sábado, 7 de janeiro de 2023

Cartas para minha avó

Cuidar do meu pai no hospital foi muito difícil e solitário, vó. Não falo muito sobre isso, mas penso que dividir com você será libertador. Ver uma pessoa cheia de vitalidade definhar foi um processo muito duro. Eu não estava trabalhando, cuidava dele doze horas por dia, das 7h às 19h, até ser rendida pelo meu irmão mais velho, Denis, que passava a noite ao lado dele. Meu pai teve um tipo raro de câncer na medula e seus ossos foram sendo esfacelados aos poucos. No primeiro mês de internação, eu precisava colocá-lo com muito cuidado na cadeira de rodas para levá-lo ao banheiro, algo que poderia demorar quase uma hora, tamanha a dor que ele sentia. Ele fazia suas necessidades, e depois eu dava banho nele. As primeiras vezes foram especialmente duras, ele se sentia envergonhado, chegou a verbalizar o quanto se sentia desconfortável. “Pai, deixa de graça, o senhor já me deu muitos banhos nessa vida”, respondi para quebrar o clima.
Com o tempo, ele foi ficando mais confortável e até agradecia por ser eu, uma filha, e não uma pessoa estranha. Porém, com o avanço da doença, não conseguia mais ficar sentado. Usar fraldas foi outro soco em sua humanidade. Mas ele não perdeu a vaidade, todas as sextas-feiras fazia a barba e raspava o pouco cabelo com o barbeiro do hospital. Eu não podia dizer o nome da doença para qualquer pessoa. “Se perguntarem o que eu tenho, diga que é anemia profunda e não aquela doença lá.” Ele não conseguia nem dizer a si mesmo.
Meu pai ficou muitos meses internado em um quarto duplo, que nesse período ele dividiu com pacientes que chegavam e partiam. Ele recebia algumas visitas, mas era um lugar muito solitário. Ter outro ocupante no quarto era uma forma de companhia também. Dois em especial me marcaram. O primeiro, um policial militar, tinha sido meu colega de escola, daqueles que me xingavam e perseguiam. Havia passado mal durante o trabalho e fora levado às pressas para o hospital.
Assim que começaram a arrumar a cama ao lado do meu pai, eu precisei sair do quarto, para preservar a privacidade do paciente que estava chegando. Passado um tempo, fui autorizada a voltar e logo de primeira o reconheci. Como havia sido uma internação repentina, ele ainda estava sem acompanhante. Em dado momento, ele tocou a campainha para chamar os auxiliares de enfermagem, pois precisava urinar. Ele estava com muita dor, não conseguia se levantar e precisava do “compadre”. Ninguém apareceu. Sussurrei no ouvido do meu pai que eu até poderia ajudá-lo se ele não tivesse sido um dos meus terrores na escola. Ele sentiu pena do rapaz e me pediu para dar um desconto. Eu me aproximei e perguntei:
Você precisa de ajuda?”
Desculpe te incomodar com isso, mas preciso urinar.”
Eu busquei o recipiente, dei a ele e virei de costas. Assim que ele terminou, ele me chamou. Quando me reaproximei, continuei:
Você lembra de mim?”
Não, acho que não…”
Djamila, 5o A, Colégio Moderno. Lembrou?”
O rosto do rapaz empalideceu e ele só conseguiu responder um “sim” tímido. Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, ouvi do meu pai um “Djamila, tenha misericórdia”. Não disse mais nada, ajudei o rapaz até um familiar chegar e até o último dia da sua internação, ele tentou ser o mais agradável possível com um seu Joaquim atento a todos os meus passos.
O segundo rapaz ficou por volta de dois meses internado. Ele havia tomado um tiro da polícia, de uma arma de grosso calibre, em sua perna esquerda. Denis me contou que, como o homem era dependente químico, ele passava noites seguidas tendo crises de abstinência, gritando por horas e tentando arrancar as agulhas das veias para interromper a medicação. Todos os pacientes do corredor passaram a fazer reclamações, menos o senhor com quem ele dividia o quarto.
No começo, eu fiquei um pouco assustada, mas com o tempo fui me acostumando e entendendo. Meu pai adquiriu um senso de proteção com o rapaz. Quando ele estava melhor, seu Joaquim passou a puxar conversa. Durante as crises, meu pai tentava acalmá-lo. Um dia o rapaz pediu um refrigerante e meu pai me disse para buscar um na lanchonete do hospital. Outro dia ele quis um lanche, e lá fui eu comprar. E assim eles foram se aproximando, contando sobre a vida. Eu também o auxiliava quando necessário, sob os olhares de reprovação dos acompanhantes dos outros quartos. Uma senhora me questionou se eu não achava errado ajudar bandido, que fora dali ele não hesitaria em me fazer mal. Não respondi, só desconversei.
No dia que o rapaz teve alta, meu pai sentiu um misto de alegria e tristeza, foi perceptível. O jovem chorou emocionado e nos apresentou aos familiares que haviam ido buscá-lo. Naquela noite, meu pai ficou em silêncio absoluto. Anos mais tarde, encontrei esse mesmo rapaz no centro de Santos. Ele usava muletas — por conta das sequelas causadas pelo tiro — e estava acompanhado de uma mulher. Quando me viu, logo perguntou do meu pai. Eu confirmei que ele havia falecido, e ele se emocionou, dizendo à companheira: “O pai dela foi um anjo na minha vida, ela também. Eles cuidaram de mim no hospital”. Entre uma lágrima e outra, me contou que havia casado, “tomado jeito” na vida, que seria pai. “Não mexo mais com essas coisas, mas se alguém mexer contigo por aqui, pode dizer que me conhece.” Nós nos despedimos e eu nunca mais o vi.
Meu pai acarinhou aquele rapaz ao não julgá-lo, ao dizer que os gritos dele não incomodavam, ao se doar a ele. Foram raras as vezes em que presenciei dois homens demostrarem carinho e ternura um pelo outro. O comum é ver agressividade ou solidariedade de gênero, um homem apoiando o outro em detrimento de uma mulher. O rapaz tinha idade pra ser meu irmão mais velho e de alguma maneira tocou o coração de meu pai, que, àquela altura, sentia dores lancinantes. Mesmo em um momento de profunda dor, meu pai conseguiu olhar para a dor do outro. Que retribuiu afirmando que, se dependesse dele, ninguém jamais me faria mal. Meses antes de partir, seu Joaquim viu na ternura uma forma de ser eterno.

Djamila Ribeiro, in Cartas para minha avó

Nenhum comentário:

Postar um comentário