...
no não perdido,
no
além-passado...
Mnemônicum.
Terra
de arroz. Tendo ali vestígios de pré-idade? A menina, mão na boca,
manhosos olhos de tinta clara, as pupilas bem pingadas. Só a
tratavam de Dja ou Iaí, menininha, de babar em travesseiro. Sua
presença não dominava 1/1.000 do ambiente. De ser, se inventava: —
“Maria Euzinha...” — voz menor que uma trova, os cabelos
cacho, cacho.
Ficava
no intato mundo das ideiazinhas ainda. Esquivava o movimento em
torno, gente e perturbação, o bramido do lar. — “Eu não sei
o quê.” Suspirinhos. Sabia rezar entusiasmada e recordar o que
valia. A abelha é que é filha do mel; os segredos a guardavam.
Via-se
e vivia de desusado modo, inquieta como um nariz de coelhinho, feliz
feito narina que hábil dedo esgravata. — “Dó de mim, meu
sono?” — gostava, destriste, de recuar do acordado.
Antes
e antes, queria o arrozal, o grande verde com luz, depois amarelo
ondeante, o ar que lá. Um arrozal é sempre belo. Sonhava-o
lembrado, de trazer admiração, de admirar amor.
Lá
não a levavam: longe de casa, terra baixa e molhada, do mato onde
árvores se assombram — ralhavam-lhe; e perigos, o brejo em brenha
— vento e nada, no ir a ver...
Não
dava fé; não o coração. Segredava-se, da caixeta de uma
sabedoria: o arrozal lindo, por cima do mundo, no miolo da luz — o
relembramento.
Tapava
os olhos com três dedos — unhas pintadas de mentirinhas brancas —
as faces de furta-flor. Precisava de ir, sem limites. Não cedia
desse desejo, de quem me dera. Opunha o de-cor de si, fervor sem
miudeio, contra tintim de tintim.
— “O
ror...” — falava o irmão, da parte do mundo trabalhoso.
Tinha de ali agitar os pássaros, mixordiosos, que tudo espevitam, a
tremeter-se, faziam o demônio. Pior, o vira-bosta. Nem se davam do
espantalho...
Dja
fechava-se sob o instante: careta por laranja azeda. Negava ver. Todo
negava o espantalho — de amordaçar os passarinhos, que eram só do
céu, seus alicercinhos. Rezava aquilo. O passarinho que vem, que
vem, para se pousar no ninho, parece que abrevia até o tamanho das
asas... Devia fazer o ninho no bolso velho do espantalho!
— “A
água é feia, quente, choca, dá febre, com lodo de meio palmo...”
Mas:
— “Não-me, não!” — ela repetia, no descer dos
cílios, ao narizinho de rebeldias. Renegava. Reza-e-rezava. A água
fria, clara, dada da luz, viva igual à sede da gente... Até o sol
nela se refrescava.
— “Tem
o jararacuçu, a urutu-boi...” — que picavam. O sapo,
mansinho de morte, a cobra chupava-o com os olhos, enfeitiço: e bote
e nhaque...
Iaí
psiquepiscava. Arrenegava. Apagava aquilo: avesso, antojo. Sapos,
cobras, rãs, eram para ser de enfeite, de paz, sem amalucamentos, do
modo são, figuradio. E ria que rezava.
Sempre
a ver, rever em ideia o arrozal, inquietinha, dada à doença de
crescer. — “Hei-de, hei-de, que vou!” — agora mesmo e
logo, enquanto o gato se lambia. Saíra o dia, a lápis vermelho —
pipocas de liberdade. Soltou-se Iaí, Dja, de rompida, à manhã
belfazeja, quando o gato se englobava.
Sus,
passou a grande abóbora amarela, os sisudos porcos, os cajus, nus, o
pato do bico chato, o pato com a peninha no bico, a flor que parecia
flor, outras flores que para cima pulavam, as plantas idiotas, o cão,
seus dislates. Virou para um lado, para o outro, para o outro —
lépida, indecisa, decisa. Tomou direitidão. Vinha um vento
vividinho, ela era mimo adejo de ir com intento.
Os
pássaros? Na fina pressa, não os via, o passarinho cala-se por
astúcia e arte. Trabalhavam catando o de comer, não tinham folga
para festejo. Fingiam que não a abençoavam?
E
eis que a água! A poça de água cor de doce-de-leite, grossa, suja,
mas nela seu rosto limpo límpido se formava. A água era a
mãe-d’água.
Aqui
o caminho revira — no chão florinhas em frol — dali a estrada vê
a montanha. Iaí pegou do ar um chamado: de ninguém, mais veloz que
uma voz, ziguezagues de pensamento. Olhou para trás,
não-sei-por-quê, à indominada surpresa, de pôr prontos olhos.
O
mal-assombro! Uma cobra, grande, com um sapo na boca, estrebuchado...
os dois, marrons, da cor da terra. O sapo quase já todo engolido,
aos porpuxos: só se via dele a traseirinha com uma perna espichada
para trás...
Dja
tornou sobre si, de trabuz, por pau ou pedra, cuspiu na cobra.
Atirou-lhe uma pedrada paleolítica, veloz como o amor. Aquilo
desconcebeu-se. O círculo ab-rupto, o deslance: a cobra largara o
sapo, e fugia-se assaz, às moitas folhuscas, lefe-lefe-lhepte, como
mais as boas cobras fazem. De outro lado, o sapo, na relvagem, a rojo
se safando, só até com pouquinho pontinho de sangue, sobrevivo. O
sapo tinha pedido socorro? Sapos rezam também — por força,
hão-de! O sapo rezara.
Djaiaí,
sustou-se e palpou-se — só a violência do coração bater. A mãe,
de lá gritando, brava ralhava. Volveu. Travestia o garbo tímido, já
de perninhas para casa.
E
o arrozal não chegara a ver, lugar tão vistoso: neblinuvens. — “A
bela coisa!” — mais e mais, se disse, de devoção,
maiormente instruída.
Disse
ao irmão, que só zombava: — “Você não é você, e eu
queria falar com você...” — Maria Euzinha.
Ia
dali a pouco adormecer — “Devagar, meu sono...” — dona
em mãozinha de chave dourada, entre os gradis de ouro da alegria.
Guimarães Rosa, in Tutameia
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