Cuidar
do meu pai no hospital foi muito difícil e solitário, vó. Não
falo muito sobre isso, mas penso que dividir com você será
libertador. Ver uma pessoa cheia de vitalidade definhar foi um
processo muito duro. Eu não estava trabalhando, cuidava dele doze
horas por dia, das 7h às 19h, até ser rendida pelo meu irmão mais
velho, Denis, que passava a noite ao lado dele. Meu pai teve um tipo
raro de câncer na medula e seus ossos foram sendo esfacelados aos
poucos. No primeiro mês de internação, eu precisava colocá-lo com
muito cuidado na cadeira de rodas para levá-lo ao banheiro, algo que
poderia demorar quase uma hora, tamanha a dor que ele sentia. Ele
fazia suas necessidades, e depois eu dava banho nele. As primeiras
vezes foram especialmente duras, ele se sentia envergonhado, chegou a
verbalizar o quanto se sentia desconfortável. “Pai, deixa de
graça, o senhor já me deu muitos banhos nessa vida”, respondi
para quebrar o clima.
Com
o tempo, ele foi ficando mais confortável e até agradecia por ser
eu, uma filha, e não uma pessoa estranha. Porém, com o avanço da
doença, não conseguia mais ficar sentado. Usar fraldas foi outro
soco em sua humanidade. Mas ele não perdeu a vaidade, todas as
sextas-feiras fazia a barba e raspava o pouco cabelo com o barbeiro
do hospital. Eu não podia dizer o nome da doença para qualquer
pessoa. “Se perguntarem o que eu tenho, diga que é anemia profunda
e não aquela doença lá.” Ele não conseguia nem dizer a si
mesmo.
Meu
pai ficou muitos meses internado em um quarto duplo, que nesse
período ele dividiu com pacientes que chegavam e partiam. Ele
recebia algumas visitas, mas era um lugar muito solitário. Ter outro
ocupante no quarto era uma forma de companhia também. Dois em
especial me marcaram. O primeiro, um policial militar, tinha sido meu
colega de escola, daqueles que me xingavam e perseguiam. Havia
passado mal durante o trabalho e fora levado às pressas para o
hospital.
Assim
que começaram a arrumar a cama ao lado do meu pai, eu precisei sair
do quarto, para preservar a privacidade do paciente que estava
chegando. Passado um tempo, fui autorizada a voltar e logo de
primeira o reconheci. Como havia sido uma internação repentina, ele
ainda estava sem acompanhante. Em dado momento, ele tocou a campainha
para chamar os auxiliares de enfermagem, pois precisava urinar. Ele
estava com muita dor, não conseguia se levantar e precisava do
“compadre”. Ninguém apareceu. Sussurrei no ouvido do meu pai que
eu até poderia ajudá-lo se ele não tivesse sido um dos meus
terrores na escola. Ele sentiu pena do rapaz e me pediu para dar um
desconto. Eu me aproximei e perguntei:
“Você
precisa de ajuda?”
“Desculpe
te incomodar com isso, mas preciso urinar.”
Eu
busquei o recipiente, dei a ele e virei de costas. Assim que ele
terminou, ele me chamou. Quando me reaproximei, continuei:
“Você
lembra de mim?”
“Não,
acho que não…”
“Djamila,
5o A, Colégio Moderno. Lembrou?”
O
rosto do rapaz empalideceu e ele só conseguiu responder um “sim”
tímido. Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, ouvi do meu pai
um “Djamila, tenha misericórdia”. Não disse mais nada, ajudei o
rapaz até um familiar chegar e até o último dia da sua internação,
ele tentou ser o mais agradável possível com um seu Joaquim atento
a todos os meus passos.
O
segundo rapaz ficou por volta de dois meses internado. Ele havia
tomado um tiro da polícia, de uma arma de grosso calibre, em sua
perna esquerda. Denis me contou que, como o homem era dependente
químico, ele passava noites seguidas tendo crises de abstinência,
gritando por horas e tentando arrancar as agulhas das veias para
interromper a medicação. Todos os pacientes do corredor passaram a
fazer reclamações, menos o senhor com quem ele dividia o quarto.
No
começo, eu fiquei um pouco assustada, mas com o tempo fui me
acostumando e entendendo. Meu pai adquiriu um senso de proteção com
o rapaz. Quando ele estava melhor, seu Joaquim passou a puxar
conversa. Durante as crises, meu pai tentava acalmá-lo. Um dia o
rapaz pediu um refrigerante e meu pai me disse para buscar um na
lanchonete do hospital. Outro dia ele quis um lanche, e lá fui eu
comprar. E assim eles foram se aproximando, contando sobre a vida. Eu
também o auxiliava quando necessário, sob os olhares de reprovação
dos acompanhantes dos outros quartos. Uma senhora me questionou se eu
não achava errado ajudar bandido, que fora dali ele não hesitaria
em me fazer mal. Não respondi, só desconversei.
No
dia que o rapaz teve alta, meu pai sentiu um misto de alegria e
tristeza, foi perceptível. O jovem chorou emocionado e nos
apresentou aos familiares que haviam ido buscá-lo. Naquela noite,
meu pai ficou em silêncio absoluto. Anos mais tarde, encontrei esse
mesmo rapaz no centro de Santos. Ele usava muletas — por conta das
sequelas causadas pelo tiro — e estava acompanhado de uma mulher.
Quando me viu, logo perguntou do meu pai. Eu confirmei que ele havia
falecido, e ele se emocionou, dizendo à companheira: “O pai dela
foi um anjo na minha vida, ela também. Eles cuidaram de mim no
hospital”. Entre uma lágrima e outra, me contou que havia casado,
“tomado jeito” na vida, que seria pai. “Não mexo mais com
essas coisas, mas se alguém mexer contigo por aqui, pode dizer que
me conhece.” Nós nos despedimos e eu nunca mais o vi.
Meu
pai acarinhou aquele rapaz ao não julgá-lo, ao dizer que os gritos
dele não incomodavam, ao se doar a ele. Foram raras as vezes em que
presenciei dois homens demostrarem carinho e ternura um pelo outro. O
comum é ver agressividade ou solidariedade de gênero, um homem
apoiando o outro em detrimento de uma mulher. O rapaz tinha idade pra
ser meu irmão mais velho e de alguma maneira tocou o coração de
meu pai, que, àquela altura, sentia dores lancinantes. Mesmo em um
momento de profunda dor, meu pai conseguiu olhar para a dor do outro.
Que retribuiu afirmando que, se dependesse dele, ninguém jamais me
faria mal. Meses antes de partir, seu Joaquim viu na ternura uma
forma de ser eterno.
Djamila Ribeiro, in Cartas para minha avó
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