Fim
dos tempos. Ahasverus, sentado em uma rocha, fita longamente o
horizonte, onde passam duas águias, cruzando-se. Medita, depois
sonha. Vai declinando o dia.
AHASVERUS
— Chego à cláusula dos tempos; este é o limiar da eternidade. A
terra está deserta; nenhum outro homem respira o ar da vida. Sou o
último; posso morrer. Morrer! deliciosa ideia! Séculos de séculos
vivi, cansado, mortificado, andando sempre, mas ei-los que acabam e
vou morrer com eles. Velha natureza, adeus! Céu azul, nuvens
renascentes, rosas de um dia e de todos os dias, águas perenes,
terra inimiga, que me não comeste os ossos, adeus! O errante não
errará mais. Deus me perdoará, se quiser, mas a morte consola-me.
Aquela montanha é áspera como a minha dor; aquelas águias, que ali
passam, devem ser famintas como o meu desespero. Morrereis também,
águias divinas?
PROMETEU
— Certo que os homens acabaram; a terra está nua deles.
AHASVERUS
— Ouço ainda uma voz... Voz de homem? Céus implacáveis, não sou
então o último? Ei-lo que se aproxima... Quem és tu? Há em teus
grandes olhos alguma cousa parecida com a luz misteriosa dos arcanjos
de Israel; não és homem...
PROMETEU
— Não.
AHASVERUS
— Raça divina?
PROMETEU
— Tu o disseste.
AHASVERUS
— Não te conheço; mas que importa que te não conheça? Não és
homem; posso então morrer; pois sou o último, e fecho a porta da
vida.
PROMETEU
— A vida, como a antiga Tebas, tem cem portas. Fechas uma, outras
se abrirão. És o último da tua espécie? Virá outra espécie
melhor, não feita do mesmo barro, mas da mesma luz. Sim, homem
derradeiro, toda a plebe dos espíritos perecerá para sempre; a flor
deles é que voltará à terra para reger as cousas. Os tempos serão
retificados. O mal acabará; os ventos não espalharão mais, nem os
germes da morte, nem o clamor dos oprimidos, mas tão somente a
cantiga do amor perene e a bênção da universal justiça...
AHASVERUS
— Que importa à espécie que vai morrer comigo toda essa delícia
póstuma? Crê-me, tu que és imortal, para os ossos que apodrecem na
terra as púrpuras de Sidônia não valem nada. O que tu me contas é
ainda melhor que o sonho de Campanella. Na cidade deste havia delitos
e enfermidades; a tua exclui todas as lesões morais e físicas. O
Senhor te ouça! Mas deixa-me ir morrer.
PROMETEU
— Vai, vai. Que pressa tens em acabar os teus dias?
AHASVERUS
— A pressa de um homem que tem vivido milheiros de anos. Sim,
milheiros de anos. Homens que apenas respiraram por dezenas deles,
inventaram um sentimento de enfado, tedium vitae, que eles
nunca puderam conhecer, ao menos em toda a sua implacável e vasta
realidade, porque é preciso haver calcado, como eu, todas as
gerações e todas as ruínas, para experimentar esse profundo fastio
da existência.
PROMETEU
— Milheiros de anos?
AHASVERUS
— Meu nome é Ahasverus: vivia em Jerusalém, ao tempo em que iam
crucificar Jesus Cristo. Quando ele passou pela minha porta, afrouxou
ao peso do madeiro que levava aos ombros, e eu empurrei-o,
bradando-lhe que não parasse, que não descansasse, que fosse
andando até à colina, onde tinha de ser crucificado... Então uma
voz anunciou-me do céu que eu andaria sempre, continuamente, até o
fim dos tempos. Tal é a minha culpa; não tive piedade para com
aquele que ia morrer. Não sei mesmo como isto foi. Os fariseus
diziam que o filho de Maria vinha destruir a lei, e que era preciso
matá-lo; eu, pobre ignorante, quis realçar o meu zelo e daí a ação
daquele dia. Que de vezes vi isto mesmo, depois, atravessando os
tempos e as cidades! Onde quer que o zelo penetrou numa alma
subalterna, fez-se cruel ou ridículo. Foi a minha culpa
irremissível.
PROMETEU
— Grave culpa, em verdade, mas a pena foi benévola. Os outros
homens leram da vida um capítulo, tu leste o livro inteiro. Que sabe
um capítulo de outro capítulo? Nada; mas o que os leu a todos,
liga-os e conclui. Há páginas melancólicas? Há outras joviais e
felizes. À convulsão trágica precede a do riso, a vida brota da
morte, cegonhas e andorinhas trocam de clima, sem jamais abandoná-lo
inteiramente; é assim que tudo se concerta e restitui. Tu viste
isso, não dez vezes, não mil vezes, mas todas as vezes; viste a
magnificência da terra curando a aflição da alma, e a alegria da
alma suprindo à desolação das cousas; dança alternada da
natureza, que dá a mão esquerda a Jó e a direita a Sardanapalo.
AHASVERUS
— Que sabes tu da minha vida? Nada; ignoras a vida humana.
PROMETEU
— Ignoro a vida humana? deixa-me rir! Eia, homem perpétuo,
explica-te. Conta-me tudo; saíste de Jerusalém...
AHASVERUS
— Saí de Jerusalém. Comecei a peregrinação dos tempos. Ia a
toda a parte, qualquer que fosse a raça, o culto ou a língua; sóis
e neves, povos bárbaros e cultos, ilhas, continentes, onde quer que
respirasse um homem, aí respirei eu. Nunca mais trabalhei. Trabalho
é refúgio, e não tive esse refúgio. Cada manhã achava comigo a
moeda do dia... Vede; cá está a última. Ide, que já não sois
precisa (atira a moeda ao longe). Não trabalhava, andava
apenas, sempre, sempre, sempre, um dia e outro dia, um ano e outro
ano, e todos os anos, e todos os séculos. A eterna justiça soube o
que fez: somou a eternidade com a ociosidade. As gerações
legavam-me umas às outras. As línguas que morriam ficavam com o meu
nome embutido na ossada. Com o volver dos tempos, esquecia-se tudo;
os heróis dissipavam-se em mitos, na penumbra, ao longe; e a
história ia caindo aos pedaços, não lhe ficando mais que duas ou
três feições vagas e remotas. E eu via-as de um modo e de outro
modo. Falaste em capítulo? Felizes os que só leram a vida em um
capítulo. Os que se foram, à nascença dos impérios, levaram a
impressão da perpetuidade deles; os que expiraram quando eles
decaíam, enterraram-se com a esperança da recomposição; mas sabes
tu o que é ver as mesmas cousas, sem parar, a mesma alternativa de
prosperidade e desolação, desolação e prosperidade, eternas
exéquias e eternas aleluias, auroras sobre auroras, ocasos sobre
ocasos?
PROMETEU
— Mas não padeceste, creio; é alguma cousa não padecer nada.
AHASVERUS
— Sim, mas vi padecer os outros homens, e, para o fim, o espetáculo
da alegria dava-me a mesma sensação que os discursos de um doudo.
Fatalidades do sangue e da carne, conflitos sem fim, tudo vi passar a
meus olhos, a ponto que a noite me fez perder o gosto ao dia, e acabo
não distinguindo as flores das urzes. Tudo se me confunde na retina
enfarada.
PROMETEU
— Pessoalmente não te doeu nada; e eu que padeci por tempos
inúmeros o efeito da cólera divina?
AHASVERUS
— Tu?
PROMETEU
— Prometeu é o meu nome.
AHASVERUS
— Tu Prometeu?
PROMETEU
— E qual foi o meu crime? Fiz de lodo e água os primeiros homens,
e depois, compadecido, roubei para eles o fogo do céu. Tal foi o meu
crime. Júpiter, que então regia o Olimpo, condenou-me ao mais cruel
suplício. Anda, sobe comigo a este rochedo.
AHASVERUS
— Contas-me uma fábula. Conheço esse sonho helênico.
PROMETEU
— Velho incrédulo! Anda ver as próprias correntes que me
agrilhoaram; foi uma pena excessiva para nenhuma culpa; mas a
divindade orgulhosa e terrível... Chegamos, olha, aqui estão
elas...
AHASVERUS
— O tempo que tudo rói não as quis então?
PROMETEU
— Eram de mão divina; fabricou-as Vulcano. Dous emissários do céu
vieram atar-me ao rochedo, e uma águia, como aquela que lá corta o
horizonte, comia-me o fígado, sem consumi-lo nunca. Durou isto
tempos que não contei. Não, não podes imaginar este suplício...
AHASVERUS
— Não me iludes? Tu Prometeu? Não foi então um sonho da
imaginação antiga?
PROMETEU
— Olha bem para mim, palpa estas mãos. Vê se existo.
AHASVERUS
— Moisés mentiu-me. Tu Prometeu, criador dos primeiros homens?
PROMETEU
— Foi o meu crime.
AHASVERUS
— Sim, foi o teu crime, artífice do inferno; foi o teu crime
inexpiável. Aqui devias ter ficado por todos os tempos, agrilhoado e
devorado, tu, origem dos males que me afligiram. Careci de piedade, é
certo; mas tu, que me trouxeste à existência, divindade perversa,
foste a causa original de tudo.
PROMETEU
— A morte próxima obscurece-te a razão.
AHASVERUS
— Sim, és tu mesmo, tens a fronte olímpica, forte e belo titão:
és tu mesmo... São estas as cadeias? Não vejo o sinal das tuas
lágrimas.
PROMETEU
— Chorei-as pela tua raça.
AHASVERUS
— Ela chorou muito mais por tua culpa.
PROMETEU
— Ouve, último homem, último ingrato!
AHASVERUS
— Para que quero eu palavras tuas? Quero os teus gemidos, divindade
perversa. Aqui estão as cadeias. Vê como as levanto nas mãos; ouve
o tinir dos ferros... Quem te desagrilhoou outrora?
PROMETEU
— Hércules.
AHASVERUS
— Hércules... Vê se ele te presta igual serviço, agora que vais
ser novamente agrilhoado.
PROMETEU
— Deliras.
AHASVERUS
— O céu deu-te o primeiro castigo; agora a terra vai dar-te o
segundo e derradeiro. Nem Hércules poderá mais romper estes ferros.
Olha como os agito no ar, à maneira de plumas; é que eu represento
a força dos desesperos milenários. Toda a humanidade está em mim.
Antes de cair no abismo, escreverei nesta pedra o epitáfio de um
mundo. Chamarei a águia, e ela virá; dir-lhe-ei que o derradeiro
homem, ao partir da vida, deixa-lhe um regalo de deuses.
PROMETEU
— Pobre ignorante, que rejeitas um trono! Não, não podes mesmo
rejeitá-lo.
AHASVERUS
— És tu agora que deliras. Eia, prostra-te, deixa-me ligar-te os
braços. Assim, bem, não resistirás mais; arqueja para aí. Agora
as pernas...
PROMETEU
— Acaba, acaba. São as paixões da terra que se voltam contra mim;
mas eu, que não sou homem, não conheço a ingratidão. Não
arrancarás uma letra ao teu destino, ele se cumprirá inteiro. Tu
mesmo serás o novo Hércules. Eu, que anunciei a glória do outro,
anuncio a tua; e não serás menos generoso que ele.
AHASVERUS
— Deliras tu?
PROMETEU
— A verdade ignota aos homens é o delírio de quem a anuncia.
Anda, acaba.
AHASVERUS
— A glória não paga nada, e extingue-se.
PROMETEU
— Esta não se extinguirá. Acaba, acaba; ensina ao bico adunco da
águia como me há de devorar a entranha; mas escuta... Não, não
escutes nada; não podes entender-me.
AHASVERUS
— Fala, fala.
PROMETEU
— O mundo passageiro não pode entender o mundo eterno; mas tu
serás o elo entre ambos.
AHASVERUS
— Dize tudo.
PROMETEU
— Não digo nada; anda, aperta bem estes pulsos, para que eu não
fuja, para que me aches aqui à tua volta. Que te diga tudo? Já te
disse que uma raça nova povoará a terra, feita dos melhores
espíritos da raça extinta; a multidão dos outros perecerá. Nobre
família, lúcida e poderosa, será a perfeita comunhão do divino
com o humano. Outros serão os tempos, mas entre eles e estes um elo
é preciso, e esse elo és tu.
AHASVERUS
— Eu?
PROMETEU
— Tu mesmo, tu, eleito, tu, rei. Sim, Ahasverus, tu serás rei. O
errante pousará. O desprezado dos homens governará os homens.
AHASVERUS
— Titão artificioso, iludes-me... Rei, eu?
PROMETEU
— Tu rei. Que outro seria? O mundo novo precisa de uma tradição
do mundo velho, e ninguém pode falar de um a outro como tu. Assim
não haverá interrupção entre as duas humanidades. O perfeito
procederá do imperfeito, e a tua boca dir-lhe-á as suas origens.
Contarás aos novos homens todo o bem e todo o mal antigo. Reviverás
assim como a árvore a que cortaram as folhas secas, e conserva tão
somente as viçosas; mas aqui o viço é eterno.
AHASVERUS
— Visão luminosa! Eu mesmo?
PROMETEU
— Tu mesmo.
AHASVERUS
— Estes olhos... estas mãos... vida nova e melhor... Visão
excelsa! Titão, é justo. Justa foi a pena; mas igualmente justa é
a remissão gloriosa do meu pecado. Viverei eu? eu mesmo? Vida nova e
melhor? Não, tu mofas de mim.
PROMETEU
— Bem, deixa-me, voltarás um dia, quando este imenso céu for
aberto para que desçam os espíritos da vida nova. Aqui me acharás
tranquilo. Vai.
AHASVERUS
— Saudarei outra vez o sol?
PROMETEU
— Esse mesmo que ora vai a cair. Sol amigo, olho dos tempos, nunca
mais se fechará a tua pálpebra. Fita-o, se podes.
AHASVERUS
— Não posso.
PROMETEU
— Podê-lo-ás depois quando as condições da vida houverem
mudado. Então a tua retina fitará o sol sem perigo, porque no homem
futuro ficará concentrado tudo o que há melhor na natureza,
enérgico ou sutil, cintilante ou puro.
AHASVERUS
— Jura que me não mentes.
PROMETEU
— Verás se minto.
AHASVERUS
— Fala, fala mais, conta-me tudo.
PROMETEU
— A descrição da vida não vale a sensação da vida; tê-la-ás
prodigiosa. O seio de Abraão das tuas velhas Escrituras não é
senão esse mundo ulterior e perfeito. Lá verás David e os
profetas. Lá contarás à gente estupefata não só as grandes ações
do mundo extinto, como também os males que ela não há de conhecer,
lesão ou velhice, dolo, egoísmo, hipocrisia, a aborrecida vaidade,
a inopinável toleima e o resto. A alma terá, como a terra, uma
túnica incorruptível.
AHASVERUS
— Verei ainda este imenso céu azul!
PROMETEU
— Olha como é belo.
AHASVERUS
— Belo e sereno como a eterna justiça. Céu magnífico, melhor que
as tendas de Cedar, ver-te-ei ainda e sempre; tu recolherás os meus
pensamentos, como outrora; tu me darás os dias claros e as noites
amigas...
PROMETEU
— Auroras sobre auroras.
AHASVERUS
— Eia, fala, fala mais. Conta-me tudo. Deixa-me desatar-te estas
cadeias...
PROMETEU
— Desata-as, Hércules novo, homem derradeiro de um mundo, que vais
ser o primeiro de outro. É o teu destino; nem tu nem eu, ninguém
poderá mudá-lo. És mais ainda que o teu Moisés. Do alto do Nebo,
viu ele, prestes a morrer, toda a terra de Jericó, que ia pertencer
à sua posteridade; e o Senhor lhe disse: “Tu a viste com teus
olhos, e não passarás a ela.” Tu passarás a ela, Ahasverus; tu
habitarás Jericó.
AHASVERUS
— Põe a mão sobre a minha cabeça, olha bem para mim; incute-me a
tua realidade e a tua predição; deixa-me sentir um pouco da vida
nova e plena... Rei disseste?
PROMETEU
— Rei eleito de uma raça eleita.
AHASVERUS
— Não é demais para resgatar o profundo desprezo em que vivi.
Onde uma vida cuspiu lama, outra vida porá uma auréola. Anda, fala
mais... fala mais... (Continua sonhando. As duas águias
aproximam-se.)
UMA
ÁGUIA — Ai, ai, ai deste último homem, está morrendo e ainda
sonha com a vida.
A
OUTRA — Nem ele a odiou tanto, senão porque a amava muito.
Machado de Assis, in Gazeta de Notícias, 28 de fevereiro de 1886
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