Na
última internação de minha mãe, Dara, eu e minha prima Cecília
nos revezávamos para cuidar dela. Fico feliz em dizer que ela não
esteve só, mas veja como nós mulheres que sempre cuidamos umas das
outras, vó.
Havia
alguma conexão muito forte entre minha mãe e eu. Mesmo conseguindo
visitá-la apenas aos finais de semana por conta do trabalho e do
estudo, foi pra mim que o médico disse que lhe restavam somente mais
alguns meses de vida. Saí da sala dele chorando e abatida. Precisei
me recompor antes de voltar ao quarto e fingir que estava tudo bem —
tomei a decisão de não contar a ela e tornar seus últimos dias os
melhores possíveis. “Eu vou morrer, né?”, ela me perguntou
assim que me viu. “Para de bobeira, mãe!”, consegui responder.
Quando ela adormeceu, chorei em silêncio.
Voltei
para casa, contei aos meus irmãos e liguei para o meu pai, que ficou
sem reação. Toda vez que eu ia render Dara ou minha prima, minha
mãe falava do meu pai pra mim, dizia que ele ainda não havia ido
visitá-la, mas que tudo bem, ela não se importava. Claro que se
importava. Os dias passavam, as semanas, e nem sinal dele. Um dia,
após uma reclamação disfarçada dela, liguei pra ele. Estava na
hora de assumir suas responsabilidades.
À
época, ele ainda morava sozinho em um pequeno apartamento em frente
à praia — tempos depois foi morar com a mulher loira. Assim que
atendeu, gritei: “O senhor não tem vergonha na cara? Minha mãe
foi sua esposa por mais de vinte anos, vocês tiveram quatro filhos
juntos, construíram uma vida! É um verdadeiro absurdo que, em nome
de tudo isso e do que o senhor fez ela passar, ainda não a tenha
visitado. Ela vai morrer, sabia? E vai morrer carregando todo esse
peso, toda essa mágoa, porque o senhor é covarde a ponto de não
encarar as merdas que fez e faz! Amanhã é segunda-feira e o senhor
vai lá visitá-la, está escutando? Se ela morrer antes de o senhor
ir lá, nunca mais fale comigo!”. E bati o telefone na cara dele.
Vó, era tanta raiva na minha voz que meu pai não conseguiu falar
nada, nem sequer balbuciou, só escutou. Soube que Denis também teve
uma conversa parecida com ele.
A
semana passou, eu trabalhava o dia todo e estudava à noite. Um dia,
assim que cheguei em casa, meu pai me ligou para dizer que havia
visitado minha mãe e perguntou quando podíamos nos encontrar. Senti
um misto de alívio e alegria. No sábado, assim que eu cheguei ao
hospital para ficar com a minha mãe, notei que ela me aguardava com
certa ansiedade. Quando sentei ao seu lado, ela prontamente disse com
uma voz que mostrava contentamento:
“Sabe
quem veio me visitar durante a semana?”
“Não”,
menti, “quem?”
“Seu
pai, acredita?”
“Que
bom, mãe, como foi?”
“Ele
chegou um pouco tímido, começamos falando banalidades. Conversa
vai, conversa vem, deu a hora de ele ir. Peguei, então, a mão dele,
coloquei no meu coração e disse em pensamento: ‘Joaquim, eu te
perdoo por tudo que me fizeste, assim como eu também te peço perdão
por tudo que lhe fiz’. Sabe, filha, seu pai errou muito comigo, mas
a gente também erra.”
No
dia seguinte, ela morreu. E por mais que estivesse sendo duro lidar
com a morte — vi o corpo da minha mãe embalado para seguir para o
necrotério, precisei lidar com toda a burocracia ao mesmo tempo em
que lidava com o luto —, foi libertador saber que ela não carregou
pesos de uma vida toda. Foi libertador ter incluído meu pai na
conversa, rompendo esse ciclo de somente nós termos que perdoar a
nós mesmas.
Não
chegou a passar um ano e meu pai caiu doente. Eu estava sem falar com
ele porque meus irmãos e eu queríamos que ele voltasse a morar lá
em casa, ou ao menos passasse um tempo com a gente durante o luto,
mas ele não quis, foi viver com a namorada. Ele estava disposto a
seguir com a vida dele. Um dia o telefone tocou: era a namorada
avisando que meu pai tinha sido internado. Ela estava apavorada,
dizendo que não conseguia cuidar dele sozinha e que precisava de
ajuda. Ouvi tudo com impaciência, pensando que minha mãe nunca
sairia do lado dele.
“Ele
é meu pai, não precisa insistir. Jamais o deixaria sozinho em um
momento como esse.”
Vó,
a partir daquela ligação fiquei com ele até o último dia. Se
minha mãe o havia perdoado, quem era eu para não perdoar? Erani
quebrou um ciclo de dores e mágoas, um ciclo que não precisei
herdar.
Djamila Ribeiro, in Cartas para minha avó
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