G
O
melhor lugar para se comer, quando não se tem onde comer, ainda é
um bom velório — em casa de família modesta e decente.
Esta
filosofia da fome levou-me ontem à noite, debaixo de chuva e tudo, a
procurar pela cidade, de bairro em bairro, uma porta aberta por onde
pudesse divisar algum defunto sobre uma mesa, já que todos os
restaurantes me batiam com a porta na cara e os dois ou três
transeuntes a quem pedi uma esmola nem sequer se dignaram a fitar-me
no fundo dos olhos.
Depois
de muito perambular, com o estômago às costas para pesar-me menos,
acabei descobrindo um velório mais ou menos no estilo do que eu
desejava, num canto de uma rua escura e sem bondes, onde as casas
eram todas iguais e não traziam sequer um número para
identificá-las. Se eu tivesse procurado, talvez houvesse encontrado
mais adiante algo melhor e mais convidativo, mas confesso que a essa
altura minhas pernas já não me aguentavam mais e tive que
contentar-me com o que tinha pela frente.
Era
uma casa modesta, sem nenhum quadro na parede — a não ser um
espelho, que refletia o morto — e na pequena sala havia quando
muito umas oito pessoas, sem contar o morto evidentemente. Havia
também um cachorro junto à porta, um vira-lata como eu, mas penso
que não fazia parte da família, pois nem sequer se aventurava a
entrar dentro da casa, como eu fiz com o ar mais respeitoso deste
mundo. Coloquei-me de início junto a um canto mais escuro, para
estudar a situação, e depois, vendo quem é que chorava mais e
tinha o ar mais compungido, aproximei-me e apresentei os pêsames,
com uma ligeira entonação de luto na voz. Logo em seguida, e como
mandam as boas maneiras, cheguei até a beira do caixão, levantei o
pequeno lenço que encobria a cara do defunto, e dei com um sujeito
de má catadura mas de fisionomia serena, que nunca antes havia visto
em minha vida. À primeira vista pareceu-me um funcionário público
aposentado, mas depois, observando melhor, cheguei à conclusão de
que devia tratar-se de algum domador de circo, pela cicatriz bem
visível que trazia numa das faces e que me lembrou um domador que eu
conhecera, havia muitos anos, num subúrbio de Ankara.
Feitas
as apresentações, e como o estômago já começasse a roncar-me
mais forte do que um motor de cem cavalos, voltei discretamente ao
meu canto e pus-me a aguardar a marcha dos acontecimentos, sentindo
(talvez fosse apenas uma ilusão do olfato) um cheiro de café que
vinha dos fundos da casa, na direção dos pés do morto.
Os
circunstantes eram todos pessoas muitos distintas, embora vestidos
pobremente e com o ar visivelmente cansado, e logo entabulei
conversação, em voz baixa, com um senhor que se achava à minha
direita e que fumava um charuto de péssima qualidade, a julgar pela
fumaça que me jogava na cara e que por pouco não me obrigou a
vomitar sobre o caixão e sobre algumas senhoras presentes, que
pareciam dormir sobre a barriga do morto. Se não vomitei é que não
havia mesmo o que vomitar, como pude concluir daí a um segundo,
quando o referido senhor voltou a falar-me a menos de um palmo do meu
nariz, envolvendo-me numa espessa cortina de fumo, como se
estivéssemos num campo de batalha.
Sob
pretexto de ir urinar, deixei meu enfumaçado interlocutor e
dirigi-me na ponta dos pés para o fundo da casa, onde de fato havia
uma cozinha e, na cozinha, um casal de namorados se bolinando e uma
criança dormindo num berço a um canto. A moça fingia que fazia o
café, ou talvez mesmo fizesse, mas o rapaz sem a menor cerimônia
lhe passava as mãos pelos seios e pelas nádegas, apertando-a ainda
de encontro ao sexo, numa espécie de cópula fictícia; ao me verem
ficaram um pouco encabulados, mas logo se recompuseram e me
ofereceram gentilmente uma xícara de café, com a condição de que
eu esperasse que o mesmo fosse feito. Sempre detestei interromper a
cópula dos outros, mesmo quando fictícia, e só mesmo para
corresponder à gentileza dos dois foi que acedi em aceitar o café,
indo para junto do pequeno berço para despistar. A pequena era uma
garota de seus quinze anos, se tanto, mas de seios potentíssimos, e
o rapaz em estado de ereção me pareceu apenas mais velho do que
ela, ainda imberbe e com um enorme furúnculo à altura do ouvido. Eu
mesmo, que não sou muito sensual, senti-me imediatamente ereto
diante daquela cena de imprevista libidinagem junto ao cheiro do café
e do morto, e não perdi vaza para lançar à menina o meu olhar mais
luxurioso, que ela parece ter compreendido instantaneamente.
Conversa
vai, conversa vem, fiquei sabendo que o morto era nada menos do que o
pai legítimo da jovem bolinada, e que o rapaz furunculoso era seu
primo e por conseguinte sobrinho direto do dono da casa, o que em
parte justificava o afã com que os dois se entregavam à liberdade
dos seus instintos, agora que não tinha mais quem os vigiasse por
detrás das portas. Quanto à criança, que me pareceu um tanto ou
quanto japonesa, nada tinha a ver com a história, estando ali como
Pilatos no Credo, com eu mesmo ali estava sentado no meu canto e à
espera do café.
Pronto
o café, pedi delicadamente um pedaço de pão e o devorei quase que
de uma só dentada, embora procurando disfarçar minha fome de três
dias, e aceitei como sobremesa três bananas e quatro laranjas que a
jovem órfã me ofereceu, sempre com o seu par de seios apontando em
ar de desafio. Ainda ereto, pedi um copo d’água para ajustar a
digestão e me levantei cheio de dignidade, palitando os dentes com
um palito de fósforo que encontrei sobre a mesa e que me pareceu
relativamente limpo; depois tomei o rumo da sala de visitas, com as
mãos nos bolsos, dando a entender que não voltaria ali tão cedo e
que eles poderiam continuar bolinando-se à vontade, desde que o
japonesinho o permitisse.
Nem
bem passaram uns quinze minutos, e um barulho infernal de buzinas e
foguetes subiu de todo o bairro circundante e entrou pela porta
aberta, chegando até os ouvidos do morto, que todavia manteve sua
atitude impassível e absolutamente compenetrada. Como eu me
mostrasse surpreso, quase tanto quanto o cachorro que agora se achava
dentro da sala e se pusera a latir, um sujeito de óculos e que até
então me passara despercebido explicou-me que estávamos entrando no
Ano Novo (menos o morto, evidentemente) e que não se tratava, por
conseguinte, de nenhuma nova revolução, embora o barulho fosse
exatamente o mesmo. Arranquei do bolso meu relógio, que fez grande
efeito entre os presentes, e verifiquei que realmente era meia-noite
em ponto, nem um minuto a mais nem a menos, o que veio demonstrar que
o meu enforcado era um sujeito metódico e geralmente bem informado,
e que a pontualidade para ele era uma questão muito séria, pela
qual teria que pautar todos os seus atos.
Após
chorar um pouco mais, para não dar na vista, despedi-me da viúva e
de um sujeito que me pareceu ser seu amante, e ganhei discretamente a
porta da rua, por onde justamente nesse instante ia passando um bloco
carnavalesco de pretos e mulatos, vestidos a caráter e entoando aos
berros um sucesso para o próximo carnaval, que me pareceu de melodia
muito fácil e agradável.
O
bloco levou-me, aos gritos, até o centro da cidade, onde alguns
soldados, de arma embalada, mantinham a ordem e faziam ver aos mais
exaltados que o Ano Novo era exatamente igual ao Ano Velho, apesar
das buzinas, dos sinos e dos foguetes pirotécnicos, e espancavam sem
a menos cerimônia a torto e a direito, como se essa fosse a sua
função estrita dentro do mundo. (Vi cair um velho fantasiado de
palhaço, com um enorme rombo no meio da testa, bem como assisti a um
golpe de baioneta que levou bem no meio das nádegas uma matrona sem
compostura, que só por estar vestida de Maria Antonieta se julgara
com força suficiente para invectivar o governo e xingar dos piores
nomes Sua Excelência o presidente da República.)
Como
não tinha nada a ver com a história, e mesmo porque o 1.° de
janeiro sempre me pareceu apenas o dia seguinte ao 31 de dezembro,
tratei de pôr-me a salvo o quanto antes, numa rua que se abriu
exatamente à minha frente e que, como pude verificar depois, ia dar
justamente à beira de um cais deserto, que eu nunca vira antes em
nenhuma tela de cinema e nem mesmo no meu manual de geografia, em
geral tão bem informado.
Walter Campos de Carvalho, in A Lua Vem da Ásia
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