sexta-feira, 6 de janeiro de 2023

Eu não casei com você

Lembro bem. A primeira vez que isso aconteceu comigo foi na nave da Notre-Dame, chegando perto da rosácea. O japonês me confundiu com a mulher dele. Também, pudera, a esposa nipônica era parecidíssima comigo: eu sou loira, ela era morena, eu tenho 1,71m, ela deveria ter 1,55m, eu peso 60kg e ela algo em torno de 44kg, eu estava de branco e ela de verde-musgo, e ela esbanjava aquela malemolência brasileira para caminhar, assim como eu.
Eu estava lá admirando a arquitetura gótica quando o homem pequenino colocou a mão no meu ombro e continuou olhando para cima, deslumbrado com a imponência da igreja. Fiquei um pouco desconcertada. Achei melhor avisar. Planejava um “Sorry but I think that...” quando cutuquei levemente a mão do homenzinho. Ainda bem que arrependimento não mata. O pobre do asiático quase enfartou: virou a cabeça na minha direção e olhou para mim com um pavor que fez com que eu me sentisse mais assustadora do que o Zé do Caixão e o Pedro de Lara juntos. O pânico tomou conta do seu rosto, os olhos pequeninos arregalaram-se, a boca ficou torta e ele saiu numa disparada que deve ter terminado no altar da Capela Sistina.
Pois bem. Dez anos depois, a cena se repete. Estava caminhando pelo centro comercial Colombo, em Lisboa, quando um daqueles homens alaranjados com 2m de altura – que podem ser noruegueses, suecos ou finlandeses – aproximou-se pelas minhas costas. Aquele homem também decidiu que eu era sua esposa naquela tarde. Sejamos justos, dessa vez com um pouco mais de razão, em virtude da altura e da cor do cabelo.
Ocorre que seu porte físico não lembrava nem de longe aquela coisinha delicada que era o japonês da Notre-Dame. Despencou, então, em cima do meu ombro, uma mão de 30cm de diâmetro e cerca de 7,5kg ao mesmo tempo em que o homem berrou QUÃÃÃRTIGÃRIGÃRIGÃRI na minha orelha esquerda. O meu susto foi tão grande que dei um tapão na mão do indivíduo, enquanto gritava SAAAAAAAI e acelerava passos para a frente.
Não sei se eu me assustei mais com ele ou ele comigo. O coitado do boneco de Olinda viking ainda tentou balbuciar um pedido de desculpas em norueguês/sueco/finlandês. Eu não quis nem saber e segui correndo. Depois de abrir uma distância de segurança, respirei aliviada e tentei reconhecer aquele lugar onde eu fui parar. Era a Capela Sistina. No segundo banco à esquerda estava o japonês, já quase recuperado do incidente de maio de 2006.

Ruth Manus, in Um dia ainda vamos rir de tudo isso

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