Se
o assunto é meu e seu, lhe digo, lhe conto; que vale enterrar
minhocas? De como aqui me vi, sutil assim, por tantas cargas d’água.
No engano sem desengano: o de aprender prático o desfeitio da vida.
Sorte?
A gente vai — nos passos da história que vem. Quem quer viver faz
mágica. Ainda mais eu, que sempre fui arrimo de pai bêbedo. Só que
isso se deu, o que quando, deveras comigo, feliz e prosperado. Ah,
que saudades que eu não tenha... Ah, meus bons maus-tempos! Eu
trabalhava para um senhor Doutor Mimoso.
Sururjão,
não; é solorgião. Inteiro na fama — olh’alegre, justo,
inteligentudo — de calibre de quilate de caráter. Bom
até-onde-que, bom como cobertor, lençol e colcha, bom mesmo quando
com dor-de-cabeça: bom, feito mingau adoçado. Versando chefe os
solertes preceitos. Ordem, por fora; paciência por dentro. Muito
mediante fortes cálculos, imaginado de ladino, só se diga. A fim de
comigo ligeiro poder ir ver seus chamados de seus doentes, tinha
fechado um piquete no quintal: lá pernoitavam, de diário, à mão,
dois animais de sela — prontos para qualquer aurora.
Vindo
a gente a par, nas ocasiões, ou eu atrás, com a maleta dos remédios
e petrechos, renquetrenque, estudante andante. Pois ele comigo
proseava, me alentando, cabidamente, por norteação — a conversa
manuscrita. Aquela conversa me dava muitos arredores. Ô homem!
Inteligente como agulha e linha, feito pulga no escuro, como dinheiro
não gastado. Atilado todo em sagacidades e finuras — é de
fímplus! de tintínibus... — latim, o senhor sabe, aperfeiçoa...
Isso, para ele, era fritada de meio ovo. O que porém bem.
Não
adulo; me reponho. Me apreciava, cordial. Me saudava segurando minha
mão — mão de pegar o pão. Homem justo — de medidinhos de
termômetro, feito sal e alho no de comer, feito perdão depois de
repreensão. Mesmo ele me dizendo, de aliás: — “Jimirulino, a
gente deve ser: bom, inteligente e justo... para não fincar o pé em
lamas moles...” Isso! Aprender com ele eu querendo
ardentemente: compaixões, razões partes, raposartes... Ele, a
cachola; eu a cachimônia.
Assim
a gente vinha e ia, a essas fazendas, por doentes e adoecidos. Me
pagava mais, gratificado, por légua daquelas, às-usadas. Ele,
desarmado, a não ser as antes ideias. Eu — a prumo. Mais meu
revólver e o fino punhal. De cotovelo e antebraço, — um homem
pode dispor. Sou da laia leal. Então, homem que vale por dois não
precisa de estar prevenido?
Pois,
por exemplo: o dia deu-se. Foi sendo que.
Meu
patrão se sombreava? — o que nem dava a perceber. Mas, eu,
sabendo. As coisas em meus ombros empoleiradas. Dos inimigos dele: os
que a gente não quer, mas faz. Havia súcia. Os miasmas, os três:
Chico Rebuque, por muito mingrim, tão botocudo; um Chochó, que por
dinheiro dava a vida alheia; e o que mandava, seo Sá Andrades Paiva,
espírito sem bicarbonato.
Doutor
Mimoso abria os olhos para os óculos, não querendo ver o mal nem o
perigo. Inteligente, justo e bom! — muito leve no caso. Eu, já
cortado com aquilo. A gente na vem-vinda — de casos de partos. A
gente conversava constituidamente, para recuidar, razões brancas. Eu
escutava e espiava só as sutilezas, nos estilos da conversação.
Aquelas montanhas de ideias e o capim debaixo das vacas.
— “Jimirulino,
o que esses são: são é os meliantes...” muito me dizendo,
ele, de uso de suspiro — “... pobres ignorantes... Quem menos
sabe do sapato, é a sola...” Alheava os olhos, cheio de
bondades. Assim não gastava a calma, regente de tudo — do freio à
espora. Eu: duro, firme, de lei — pau de ipê, canela-do-brejo. Eu
estava à obediência, com a cabeça destampada.
Moderado
então ele me instruiu: — “A gente preza e espera a lei,
Jimirulino... Deus executa!” — e não era suspiro, não, eram
arejos de peito, do brio fidalgo. Homem justo! Mais fornecido falou,
palavras reportadas, nesse debate.
Eu,
olhando para o silêncio, já com as beiradas duvidadas. Fui-me
enchendo de vagarosamentes — o que estava me tremeluzindo. Meu
destino ia fortíssimo; eu, anônimo de família. Daí, já em
desdiferenças, ele veio: — “Deixa, Jimirulino...” —
se a melhor luz faz o norte. — “Deixa. Um dia eles pela frente
topam algum fiel homem valente... e, com recibos, pagam...” —
afirmador, feito no florear com a lanceta. Disse, mas de enfim; tendo
meigos cuidados com o cavalo. Que inteligência!
E
peguei a ideia de que. Respirei respiração, entanto que para
ásperas coisas, entre o pinote e o pensamento, enfim clareado. O
mais era fé e brinquedo. Eu estava na água da hora beber onça...
Me espremi para limonadas.
Saí,
a reto, à rédea larga. A abreviar com aqueles três juntos — de
oh-glórias! numa égua baia clara. E cheguei. Me perfiz, eu
urgenciava. Atirei num: rente alvejável. Sem mais nem vens,
desfechei noutro. Acertei o terceiro, sem más nem boas. Quem entra
no pilão, vira paçoca! Nulho nenhum viveu, dos coitados.
Me
prenderam — ainda com fôlegos restantes — quando acabou o
acontecido. Desarranjação, a má-representação, o senhor sabe. O
senhor, advogado.
Se
o assunto é seu e nosso, lhe repito lhe digo: minha encaminhação,
veja só, conforme comi, banana e casca. Fui a júri e condenado. Me
ajudou o patrão a baixar a pena; ainda tenho uns três anos
invisíveis. Aqui, com remorsos e recreios, riscado de grades. Mas o
espírito do nariz em jardins, a gente se valendo de tempos vazios.
Duro é só o começo da lei. Arrumaram para mim folga, de pensar,
estes lazeres, o gosto de segunda metade.
Acho
que achei o erro, que tive: de querer aprender demais depressa, no
sofreguido. Inda hei porém de ser inteligente, bom e justo: meu
patrão por cópia de imagem. Hei de trabalhar para o Doutor Mimoso!
Guimarães Rosa, in Tutameia
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