segunda-feira, 2 de janeiro de 2023

Cartas para minha avó

Na última internação de minha mãe, Dara, eu e minha prima Cecília nos revezávamos para cuidar dela. Fico feliz em dizer que ela não esteve só, mas veja como nós mulheres que sempre cuidamos umas das outras, vó.
Havia alguma conexão muito forte entre minha mãe e eu. Mesmo conseguindo visitá-la apenas aos finais de semana por conta do trabalho e do estudo, foi pra mim que o médico disse que lhe restavam somente mais alguns meses de vida. Saí da sala dele chorando e abatida. Precisei me recompor antes de voltar ao quarto e fingir que estava tudo bem — tomei a decisão de não contar a ela e tornar seus últimos dias os melhores possíveis. “Eu vou morrer, né?”, ela me perguntou assim que me viu. “Para de bobeira, mãe!”, consegui responder. Quando ela adormeceu, chorei em silêncio.
Voltei para casa, contei aos meus irmãos e liguei para o meu pai, que ficou sem reação. Toda vez que eu ia render Dara ou minha prima, minha mãe falava do meu pai pra mim, dizia que ele ainda não havia ido visitá-la, mas que tudo bem, ela não se importava. Claro que se importava. Os dias passavam, as semanas, e nem sinal dele. Um dia, após uma reclamação disfarçada dela, liguei pra ele. Estava na hora de assumir suas responsabilidades.
À época, ele ainda morava sozinho em um pequeno apartamento em frente à praia — tempos depois foi morar com a mulher loira. Assim que atendeu, gritei: “O senhor não tem vergonha na cara? Minha mãe foi sua esposa por mais de vinte anos, vocês tiveram quatro filhos juntos, construíram uma vida! É um verdadeiro absurdo que, em nome de tudo isso e do que o senhor fez ela passar, ainda não a tenha visitado. Ela vai morrer, sabia? E vai morrer carregando todo esse peso, toda essa mágoa, porque o senhor é covarde a ponto de não encarar as merdas que fez e faz! Amanhã é segunda-feira e o senhor vai lá visitá-la, está escutando? Se ela morrer antes de o senhor ir lá, nunca mais fale comigo!”. E bati o telefone na cara dele. Vó, era tanta raiva na minha voz que meu pai não conseguiu falar nada, nem sequer balbuciou, só escutou. Soube que Denis também teve uma conversa parecida com ele.
A semana passou, eu trabalhava o dia todo e estudava à noite. Um dia, assim que cheguei em casa, meu pai me ligou para dizer que havia visitado minha mãe e perguntou quando podíamos nos encontrar. Senti um misto de alívio e alegria. No sábado, assim que eu cheguei ao hospital para ficar com a minha mãe, notei que ela me aguardava com certa ansiedade. Quando sentei ao seu lado, ela prontamente disse com uma voz que mostrava contentamento:
Sabe quem veio me visitar durante a semana?”
Não”, menti, “quem?”
Seu pai, acredita?”
Que bom, mãe, como foi?”
Ele chegou um pouco tímido, começamos falando banalidades. Conversa vai, conversa vem, deu a hora de ele ir. Peguei, então, a mão dele, coloquei no meu coração e disse em pensamento: ‘Joaquim, eu te perdoo por tudo que me fizeste, assim como eu também te peço perdão por tudo que lhe fiz’. Sabe, filha, seu pai errou muito comigo, mas a gente também erra.”
No dia seguinte, ela morreu. E por mais que estivesse sendo duro lidar com a morte — vi o corpo da minha mãe embalado para seguir para o necrotério, precisei lidar com toda a burocracia ao mesmo tempo em que lidava com o luto —, foi libertador saber que ela não carregou pesos de uma vida toda. Foi libertador ter incluído meu pai na conversa, rompendo esse ciclo de somente nós termos que perdoar a nós mesmas.
Não chegou a passar um ano e meu pai caiu doente. Eu estava sem falar com ele porque meus irmãos e eu queríamos que ele voltasse a morar lá em casa, ou ao menos passasse um tempo com a gente durante o luto, mas ele não quis, foi viver com a namorada. Ele estava disposto a seguir com a vida dele. Um dia o telefone tocou: era a namorada avisando que meu pai tinha sido internado. Ela estava apavorada, dizendo que não conseguia cuidar dele sozinha e que precisava de ajuda. Ouvi tudo com impaciência, pensando que minha mãe nunca sairia do lado dele.
Ele é meu pai, não precisa insistir. Jamais o deixaria sozinho em um momento como esse.”
Vó, a partir daquela ligação fiquei com ele até o último dia. Se minha mãe o havia perdoado, quem era eu para não perdoar? Erani quebrou um ciclo de dores e mágoas, um ciclo que não precisei herdar.

Djamila Ribeiro, in Cartas para minha avó

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