Temos
várias espécies de peixe neste mundo, havendo o peixe que come
lama, o peixe que come baratas do molhado, o peixe que vive tomando
sopa fazendo chupações na água, o peixe que, quando vê a fêmea
grávida pondo ovos, não pode se conter e com agitações do rabo
lava a água de esporras a torto e a direito ficando a água leitosa,
temos o peixe que persegue os metais brilhantes, umas cavalas que
pulam para fora bem como tainhas, umas corvinas quase que atômicas,
temos por exemplo o niquim, conhecido por todas as orlas do
Recôncavo, o qual peixe não somente fuma cigarros e cigarrilhas,
preferindo a tálvis e o continental sem filtro, hoje em falta, mas
também ferreia pior do que uma arraia a pessoa que futuca suas
partes, rendendo febre e calafrios, porventura caganeiras, mormente
frios e tantas coisas, temos os peixes tiburones e cações, que
nunca podem parar de nadar para não morrer afogados.
É
engraçado que eu entenda tanto de peixe e quase não pegue, mas
entendo. Os peixes miúdos de moqueca são: o carapicu, o garapau, o
chicharro e a sardinha. Entremeados, podemos ferrar o baiacu e o
barriga-me-dói, o qual o primeiro é venenoso e o segundo causa
bostas soltas e cólicas. De uma ponte igual a essa, que já foi
bastante melhor, podemos esperar também peixes de mais de palmo,
porém menos de dois, que por aqui passam, dependendo do que diz o
rei dos peixes, dependendo de uma coisa e outra. Um budião, um
cabeçudo, um frade, um barbeiro. Pode ser um robalo ou uma agulha ou
ainda uma moreia, isto dificilmente. O bom da pesca do peixe miúdo é
quando estão mordendo verdadeiramente e sentamos na rampa ou então
vamos esfriando as virilhas nestas águas de agosto e ficamos
satisfeitos com aquela expedição de pescaria e nada mais desejamos
da vida.
Ou
quando estamos como assim nesta canoa, porém nada mordendo, somente
carrapatos. Nesses peixes miúdos de moqueca, esquecia eu de
mencionar o carrapato, que não aparece muito a não ser em certas
épocas, devendo ter recebido o nome de carrapato justamente por ser
uma completa infernação, como os carrapatos do ar. Notadamente
porque esse peixe carrapato tem a boca mais do que descomunal para o
tamanho, de modo que botamos um anzol para peixes mais fundos,
digamos um vermelho, um olho-de-boi, um peixe-tapa, uma coisa
decente, quando que me vem lá de baixo, parecendo uma borboletinha
pendurada na ponta da linha, um carrapato. Revolta a pessoa.
E
estou eu colocando uma linha de náilon que me veio de Salvador por
intermédio de Luiz Cuiúba, que me traz essa linha verde e grossa,
com dois chumbos de cunha e anzóis presos por uma espécie de rosca
de arame, linha esta que não me dá confiança, agora se vendo que é
especializada em carrapatos. Mas temos uma vazante despreocupada, vem
aí setembro com suas arraias no céu e, com esses dois punhados de
camarão miúdo que Sete Ratos me deu, eu amarro a canoa nos restos
da torre de petróleo e solto a linha pelos bordos, que não vou me
dar ao desfrute de rodar essa linha esquisita por cima da cabeça
como é o certo, pode ser que alguém me veja. Daqui diviso os fundos
da Matriz e uns meninos como formiguinhas escorregando nas areias
descarregadas pelos saveiros, mas o barulho deles chega a mim depois
da vista e assim os gritos deles parecem uns rabos compridos. Temos
uma carteira quase cheia de cigarros; uma moringa, fresca, fresca;
meia quartinha de batida de limão; estamos sem cueca, a água, se
não fosse a correnteza da vazante, era mesmo um espelho; não falta
nada e então botamos o chapéu um pouco em cima do nariz, ajeitamos
o corpo na popa, enrolamos a linha no tornozelo e quedamos, pensando
na vida. Nisso começa o carrapato, que no princípio tive na conta
de baiacus ladrões. Quem está com dois anzóis dos grandes, pegou
isca de graça e a mulher já mariscou a comida do meio-dia pode ser
imaginado que não vai dar importância a beliscão leve na linha.
Nem leve nem pesado. Se quiser ferrar, ferre, se não quiser não
ferre. Isso toda vez eu penso, como todo mundo que tem juízo, mas
não tem esse santo que consiga ficar com aqueles puxavantes no
apeador sem se mexer e tomar uma providência. Estamos sabendo: é um
desgraçado de um baiacu. Se for, havendo ele dado todo esse
trabalho, procuremos arrancar o anzol que o miserável engole e
estropia e trataremos de coçar a barriga dele e, quando inchar,
dar-lhe um pipoco, pisando com o calcanhar. Mas como de fato não é
um baiacu, mas um carrapato sub esenvolvido, um carrapatinho de
merda, com mais boca do que qualquer outra coisa, boca essa
assoberbando um belo anzol preparado pelo menos para um dentão, não
se pode fazer nada. Um carrapato desses a pessoa come com uma
exclusiva dentada com muito espaço de sobra, se valesse a pena
gastar fogo com um infeliz desses. Vai daí, carrapato na poça
d’água do fundo da canoa e, dessa hora em diante, um carrapato por
segundo mordendo o anzol, uma azucrinação completa. Foi ficando
aquela pilha de carrapatinhos no fundo da canoa e eu pensei que então
não era eu quem ia aparecer com eles em casa, porque com certeza iam
perguntar se eu tinha catado as costas de um jegue velho e nem gato
ia querer comer aquilo. Pode ser que essa linha de Cuiúba tenha
especialidade mesmo em carrapato, pode ser qualquer coisa, mas chega
a falta de vergonha ficar aqui fisgando esses carrapatos, de maneira
que só podemos abrir essa quartinha, retirar o anzol da água,
verificar se vale a pena remar até o pesqueiro de Paparrão nesta
soalheira, pensar que pressa é essa que o mundo não vai acabar, e
ficar mamando na quartinha, viva a fruta limão, que é curativa.
Nisto
que o silêncio aumenta e, pelo lado, eu sinto que tem alguma coisa
em pé pelas biribas da torre velha e eu não tinha visto nada antes,
não podendo também ser da aguardente, pois que muito mal tomei dois
goles. Ele estava segurando uma biriba coberta de ostras com a mão
direita, em pé numa escora, com as calças arregaçadas, um chapéu
velho e um suspensório por cima da camisa. — Ai égua! — disse
eu. — Veio nadando e está enxuto? — Eu não vim nadando —
disse ele. — Muito peixe? — Carrapato miúdo.
— Olhe
ali — disse ele, mostrando um rebrilho na água mais para o lado da
Ilha do Medo. — Peixe.
Ora,
uma manta de azeiteiras vem vindo bendodela, costeando o perau. É
conhecida porque quebra a água numa porção de pedacinhos pela flor
e aquilo vai igual a muitas lâminas, bordejando e brilhando. Mas
dessas azeiteiras, como as peixas chamadas solteiras, não se pode
esperar que mordam anzol, nem mesmo morram de bomba.
— Azeiteira
— disse eu. — Só mesmo uma bela rede. E mais canoa e mais braço.
— Mas
eles ficam pulando — disse ele, que tinha um sorriso entusiasmado,
possivelmente porque era difícil não perceber que a água em cima
como que era o aço de um espelho, só que aço mole como o do
termômetro, e então cada peixe que subia era um orador. Aí eu
disse, meu compadre, se vosmecê botar um anzol e uma dessas meninas
gordurentas morder esse tal anzol, eu dou uma festa para você no
hotel — ainda que mal pergunte, como é a sua graça?
Assim
levamos um certo tempo, porque ele se encabulou, me afirmando que não
apreciava mentir, razão por que preferia não se apresentar, mas eu
disse que não botava na minha canoa aquele de quem não saiba o nome
e então ficasse ele ali o resto da manhã, a tarde e a noite
pendurado nas biribas, esperando Deus dar bom tempo. Mas que coisa
interessante, disse ele dando um suspiro, isso que você falou.
— É
o seguinte — disse ele, dando outro suspiro. — É porque eu sou
Deus.
Ora,
ora me veja-me. Mas foi o que ele disse e os carrapatinhos, que já
gostam de fazer corrote-corrote com a garganta quando a gente tira a
linha da água ficaram muitíssimo assanhados.
— E
mais o seguinte — continuou ele, com a expressão de quem está um
pouco enfadado. — Está vendo aqui? Não tem nada. Está vendo
alguma coisa aqui? Nada! Muito bem, daqui eu vou tirar uma porção
de linhas e jogar no meio dessas azeiteiras. E dito e feito, mais
ligeiro que o trovão, botou os braços para cima e tome tudo quanto
foi tipo de linha saindo pelos dedos dele, parecia um arco-íris. Ele
aí ficou todo monarca, olhando para mim com a cara de quem eu não
sou nem principiante em peixe e pesca. Mas o que aconteceu? Aconteceu
que, na mesma hora, cada um dos anzóis que ele botou foi mordido por
um carrapato e, quando ele puxou, foi aquela carrapatada no meio da
canoa. Eu fiz: quá-quá-quá, não está vendo tu que temos somente
carrapatos? Carrapato, carrapato, disse eu, está vendo a cara do
besta? Ele, porém, se retou.
— Não
se abra, não — disse ele — que eu mando o peixe lhe dar portada.
— Portada
dada, portada respostada — disse eu.
Para
que eu disse isto, amigo, porque me saiu um mero que não tinha mais
medida, saiu esse mero de junto assim da biriba, dando um pulo como
somente cavacos dão e me passou uma rabanada na cara que minha cara
ficou vermelha dois dias depois disto.
— Donde
saiu essa, sai mais uma grosa! — disse ele dando risada, e o mero
ficou a umas três braças da canoa, mostrando as gengivas com uma
cara de puxa-saco.
— Não
procure presepada, não — disse ele. — Senão eu mando dar um
banho na sua cara.
— Mande
seu banho — disse eu, que às vezes penso que não tenho
inteligência.
Pois
não é que ele mandou esse banho, tendo saído uma onda da parte da
Ponta de Nossa Senhora, curvando como uma alface aborrecida a ponta
da coroa, a qual onda deu tamanha portada na canoa que fiquemos
flutuando no ar vários momentos.
— Então?
— disse ele. — Eu sou Deus e estou aqui para tomar um par de
providências, sabe vosmecê onde fica a feira de Maragogipe? —
Qual é feira de Maragogipe nem feira de Gogiperama — disse eu,
muito mais do que emputecido, e fui caindo de pau no elemento, nisso
que ele se vira num verdadeiro azougue e me desce mais que
quatrocentos sopapos bem medidos, equivalentemente a um catavento
endoidado e, cada vez que eu levantava, nessa cada vez eu tomava uma
portada encaixada. Terminou nós caindo das nuvens, não sei qual com
mais poeira em torno da garupa. Ele, no meio da queda, me deu uns
dois tabefes e me disse: está convertido, convencido, inteirado,
percebido, assimilado, esclarecido, explicado, destrinchado,
compreendido, filho de uma puta? E eu disse sim senhor, Deus é mais.
Pare de falar em mim, sacaneta, disse ele, senão lhe quebro todo de
portada. Reze aí um padre-nosso antes que eu me aborreça, disse
ele. Cale essa matraca, disse ele.
Então
eu fui me convencendo, mesmo porque ele não estava com essas
paciências todas, embora se estivesse vendo que ele era boa pessoa.
Esclareceu que, se quisesse, podia andar em cima do mar, mas era por
demais escandaloso esse comportamento, podendo chamar a atenção.
Que qualquer coisa que ele resolvesse fazer ele fazia e que eu não
me fizesse de besta e que, se ele quisesse, transformava aqueles
carrapatos todos em lindos robalos frescos. No que eu me queixei que
dali para Maragogipe era um bom pedaço e que era mais fácil um boto
aparecer para puxar a gente do que a gente conseguir chegar lá antes
que a feira acabasse e aí ele mete dois dedos dentro da água e a
canoa sai parecendo uma lancha da Marinha, ciscando por cima dos
rasos e empinando a proa como se fosse coisa, homem ora. Achei falta
de educação não oferecer um pouco do da quartinha, mas ele disse
que não estava com vontade de beber.
Nisso
vamos chegando muito rapidamente a Maragogipe e Deus puxa a poita
desparramando muitos carrapatos pelos lados e fazendo a alegria dos
siris que por ali pastejam e sai como que nem um peixe-voador. No
meio do caminho, ele passa bastante desencalmado e salva duas almas
com um toque só, uma coisa de relepada como somente quem tem muita
prática consegue fazer, vem com a experiência. Porque ele nem
estava olhando para essas duas almas, mas na passagem deu um toque na
orelha de cada uma e as duas saíram voando ali mesmo, igual aos
martins depois do mergulho. Mas aí ele ficou sem saber para onde ia,
na beira da feira, e então eu cheguei perto dele. — Tem um rapaz
aqui — disse Deus, coçando a gaforinha meio sem jeito — que eu
preciso ver.
— Mas
por que vosmecê não faz um milagre e não acha logo essa pessoa? —
perguntei eu, usando o vosmecê, porque não ia chamar Deus de você,
mas também não queria passar por besta se ele não fosse.
— Não
suporto fazer milagre — disse ele. — Não sou mágico. E, em vez
de me ajudar, por que é que fica aí falando besteira?
Nessa
hora eu quase ia me aborrecendo, mas uma coisa fez que eu não
mandasse ele para algum lugar, por falar dessa maneira sem educação.
É que, sendo ele Deus, a pessoa tem de respeitar. Minto: três
coisas, duas além dessa. A segunda é que pensei que ele, sendo
carpina por profissão, não estava acostumado a finuras, o carpina
no geral não alimenta muita conversa nem gosta de relambórios. A
terceira coisa é que, justamente por essa profissão e acho que pela
extração dele mesmo, ele era bastante desenvolvidozinho, aliás,
bem dizendo, um pau de homem enormíssimo, e quem era que estava
esquecendo aquela chuva de sopapos e de repente ele me amaldiçoa
feito a figueira e eu saio por aí de perna peca no mínimo, então
vamos tratar ele bem, quem se incomoda com essas bobagens? Indaguei
com grande gentileza como é que eu ia ajudar que ele achasse essa
bendita dessa criatura que ele estava procurando logo na feira de
Maragogipe, no meio dos cajus e das rapaduras, que ele me
desculpasse, mas que pelo menos me dissesse o nome do homem e a
finalidade da procura. Ele me olhou assim na cara, fez até quase que
um sorriso e me explicou que ia contar tudo a mim, porque sentia que
eu era um homem direito, embora mais cachaceiro do que pescador. Em
outro caso, ele podia pedir segredo, mas em meu caso ele sabia que
não adiantava e não queria me obrigar a fazer promessa vã. Que
então, se eu quisesse, que contasse a todo mundo, que ninguém ia
acreditar de qualquer jeito, de forma que tanto faz como tanto fez. E
que escutasse tudo direito e entendesse de uma vez logo tudo, para
ele não ter de repetir e não se aborrecer. Mas Deus, ah, você não
sabe de nada, meu amigo, a situação de Deus não está boa. Você
imagine como já é difícil ser santo, imagine ser Deus. Depois que
eu fiz tudo isto aqui, todo mundo quer que eu resolva os problemas
todos, mas a questão é que eu já ensinei como é que resolve e
quem tem de resolver é vocês, senão, se fosse para eu resolver,
que graça tinha? É homens ou não são? Se fosse para ser anjo, eu
tinha feito todo mundo logo anjo, em vez de procurar tanta chateação
com vocês, que eu entrego tudo de mão beijada e vocês aprontam a
pior melança. Mas, não: fiz homem, fiz mulher, fiz menino,
entreguei o destino: está aqui, vão em frente, tudo com liberdade.
Aí fica formada por vocês mesmos a pior das situações, com todo
mundo passando fome sem necessidade e cada qual mais ordinário do
que o outro, e aí o culpado sou eu? Inclusive, toda hora ainda tenho
de suportar ouvir conselhos: se eu fosse Deus, eu fazia isto, se eu
fosse Deus eu fazia aquilo. Deus não existe porque essa injustiça e
essa outra e eu planejava isso tudo muito melhor e por aí vai.
Agora, você veja que quem fala assim é um pessoal que não acerta
nem a resolver um problema de uma tabela de campeonato, eu sei porque
estou cansado de escutar rezas de futebol, costumo mandar desligar o
canal, só em certos casos não. Todo dia eu digo: chega, não me
meto mais. Mas fico com pena, vou passando a mão pela cabeça, pai é
pai, essas coisas. Agora, milagre só em último caso. Tinha graça
eu sair fazendo milagres, aliás tem muitos que me arrependo por
causa da propaganda besta que fazem, porque senão eu armava logo um
milagre grande e todo mundo virava anjo e ia para o céu, mas eu não
vou dar essa moleza, está todo mundo querendo moleza. A dar essa
moleza, eu vou e descrio logo tudo e pronto e ninguém fica criado,
ninguém tem alma, pensamento nem vontade, fico só eu sozinho por aí
no meio das estrelas me distraindo, aliás tenho sentido muita falta.
É porque eu não posso me aporrinhar assim, tenho que ter paciência.
Senão, disse ele, senão... e fez uma menção que ia dar um murro
com uma mão na palma da outra e eu aqui só torcendo para que ele
não desse, porque, se ele desse, o mínimo que ia suceder era a
refinaria de Mataripe pipocar pelos ares, mas felizmente ele não
deu, graças a Deus. Então, explicou Deus, eu vivo procurando um
santo aqui, um santo ali, parecendo até que sou eu quem estou
precisando de ajuda, mas não sou eu, é vocês, mas tudo bem. Agora,
é preciso que você me entenda: o santo é o que faz alguma coisa
pelos outros, porque somente fazendo pelos outros é que se faz por
si, ao contrário do que se pensa muito por aí. Graças a mim que de
vez em quando aparece um santo, porque senão eu ia pensar que tinha
errado nos cálculos todos. Fazer por si é o seguinte: é não me
envergonhar de ter feito vocês igual a mim, é só o que eu peço, é
pouco, é ou não é? Então quem colabora para arrumar essa situação
eu tenho em grande apreço. Agora, sem milagre. Esse negócio de
milagre é coisa para a providência, é negócio de emergência, uma
correçãozinha que a gente dá. Esse pessoal não entende que, toda
vez que eu faço um milagre, tem de reajustar tudo, é uma
trabalheira que não acaba, a pessoa se afadiga. Buliu aqui, tem de
bulir ali, é um inferno, com perdão da má palavra. O santo anda
dificílimo. Quando eu acho um, boto as mãos para o céu.
Tendo
eu perguntado como é que ele botava as mãos para o céu e tendo ele
respondido que eu não entendia nada de Santíssima Trindade e
calasse minha boca, esclareceu que estava procurando um certo Quinca,
conhecido como Das Mulas, que por ali trabalhava. Mas como esse
Quinca, perguntei, não pode ser o mesmo Quinca! Pois esse Quinca era
chamado Das Mulas justamente por viver entre burros e mulas e
antigamente podendo ter sido um rapaz rico, mas havendo dado tudo aos
outros e passando o tempo causando perturbação, ensinando besteiras
e fazendo questão de dar uma mão a todos que ele dizia que eram
boas pessoas, sendo estas boas pessoas dele todas desqualificadas.
Porém ninguém fazia nada com ele porque o povo gostava muito dele
e, quando ele falava, todo mundo escutava. Além de tudo, gastava
tudo com os outros e vivia dando risadas e tomava poucos banhos e era
um homem desaforado e bebia bastante cana, se bem que só nas horas
que escolhia, nunca em outras. E, para terminar, todo mundo sabia que
ele não acreditava em Deus, inclusive brigava bastante com o padre
Manuel, que é uma pessoa distintíssima e sempre releva.
— Eu
sei — respondeu Deus. — Isto é mais uma dificuldade.
E,
de fato, fomos vendo que a vida de Deus e dos santos é muito
dificultosa desde aí, porque tivemos de catar toda a feira atrás
desse Quinca e sempre onde a gente passava ele já tinha passado. Ele
foi encontrado numa barraca, falando coisas que a mulher de Lóide,
aquela outra santa, fingia que achava besteira, mas estava se
convencendo e então eu vi que aquilo ia acabar dando problema. Olha
aí, mostrei eu, ele ali causando divergência. É isso mesmo, disse
Deus com olhar de grande satisfação, certa feita eu também disse
que tinha vindo separar homem e mulher. Não quero nem saber, me
apresente.
E
então tivemos um belo dia, porque depois da apresentação parece
que Quinca já tinha tomado algumas e fomos comer um sarapatel, tudo
na maior camaradagem, porque estava se vendo que Quinca tinha gostado
de Deus e Deus tinha gostado dele, de maneira que ficaram logo
muitíssimo amigos e foi uma conversa animada que até às vezes eu
ficava meio de fora, eles tinham muita coisa a palestrar. Nisso tome
sarapatel até as três e todo mundo já de barriga altamente
estufada, quando que Quinca me resolve tomar uma saideira com Deus e
essa saideira é nada mais nada menos do que na casa de Adalberta, a
qual tem mulheres putas. Nessa hora, minha obrigação, porque estou
vendo que Deus está muito distraído e possa ser que não esteja
acostumado com essas aguardentes de Santo Amaro que ele tomou mais de
uma vintena, é alertar. Chamei assim Deus para o canto da barraca
enquanto Quinca urinava e disse olhe, você é novo por aqui, pelo
menos só conhecíamos de missa, de maneira que essa Adalberta, não
sei se você sabe, é cafetina, não deve ficar bem, não tenho nada
com isso, mas não custa um amigo avisar. Ora, rapaz, você tem medo
de mulher, disse Deus, que estava mais do que felicíssimo e, se não
fosse Deus, eu até achava que era um pouco do efeito da bebida. Mas,
se é ele que fala assim, não sou eu que fala assado, vá ver que
temos lá alguma rapariga chamada Madalena, resolvi seguir e não
perguntar mais nada.
Pois
tomaram mais e fizeram muito grande sucesso com as mulheres e era uma
risadaria, uma coisa mesmo desproporcionada, havendo mesmo um serviço
de molho pardo depois das seis, que a fome apertou de novo, e
bastantes músicas. Cada refrão que Quinca mandava, cada refrão
Deus repicava, estava uma farra lindíssima, porém sem maldade, e
Deus sabia mais sambas de roda que qualquer pessoa, leu mãos,
recitou, contou passagens, imitou passarinho com perfeição, tirou
versos, ficou logo estimadíssimo. Eu, que estava de reboque bebendo
de graça e já tinha aprendido que era melhor ficar calado, pude ver
com o rabo do olho que ele estava fazendo uns milagres disfarçados,
a mim ele não engana. As mulheres todas parece que melhoraram de
beleza, o ambiente ficou de uma grande leveza, a cerveja parecia que
tinha saído do congelador porém sem empedrar e, certeza eu tenho
mas não posso provar, pelo menos umas duas blenorragias ele deve de
ter curado, só pelo olhar de simpatia que ele dava. E tivemos assim
belas trocas de palavras e já era mais do que onze quando Quinca
convidou Deus para ver as mulas e foram vendo mulas que parecia que
Deus, antes de fazer o mundo, tinha sido tropeiro. E só essa tropica
e essa não tropica, essa empaca e essa não empaca, essa tem a
andadura rija, essa pisa pesado, essa está velha, um congresso de
muleiros, essa é que é a verdade.
É
assim que vemos a injustiça, porque, a estas alturas, eu já estou
sabendo que Deus veio chamar Quinca para santo e que dava um trabalho
mais do que lascado, só o que ele teve de estudar sobre mulas e
decorar de sambas de roda deve ter sido uma esfrega. Mas eu já
estava esperando que, de uma hora para outra, Deus desse o recado
para esse Quinca das Mulas. Como de fato, numa hora que a conversa
parou e Quinca estava só estalando a língua da cachaça e olhando
para o espaço, Deus, como quem não quer nada, puxou a prosa de que
era Deus e tal e coisa.
Ah,
para quê? Para Quinca dizer que não acreditava em Deus. E para
Deus, no começo com muita paciência, dizer que era Deus mesmo e que
provava. Fez uns dois milagres só de efeito, mas Quinca disse que
era truques e que, acima de tudo, o homem era homem e, se precisasse
de milagre, não era homem. Deus, por uma questão de honestidade,
embora o coração pedisse contra nessa hora, concordou. Então ande
logo por cima da água e não me abuse, disse Quinca. E eu só
preocupado com a falta de paciência de Deus, porque, se ele se
aborrecesse, eu queria pelo menos estar em Valença, não aqui nesta
hora. Mas ele só patati-patatá, que porque ser santo era ótimo,
que tinha sacrifícios mas também tinha recompensas, que deixasse
daquela besteira de Deus não existir, só faltou prometer dez por
cento. Mas Quinca negaceava e a coisa foi ficando preta e os dois
foram andando para fora, num particular e, de repente, se
desentenderam. Eu, que fiquei sentado longe, só ouvia os gritos,
meio dispersados pelo vento.
— Você
tem que ser santo, seu desgraçado! — gritava Deus. — Faz-se de
besta! — dizia Quinca.
E
só quebrando portada, pelo barulho, e eu achando que, se Deus não
ganhasse na conversa, pelo menos ganhava na portada, eu já conhecia.
Mas não era coisa fácil. De volta de meia-noite e meia até umas
quatro, só se ouvia aquele cacete: deixe de ser burro, infeliz! cale
essa boca, mentiroso! E por aí ia. Eu só sei que, umas cinco horas
mais ou menos, com Gerdásia do mercado trazendo um mingau do que ela
ia vender na praça e fazendo a caridade de dar um pouco para mim e
para Deus, por sinal que ele toma mingau como se fosse acabar amanhã
e não tivesse mais tempo, os dois resolveram apertar a mão, porém
não resolveram mais nada: nem Deus desistia de chamar Quinca para o
cargo de santo, nem Quinca queria aceitar esse cargo. — Muito bem —
disse Deus, depois de uma porção de vezes que todo mundo dizia que
já ia, mas enganchava num resto de conversa e regressava. — Eu
volto aqui outra vez.
— Voltar,
pode voltar, terá comida e bebida — disse Quinca. — Mas não vai
me convencer!
— Rapaz,
deixe de ser que nem suas mulas!
— Posso
ser mula, mas não tenho cara de jegue!
E
aí mais pau, mas, quando o dia já estava moço, aí por umas seis
ou sete horas da manhã, estamos Deus e eu navegando de volta para
Itaparica, nenhum dos dois falando nada, ele porque fracassou na
missão e eu porque não gosto de ver um amigo derrotado. Mas, na
hora que nós vamos passando pelas encostas do Forte, quase nos
esquecendo da vida pela beleza, ele me olhou com grande simpatia e
disse: fracasso nada, rapaz. Não falei nada, disse eu. Mas sentiu,
disse ele. Se incomode não, disse ele, nem toda pesca rende peixes.
E então ficou azul, esvoaçou, subiu nos ares e desapareceu no céu.
João Ubaldo Ribeiro, in Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século
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