segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

O Lobo do Mar | Capítulo 27

O dia raiou cinza e gélido. O bote pegava uma brisa fresca a favor e a bússola mostrava que seguíamos o curso que nos levaria ao Japão. Mesmo usando luvas grossas, meus dedos estavam gelados e doíam de segurar o remo de governo. O frio cortante me causava pontadas nos pés e eu aguardava ansioso que o sol começasse a brilhar.
Diante de mim, no fundo do bote, estava deitada Maud. Ao menos ela estava aquecida, pois havia cobertores espessos por baixo e por cima dela. Eu havia puxado o cobertor mais de cima para cobrir seu rosto e protegê-lo durante a noite, e agora podia ver somente a forma aproximada de seu corpo e os cabelos castanhos que escapavam para fora das cobertas, cravejados de gotículas de sereno.
Fiquei um longo tempo a contemplá-la, me detendo naquela porção visível como se a considerasse a coisa mais preciosa do mundo. Meu olhar foi tão insistente que, por fim, ela se remexeu sob as cobertas, afastou a ponta de cima com a mão e sorriu para mim com os olhos pesados de sono.
Bom dia, sr. Van Weyden. Já avistou terra firme?
Não — respondi —, mas nos aproximamos dela a uma velocidade de dez quilômetros por hora.
Ela fez um muxoxo de decepção.
Mas isso equivale a duzentos e quarenta quilômetros em vinte e quatro horas — acrescentei para confortá-la.
Seu rosto se iluminou.
E quanto ainda falta?
A Sibéria fica naquela direção — apontei para o oeste. — Mas para o sudoeste, a uns mil quilômetros, fica o Japão. Se o vento continuar assim, chegaremos em cinco dias.
E se vier uma tempestade? O bote aguentará?
Ela tinha um modo de olhar as pessoas exigindo a verdade, e foi assim que me olhou ao fazer a pergunta.
Teria de ser uma tempestade muito forte — contemporizei.
E se vier uma tempestade muito forte?
Meneei a cabeça.
Mas podemos ser recolhidos a qualquer momento por uma escuna de caça à foca. Há uma boa porção delas distribuída nessa região do oceano.
Ora, mas você está todo gelado! — ela exclamou. — Veja! Está tremendo. Não negue, está sim. E eu aqui deitada, quente como um pãozinho saído do forno.
Acho que não ajudará em nada se você também ficar aqui sentada passando frio — falei entre risos.
Ajudará quando eu aprender a pilotar, e estou certa de que aprenderei.
Ela sentou e começou a fazer sua toalete simplificada. Soltou e balançou os cabelos, fazendo com que caíssem à sua volta como uma nuvem castanha, ocultando o rosto e os ombros. Aqueles lindos cabelos castanhos e úmidos! Eu queria beijá-los, fazê-los correr entre os dedos, afundar neles o meu rosto. Fiquei olhando para eles, extasiado, até que o bote pegou um vento contrário e a vela sacudiu, me avisando que eu desviava a atenção de minhas obrigações. Idealista e romântico que era, apesar de minha natureza analítica, eu nunca havia captado muito bem as características físicas do amor. Sempre tinha visto o amor entre homem e mulher como algo relacionado ao espírito, um laço espiritual que conectava e atraía as almas para perto uma da outra. Os laços carnais tinham papel pequeno na minha cosmologia do amor. Agora, porém, eu estava aprendendo sozinho a doce lição de que a alma se transmuta e se expressa através da carne, que a visão, a sensação e o toque dos cabelos da pessoa amada eram sopro, voz e essência de seu espírito na mesma medida que o brilho de seu olhar e os pensamentos entoados por seus lábios. O espírito puro, afinal, era incognoscível, podia ser apenas sentido e adivinhado, e era incapaz de se expressar em seus próprios termos. Jeová era antropomórfico pois só podia se dirigir aos judeus nos termos de sua compreensão. Por isso, foi concebido à imagem deles, como nuvem, pilar de fogo, algo físico e tangível que a mente dos israelitas pudesse alcançar.
Assim, admirei os cabelos castanhos de Maud e os amei, aprendendo mais sobre o amor do que já me haviam ensinado todos os poetas e cantores com suas canções e sonetos. Ela os atirou para trás com um movimento rápido e habilidoso, fazendo emergir seu rosto sorridente.
Por que as mulheres não deixam os cabelos sempre soltos? — perguntei. — É muito mais bonito.
Se eles não ficassem tão embolados — ela riu. — Pronto! Perdi um de meus preciosos grampos de cabelo!
Não dei a devida atenção ao bote e deixei que as velas perdessem vento várias vezes, tamanho era o prazer com que acompanhava cada um de seus movimentos enquanto ela procurava o grampo entre os cobertores. Fiquei surpreso e alegre ao vê-la tão feminina, e a cada traço ou gesto típico de mulher eu ficava ainda mais contente. Percebi que estivera lhe atribuindo conceitos muito elevados, mantendo-a longe demais do plano humano, longe demais de mim. Eu a via como uma criatura divina e inatingível. Por isso, agora acolhia com prazer os pequenos gestos que mostravam que ela era apenas uma mulher no fim das contas, tais como o movimento de jogar a nuvem de cabelos para trás e a procura pelo grampo. Ela era uma mulher, pertencia à mesma espécie, estava no mesmo plano que eu, e a deliciosa intimidade da espécie, entre homem e mulher, era tão possível quanto a reverência e a adoração que eu sabia que jamais deixaria de ter por ela.
Ela encontrou o grampo e deu um gritinho adorável, e voltei a prestar mais atenção no manejo do bote. Fiz alguns experimentos, virando e calçando o remo de governo, até que o bote se manteve bem firme na linha do vento sem a minha interferência. Às vezes desviava um pouco para dentro ou para fora, mas sempre acabava se recuperando e durante a maior parte do tempo ia se comportando de modo satisfatório.
E agora vamos tomar o café da manhã — falei. — Mas primeiro você precisa vestir roupas mais quentes.
Peguei uma camisa grossa retirada do bazar, nova, feita do mesmo material com que faziam os cobertores. Eu conhecia aquele tipo de camisa, feita de um tecido denso e consistente que era capaz de resistir à chuva e não ficar encharcado mesmo após horas de exposição à água. Depois que ela vestiu a camisa por cima da cabeça, troquei seu gorro de menino por um gorro de marinheiro que era grande o bastante para cobrir seus cabelos e, com as abas abaixadas, proteger seu pescoço e suas orelhas. O efeito era charmoso. Ela tinha um desses rostos que só podem parecer bonitos, não importando as circunstâncias. Nada poderia destruir aquele oval magnífico, aquelas linhas quase clássicas, aquelas sobrancelhas bem-delineadas, aqueles grandes olhos castanhos, penetrantes e calmos, gloriosamente calmos.
Uma brisa um pouquinho mais forte nos atingiu naquele instante, pegando o bote bem no momento em que ele atravessava obliquamente a crista de uma onda. A água subiu de repente, alcançando o nível da amurada e invadindo o bote em quantidade suficiente para encher um balde. Eu estava abrindo uma lata de língua cozida, mas saltei em direção à vela e a desamarrei no momento exato. A vela esvaziou e tremulou, e o bote caiu para sotavento. Bastaram alguns minutos de regulagens para fazê-lo voltar ao curso original, e então continuei preparando o café da manhã.
Funciona bem, aparentemente, embora eu não seja muito versada em assuntos náuticos — ela disse, aprovando meu artifício de pilotagem com um aceno de cabeça circunspecto.
Mas só vai servir enquanto navegarmos a barlavento — expliquei. — Navegando mais livre, com o vento de través ou pela alheta, serei obrigado a governar com o remo.
Devo dizer que não compreendo suas tecnicalidades — ela disse —, mas compreendo a conclusão, e ela não me agrada nem um pouco. Você não tem condições de pilotar dia e noite, para sempre. Portanto, espero receber minha primeira lição após o café da manhã. E então você se deitará e dormirá um pouco. Vamos alternar vigias, como fazem nos navios.
Não vejo como poderia ensiná-la — protestei. — Eu próprio estou apenas aprendendo. Nem deve ter passado pela sua cabeça, quando confiou seu destino a mim, que eu não tinha nenhuma experiência com botes pequenos. É a primeira vez que piso em um.
Então aprenderemos juntos, senhor. E, como você está adiantado uma noite, deverá me ensinar o que já aprendeu. E agora, ao café da manhã. Céus. Essa brisa abre o apetite.
Não temos café — lamentei, passando a ela os biscoitos de marinheiro87 com manteiga e uma fatia de língua enlatada. — E não teremos chá, sopa nem nada aquecido até que possamos desembarcar em terra firme, seja onde e como for.
Depois do café da manhã simples, coroado com um copo de água gelada, Maud recebeu sua lição de pilotagem. Também aprendi muito ao ensiná-la, embora estivesse aplicando um conhecimento já adquirido na operação do Ghost e na observação dos pilotos controlando os botes. Ela era uma aluna competente e não demorou a aprender a manter o curso, ir à bolina e soltar as velas em caso de emergência.
Quando pareceu se cansar da tarefa, me entregou de volta o remo de governo. Eu havia dobrado os cobertores, mas ela começou a estendê-los no fundo do bote. Quando estava tudo bem arrumado, disse:
E agora, senhor, vá para a cama. Quero vê-lo dormir até a hora do almoço. Até a hora do jantar — corrigiu, recordando o funcionamento do Ghost.
O que eu podia fazer? Ela insistiu, dizendo “Por favor, por favor”, até que lhe entreguei o remo e obedeci. Senti um prazer sensual inquestionável ao me aninhar na cama que ela havia preparado com as próprias mãos. Sua calma e controle característicos pareciam ter se transferido para os cobertores, pois fui tomado por uma sensação onírica e agradável, vi um rosto oval de olhos castanhos, emoldurado por um gorro de marinheiro, subindo e descendo contra um fundo em que se alternavam as nuvens cinzentas e o mar cinzento, e então me dei conta de que havia dormido.
Consultei meu relógio. Era uma da tarde. Eu tinha dormido sete horas! Ela estava pilotando havia sete horas! Antes de pegar o remo de governo, precisei desdobrar à força seus dedos enrijecidos. Sua força física irrisória tinha se esgotado e ela não conseguia nem sair da posição em que estava. Fui forçado a soltar a escota enquanto a auxiliava, acomodando-a no ninho de cobertores e esfregando suas mãos e braços.
Estou tão cansada — ela disse com uma rápida inspiração e um suspiro, deixando a cabeça cair com um ar de esgotamento. No instante seguinte, porém, se endireitou. — Mas não me censure, não ouse me censurar! — desafiou em tom de brincadeira.
Espero que meu rosto não pareça irritado — respondi a sério —, pois lhe garanto que não estou nem um pouco irritado.
N-não — ela ponderou. — Parece apenas repreensivo.
Então é um rosto honesto, pois expressa o que sinto. A senhorita não foi justa consigo mesma e comigo. Como poderei voltar a confiar em você?
Ela assumiu um ar penitente.
Serei boazinha — disse como uma criança malvada. — Prometo…
Obedecer como o marinheiro obedece ao capitão?
Sim — ela respondeu. — Foi tolice de minha parte, eu sei.
Então precisa prometer outra coisa — arrisquei.
Às ordens.
Que não ficará dizendo “Por favor, por favor” o tempo todo, pois assim desmontará toda vez a minha autoridade.
Ela entendeu o pedido e riu, achando graça. Também já havia percebido o poder do recurso.
São boas palavras… — comecei a dizer.
Mas não devo abusar — Maud interrompeu.
Ela riu sem força e sua cabeça caiu novamente. Abandonei o remo de governo somente pelo tempo necessário para prender os cobertores em volta de seus pés e puxar a ponta de um deles por cima de sua cabeça. Ela era frágil. Olhei com receio para o sudoeste e pensei nos mil quilômetros de provações que nos aguardavam, torcendo para que nosso destino se limitasse às provações. Naquele ponto do mar, uma tempestade podia aparecer e nos destruir a qualquer momento. Mesmo assim, eu não tinha medo. Me faltava confiança no futuro, estava cheio de dúvidas, mas apesar disso não havia medo por trás de tudo. Precisa dar certo, precisa dar certo, eu repetia comigo mesmo o tempo todo.
O vento se intensificou à tarde, despertando um mar mais agitado e exigindo de mim e do bote esforços severos. Todavia, o estoque de comida e os nove barris d’água permitiam que a embarcação enfrentasse os ventos e o oceano, e continuei avançando até onde minha ousadia permitiu. Depois removi a espicha da vela e recolhi a ponta superior, formando a vela triangular que os marinheiros chamam de paleta de cordeiro, e assim fomos sendo levados.
Mais para o fim da tarde, avistei a fumaça de um vapor no horizonte, a sotavento, e deduzi que era um cruzador russo ou, mais provavelmente, o Macedonia, ainda à procura do Ghost. O sol não aparecera o dia todo e o frio estava cortante. Quando a noite começou a cair, as nuvens escureceram e o vento esfriou tanto que precisamos comer o jantar de luvas enquanto eu seguia pilotando o bote e engolia alguns bocados entre cada lufada.
Depois de escurecer, o vento e o mar ficaram violentos demais para o bote e, após alguma relutância, recolhi toda a vela e tentei improvisar uma âncora. Eu havia aprendido algo sobre esse instrumento ouvindo a conversa dos caçadores, e não era nada muito difícil de fabricar. Enrolei a vela e a prendi com firmeza em torno do mastro, do botaló, da espicha e de dois pares de remos sobressalentes, e joguei tudo dentro d’água. Amarrada à proa por uma corda, ela flutuou um pouco abaixo da superfície, sem ficar exposta ao vento, e dessa forma não era arrastada tão facilmente quanto o bote. Como consequência, o barco mantinha posição fixa com a proa de frente para o vento e para a ondulação, a melhor posição para evitar inundações quando as ondas estão quebrando com espuma.
E agora? — Maud perguntou, animada, quando concluí a tarefa e vesti novamente as luvas.
Agora não estamos mais viajando rumo ao Japão — respondi. — Nosso desvio é para o sudeste, ou su-sudeste, a uma velocidade de pelo menos três quilômetros por hora.
Serão apenas trinta e seis quilômetros — ela frisou — se o vento continuar forte a noite toda.
Sim, e apenas duzentos e dezesseis quilômetros se ele durar três dias e três noites.
Mas não vai durar tanto — ela disse com uma cômoda confiança. — Vai virar e soprar na medida certa.
Nada é mais imune à fé que o oceano.
Mas o vento! — ela retrucou. — Você falou tanto dos valorosos ventos alísios.
Eu devia ter lembrado de trazer o cronômetro e o sextante de Wolf Larsen — falei ainda em tom desconsolado. — Navegar numa direção enquanto se é desviado para outra, para não falar da corrente agindo em uma terceira direção, torna complicado demais estimar a posição somente com a bússola. Daqui a pouco tempo, não poderemos calcular nosso ponto estimado sem uma margem de erro de oitocentos quilômetros.
Logo em seguida, pedi desculpas e prometi que dali em diante não me deixaria abater. Atendendo a seu pedido, permiti que ela assumisse a vigia até a meia-noite (naquele momento eram nove horas), mas antes de deitar enrolei-a em cobertores e coloquei uma capa impermeável por cima. Só consegui dar alguns cochilos. O bote saltava e batia na superfície ao transpor cada crista, as ondas que passavam faziam barulho e a água espirrava o tempo todo para dentro. Mesmo assim, pensei comigo que não era uma noite ruim, nada que se pudesse comparar às noites que passei no Ghost ou, quem sabe, às noites que ainda passaríamos naquela conchinha de marisco. Suas tábuas tinham dois centímetros de espessura. Estávamos separados do fundo do mar por dois centímetros de madeira.
E ainda assim, assevero quantas vezes for preciso, eu não estava com medo. Já não temia aquela morte que Wolf Larsen e mesmo Thomas Mugridge tinham me feito temer. A entrada de Maud Brewster em minha vida parecia haver me transformado. Afinal de contas, pensei, amar é melhor e mais belo que ser amado, pois faz uma parte da vida valer tanto a pena que não nos opomos a morrer por ela. Esqueço de minha própria vida no amor por uma outra vida. Apesar disso, e aí está o paradoxo, nunca quis viver tanto quanto agora, quando dou um valor menor à minha própria vida. Nunca tive tanta razão para estar vivo, foi meu pensamento conclusivo. Depois disso, até adormecer, bastou-se tentar devassar a escuridão até o lugar na popa em que eu sabia que Maud Brewster estava encolhida, prestando atenção no mar espumante, pronta para me chamar a qualquer momento.

Jack London, in O Lobo do Mar

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