quinta-feira, 19 de janeiro de 2023

Tratado do uso das mulheres

Foi tudo uma coincidência.”
Coincidências não existem.”
Não existem?”
Vá lá, existem. Mas não resultam em nada.”
Um amigo meu estava andando numa rua da cidade e um infeliz resolveu se matar, pulou da janela de um prédio e caiu em cima do meu amigo que passava. Os dois morreram. Não foi uma coincidência? Com resultado, trágico, aliás.”
E você se chamar Francisco Nunes Correia é a importante coincidência que levou você a querer escrever esse livro?”
É.”
O nome do sujeito é Francisco Nunes Oria. Não é Nunes Correia. E ele nasceu em mil quinhentos e tantos, na Espanha.”
As coincidências podem ser plenas ou parciais. Eu também sou médico, como ele era. O tratado que ele escreveu é de 1572, o final do número do meu telefone.”
Que coisa mais boba.”
Coincidências parciais são muitas vezes mais importantes do que as plenas. E não se esqueça de que o tratado dele, como o que eu pretendo escrever, é um guia prático e higiênico sobre o coito. E isso hoje em dia é mais necessário do que em 1572.”
E você tem que usar o mesmo título: Tratado sobre o uso das mulheres? Uso? Uso das mulheres?”
Não sejamos hipócritas. O que os homens fazem com as mulheres na cama senão usá-las?”
Então você me usa?”
Digamos que eu me sirva de você, como se fosse uma iguaria. Ao praticar com você a introductio penis intra vas, eu te como, como dizemos muito apropriadamente em nossa bela língua.”
Eu também te como. Você devia chamar o seu livro de Tratado do uso das mulheres e dos homens.
Vocês mulheres dizerem que nos comem é um emprego novo desse vocábulo. Que digam. Mas a metáfora não é perfeita.”
Quais são os temas que você pretende abordar?”
Assim como o meu quase xará, farei inicialmente um levantamento dos estudos realizados no período compreendido entre o começo do século V e meados do século XV e de antes mesmo, pois os medievos se basearam muito em Galeno. Mas você quer saber quais são os tópicos. São variados. Por exemplo: de que maneira o uso das mulheres pode ser danoso ou proveitoso; como resistir às tentações da carne; os riscos higiênicos, os riscos dos excessos; o coito como uma atividade imprescindível para assegurar a saúde do corpo e da mente humanos. Tenho aqui cópias desses velhos tratados sobre o assunto. Por incrível que pareça ainda existem nos dias de hoje, não tão repressivos quanto na Idade Média, preconceitos puritanos que condenam o prazer sexual.”
Você vai perder muito tempo para fazer isso.”
Já perdi tempo e dinheiro. Acha que foi fácil conseguir esse material? Olha aqui, em cima da mesa do escritório, o Liber minor de coitu, do século XV, escrito em latim. O El speculum al foderi, século XV, escrito em catalão. Este outro é a obra básica, de Constantino, o Africano, De coitu, do século XI, referência de todos os tratados de medicina da Idade Média, que desenvolveram as teses de Galeno sobre a necessidade higiênica de expulsar com regularidade o sêmen do corpo humano...”
Velharias.”
Tenho coisas novas. Este estudo de Joan de Cadden, Meanings of sex difference in the Middle Ages, de mil novecentos e noventa e três. As teses medievais sobre a natureza patológica, fisiológica e terapêutica do coito...”
Um livro novo sobre velharias ultrapassadas...”
A igreja, no século XXI, ainda se prende, de certa maneira, aos ditames bíblicos sobre a necessidade de reproduzir, como está no Gênesis, 1,28. Para esses fanáticos indiferentes ao fato de vivermos num mundo em que existe gente em excesso, o objetivo do coito seria a geração de novos seres. Mas a finalidade do coito deve ser o prazer. Não vou, portanto, ao contrário do meu antecessor, ensinar também a usar as mulheres para fazer filhos. Exatamente o oposto.”
Porém, um dos tópicos mencionados por você é como resistir à tentação da carne. Não é um apelo à castidade?”
Não, claro que não. Eu estou numa festa e uma mulher extremamente atraente me leva para o banheiro para que eu a coma. Estou morrendo de tesão por ela, mas não tenho uma camisinha comigo. Então tenho que resistir à tentação da carne.”
Que festas são essas que você frequenta?”
É uma situação hipotética.”
Fala a verdade. Já aconteceu isso com você? Confessa, diga: aconteceu antes de eu conhecer você.”
Aconteceu antes de eu conhecer você.”
E você resistiu?”
Não. É por isso que eu sei que a carne é fraca.”
A mulher confiou em você. Mas você me disse que a regra de ouro nas relações sexuais é: não coma quem confia em você.”
Mas as tentações da carne são veementes. Por isso o meu tratado vai ensinar a como resistir a elas.”
Você vai ensinar uma coisa que não sabe fazer.”
Não sabia.”
Esse episódio do banheiro foi há muito tempo?”
Há quanto tempo nos conhecemos?”
Um ano, dois meses e vinte e dois dias.”
Esse detalhe me deixa emocionado. Vinte e dois dias?”
E seis, não, sete horas.”
Eu devia casar com você.”
Que merda, anda, fala logo, há quanto tempo você comeu no banheiro essa vadia sem preconceitos puritanos?”
Uns dois, três anos.”
AIDS fica incubada muito tempo, sabia?”
Depois daquele comportamento imprudente fiquei muito preocupado e fiz um monte de exames.”
Quero ver a data e o resultado do último.”
Está aqui em casa, em algum lugar. Você já viu, nós trocamos exames de sangue, eu e você, já se esqueceu? Odiamos camisinha.”
Vamos fazer outros amanhã. Amanhã, viu? E você só me come sem camisinha depois de eu ver o resultado.”
Heloísa, confia em mim.”
Então você vai para a cama com uma mulher que confia em você?”
Nós dois não estamos incluídos nessa precaução.”
Esse tratado vai ser um monte de idiotices cavilosas. Eu não perderia tempo com ele. Escreve as coisas que você está habituado a escrever. Num banheiro, Puta que pariu.”
Meu bem...”
Não posso imaginar você fazendo uma coisa dessas...”
Nós, os homens, somos diferentes das mulheres... Reconheço, como os velhos tratadistas, que as mulheres também têm apetites sexuais, mas não tão insaciáveis quanto os masculinos. Na verdade vocês não têm essa impulsão essencial de disseminar o sêmen, historicamente vital para a sobrevivência da espécie. Agora não mais difundimos o sêmen apenas por determinismo genético, mas por prazer, e a impulsão aumentou. Que diabo, nem sêmen vocês mulheres têm para plantar... É por isso, querida, que o título da minha obra tem que ser Tratado do uso das mulheres, quando muito podia trocar mulheres por fêmeas. Que é isso? Você está rasgando o compêndio do Johannes de Ketham, você está louca, pára, pelo amor de Deus...”
Você não acredita em Deus, seu filho da puta...”
Esse é o Bernardo de Gordonio, uma obra rara, não faça isso, meu amor...”
Você também não acredita no amor, cachorro... Rasgo, não tente me impedir.”
Não, não, por favor...”
Pronto, destruí esse lixo todo.”
Você aniquilou a minha vida, essas tiras de papel...”
Você está chorando, querido?”
De raiva. Quero matar você, mas não consigo...”
Talvez a gente possa colar tudo... Me desculpe, deu uma coisa em mim... Por que você não consegue me matar?”
Não sei.”
Eu mereço, depois do que fiz. Quer que eu apanhe uma faca na cozinha? Aquela que uso para limpar a gordura do contrafilé?”
Esquece.”
Quer que eu vá embora?”
Não.”
Você me ama, Fernando.”
Não adianta ficar me abraçando, Heloísa.”
Anda, Fernando, me dá um beijo. Outro. Ah!... Já estou sentindo em você a tal impulsão vital. Eu vou usar isso, vamos para o quarto.”

Rubem Fonseca, in Pequenas Criaturas

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