Eu
realmente não estava sabendo lidar com tanta dor. Se não fosse
pelos meus amigos, teria sucumbido. Sobretudo o Hamilton, um amigo da
adolescência que cedeu a casa durante boa parte do tempo em que
cuidei do meu pai no hospital. Não fossem as jantas gostosas que a
mãe dele fazia, aquele feijão que lembrava o seu, tudo teria sido
mais difícil. A cama que ele preparava pra eu descansar, as centenas
de vezes em que assistimos Moulin Rouge e brigávamos porque ele
cometia o pecado de dizer que Céline Dion era melhor do que Whitney
Houston. Fui abraçada por aquela família como você me abraçava.
Não fosse pelas noites naquela casa, na altura do centésimo degrau
da escadaria do Monte Serrat, a vida teria sido mais amarga.
Assim
que me acalmei, saí da sala e fui para o quarto onde meu pai estava.
Abri o Evangelho Segundo o Espiritismo e fiz a oração para a pessoa
que está partindo. Sabia que ele se arrependia de muita coisa,
escolhas erradas, traições e abandonos. Sabia que ele ficava triste
por, nos últimos anos, ter se afastado da família. Mas sabia também
que, naquele momento, tudo estava resolvido.
Conversei
com ele, falei o quanto o amava e o quanto era grata por ter tido ele
como pai. Dei um beijo em sua testa e decidi ir embora. Eu sabia que
ele partiria naquele dia e eu não queria estar lá. Na verdade, ele
já estava mais inconsciente do que consciente, mas eu não queria
ver. Um ano antes eu havia acompanhado o corpo da minha mãe e eu não
tinha estrutura para viver a mesma coisa com meu pai.
Ele
ficou com a namorada e alguns amigos no quarto. Cantei uma música do
Milton Nascimento bem baixinho, o artista que ele me ensinou a amar,
e saí do quarto.
Meu
pai ficaria atônito se soubesse que me tornei amiga do Milton, vó,
certeza de que ele se gabaria para todas as visitas. Sim, eu me
tornei amiga dele e sinto que conhecer o artista que cresci ouvindo
com meu pai é um modo de sempre mantê-lo vivo.
Naquela
noite, quando o telefone tocou em casa, eu já sabia. Fui inundada
por uma sensação de paz por saber que o sofrimento dele havia
acabado. “Para quem quer se soltar, invento um cais, invento mais
do que a solidão me dá. Invento o amor e sei a dor de me lançar.”
Djamila Ribeiro, in Cartas para minha avó
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