segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

— Uai, eu?


Se o assunto é meu e seu, lhe digo, lhe conto; que vale enterrar minhocas? De como aqui me vi, sutil assim, por tantas cargas d’água. No engano sem desengano: o de aprender prático o desfeitio da vida.
Sorte? A gente vai — nos passos da história que vem. Quem quer viver faz mágica. Ainda mais eu, que sempre fui arrimo de pai bêbedo. Só que isso se deu, o que quando, deveras comigo, feliz e prosperado. Ah, que saudades que eu não tenha... Ah, meus bons maus-tempos! Eu trabalhava para um senhor Doutor Mimoso.
Sururjão, não; é solorgião. Inteiro na fama — olh’alegre, justo, inteligentudo — de calibre de quilate de caráter. Bom até-onde-que, bom como cobertor, lençol e colcha, bom mesmo quando com dor-de-cabeça: bom, feito mingau adoçado. Versando chefe os solertes preceitos. Ordem, por fora; paciência por dentro. Muito mediante fortes cálculos, imaginado de ladino, só se diga. A fim de comigo ligeiro poder ir ver seus chamados de seus doentes, tinha fechado um piquete no quintal: lá pernoitavam, de diário, à mão, dois animais de sela — prontos para qualquer aurora.
Vindo a gente a par, nas ocasiões, ou eu atrás, com a maleta dos remédios e petrechos, renquetrenque, estudante andante. Pois ele comigo proseava, me alentando, cabidamente, por norteação — a conversa manuscrita. Aquela conversa me dava muitos arredores. Ô homem! Inteligente como agulha e linha, feito pulga no escuro, como dinheiro não gastado. Atilado todo em sagacidades e finuras — é de fímplus! de tintínibus... — latim, o senhor sabe, aperfeiçoa... Isso, para ele, era fritada de meio ovo. O que porém bem.
Não adulo; me reponho. Me apreciava, cordial. Me saudava segurando minha mão — mão de pegar o pão. Homem justo — de medidinhos de termômetro, feito sal e alho no de comer, feito perdão depois de repreensão. Mesmo ele me dizendo, de aliás: — “Jimirulino, a gente deve ser: bom, inteligente e justo... para não fincar o pé em lamas moles...” Isso! Aprender com ele eu querendo ardentemente: compaixões, razões partes, raposartes... Ele, a cachola; eu a cachimônia.
Assim a gente vinha e ia, a essas fazendas, por doentes e adoecidos. Me pagava mais, gratificado, por légua daquelas, às-usadas. Ele, desarmado, a não ser as antes ideias. Eu — a prumo. Mais meu revólver e o fino punhal. De cotovelo e antebraço, — um homem pode dispor. Sou da laia leal. Então, homem que vale por dois não precisa de estar prevenido?
Pois, por exemplo: o dia deu-se. Foi sendo que.
Meu patrão se sombreava? — o que nem dava a perceber. Mas, eu, sabendo. As coisas em meus ombros empoleiradas. Dos inimigos dele: os que a gente não quer, mas faz. Havia súcia. Os miasmas, os três: Chico Rebuque, por muito mingrim, tão botocudo; um Chochó, que por dinheiro dava a vida alheia; e o que mandava, seo Sá Andrades Paiva, espírito sem bicarbonato.
Doutor Mimoso abria os olhos para os óculos, não querendo ver o mal nem o perigo. Inteligente, justo e bom! — muito leve no caso. Eu, já cortado com aquilo. A gente na vem-vinda — de casos de partos. A gente conversava constituidamente, para recuidar, razões brancas. Eu escutava e espiava só as sutilezas, nos estilos da conversação. Aquelas montanhas de ideias e o capim debaixo das vacas.
— “Jimirulino, o que esses são: são é os meliantes...” muito me dizendo, ele, de uso de suspiro — “... pobres ignorantes... Quem menos sabe do sapato, é a sola...” Alheava os olhos, cheio de bondades. Assim não gastava a calma, regente de tudo — do freio à espora. Eu: duro, firme, de lei — pau de ipê, canela-do-brejo. Eu estava à obediência, com a cabeça destampada.
Moderado então ele me instruiu: — “A gente preza e espera a lei, Jimirulino... Deus executa!” — e não era suspiro, não, eram arejos de peito, do brio fidalgo. Homem justo! Mais fornecido falou, palavras reportadas, nesse debate.
Eu, olhando para o silêncio, já com as beiradas duvidadas. Fui-me enchendo de vagarosamentes — o que estava me tremeluzindo. Meu destino ia fortíssimo; eu, anônimo de família. Daí, já em desdiferenças, ele veio: — “Deixa, Jimirulino...” — se a melhor luz faz o norte. — “Deixa. Um dia eles pela frente topam algum fiel homem valente... e, com recibos, pagam...” — afirmador, feito no florear com a lanceta. Disse, mas de enfim; tendo meigos cuidados com o cavalo. Que inteligência!
E peguei a ideia de que. Respirei respiração, entanto que para ásperas coisas, entre o pinote e o pensamento, enfim clareado. O mais era fé e brinquedo. Eu estava na água da hora beber onça... Me espremi para limonadas.
Saí, a reto, à rédea larga. A abreviar com aqueles três juntos — de oh-glórias! numa égua baia clara. E cheguei. Me perfiz, eu urgenciava. Atirei num: rente alvejável. Sem mais nem vens, desfechei noutro. Acertei o terceiro, sem más nem boas. Quem entra no pilão, vira paçoca! Nulho nenhum viveu, dos coitados.
Me prenderam — ainda com fôlegos restantes — quando acabou o acontecido. Desarranjação, a má-representação, o senhor sabe. O senhor, advogado.
Se o assunto é seu e nosso, lhe repito lhe digo: minha encaminhação, veja só, conforme comi, banana e casca. Fui a júri e condenado. Me ajudou o patrão a baixar a pena; ainda tenho uns três anos invisíveis. Aqui, com remorsos e recreios, riscado de grades. Mas o espírito do nariz em jardins, a gente se valendo de tempos vazios. Duro é só o começo da lei. Arrumaram para mim folga, de pensar, estes lazeres, o gosto de segunda metade.
Acho que achei o erro, que tive: de querer aprender demais depressa, no sofreguido. Inda hei porém de ser inteligente, bom e justo: meu patrão por cópia de imagem. Hei de trabalhar para o Doutor Mimoso!

Guimarães Rosa, in Tutameia

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