Os
deste lado brigaram
com
os do lado de lá.
Não
foi briga de xingar,
não
foi rixa de bater
nem
de sacar o revólver.
É
briga de não falar
e
de cerrar a janela
devagar
e sem ranger,
se
passa alguém do outro lado.
Briga
de não conhecer
quem
antes se conhecia,
se
estimava, se tratava
com
a maior civilidade,
quem
antes se convidava
pra
festa de batizado
e
primeira comunhão,
casamento,
aniversário
ou
pra simples assustado,
a
quem, se acaso surgisse
gente
demais no jantar,
emprestado
se pedia
meia
dúzia de cadeiras
e
meia dúzia de copos,
e
que também recorria
com
toda sem-cerimônia
à
vizinhança amistosa
em
noite de dor na perna
e
de farmácia fechada
com
vistas ao milagroso
vidrinho
de Pronto Alívio
ou
em outro qualquer aperto
que
costuma suceder
nos
lares mais bem providos.
Troca-troca
se fazia
de
doces, frutas, temperos,
receitas
de forno e bilro,
mimos
de mil qualidades
no
vai e volta de cestas,
terrinas
e tabuleiros.
Crianças
das duas casas
unidas
num só brinquedo
de
chicotinho queimado,
carniça,
gata-parida
e
manja, roda, cantigas
lusamente
brasileiras,
ou
melhor, universais.
Té
se faz de mentirinha
casamento
de meninos
que
talvez se torne um dia
matrimônio
de verdade
em
gorda concentração
de
fortunas e de afetos.
(O
mundo, calmo, autoriza
esperar
dez, quinze anos.)
Eis
de súbito alterado
o
panorama gentil
de
tão grata convivência.
Não
se tira mais chapéu
nem
mais se exibem risonhos
dentes
de cordialidade,
já
se finge não haver,
dos
dois lados desta rua,
ninguém
morando por perto.
Há
um vazio de cem léguas
na
estreiteza das calçadas.
Pequenos
brinquem no quarto,
o
velocípede novo
rode
da sala à cozinha,
muito
embora atropelando
grandes
de todo respeito,
e
quem fizer um aceno
para
vulto de outro lado
entra
feio na chinela
de
ramagem verde hostil.
No
grupo escolar, cuidado:
ninguém
vá se misturar.
Que
foi que houve, que não
houve,
se nada sabemos?
Quem
por acaso decifra
o
que pode haver no ar
ou
na cabeça dos grandes
reticentes,
sigilosos?
Do
lado de lá não sabem;
do
lado de cá, também.
Não
se filtra explicação.
Cala
a boca! é a resposta
a
quem demais especule.
E
todo o mundo virou
cofre
estranho de mistério
exemplarmente
fechado
a
mãos, olhares, perguntas…
Mas
a velha cozinheira,
peça
antiga da família,
que
tudo sabe e resmunga
seu
misto de língua longe
e
de estalar de panela,
cospe
de lado e define:
— Candonga,
gente. Candonga.
Carlos Drummond de Andrade, in Boitempo — Esquecer para lembrar
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