porque quem julga que seu filho não é bom o bastante por amar pessoas do mesmo sexo merece todo o seu desprezo.
Faça com que eles percebam que, por você, tudo bem se a tia Loló ficar chocada com o fato de o sobrinho-neto ser gay. Tia Loló deu sorte de estar viva em 2016 e ela precisa conviver com isso. Mostre ao seu filho que você não está mais preocupado em poupar a tia Loló, o tio Tonico, a prima Rosângela e seus trigêmeos do que em fazer com que ele se sinta bem e livre na festa de família pela primeira vez. Quando a tia Loló perguntar “Como vão as namoradinhas do Rafael?”, responda tranquilamente “É namoradinho, tia Loló, ele se chama Mateus, é engenheiro, um rapaz ótimo”. Se a tia Loló engasgar com o amendoim, bata nas costas dela. Mas não bata no ego do seu filho, trancafiando-o num eterno armário de vidro.
Você nunca deixou seu filho chorar sozinho quando era criança. Você nunca se envergonhou do nariz escorrendo nem da roupa suja no fim do dia. Você sempre se orgulhou daquela criança e dizia para quem quisesse ouvir: “Sim! É meu filho!” Por que isso haveria de mudar agora? Quais os olhares que passaram a ser mais importantes do que os olhares de amor dele para você e de você para ele? A quem você confere a legitimidade de julgar o seu filho a ponto de te tornar omisso na vida dele? A quem você se rende para não abraçá-lo da forma mais sincera e entregue?
Já é hora, mãe. Já é hora, pai. Acolham seus filhos de forma integral antes que seja tarde demais. Não compactuem com mais choro no banho, mais segredos, mais mentiras. Não abram mão de ouvir histórias boas, histórias alegres, histórias de amor. Nem abram mão da convivência com seus novos genros e noras.
Acima de tudo, não permitam que a noção de “amor incondicional” torne-se uma farsa na relação de vocês. Mostre ao seu filho todo dia que seu amor por ele é infinitamente maior do que a miséria humana que julga, aponta e condena determinadas formas de amar. Mostre ao seu filho que o mundo pode virar-se contra ele, mas que seus braços serão sempre um lugar seguro onde ele é bem-vindo por ser exatamente quem é.

Ruth Manus, in Um dia ainda vamos rir de tudo isso

Nenhum comentário:

Postar um comentário