sábado, 7 de janeiro de 2023

Capítulo oito | Perfumes de um amor ausente


Aqueles que mais razão têm para chorar são os que não choram nunca.
Padre Nunes

Vou pelo corredor, alma enroscada como se a casa fosse um ventre e eu retornasse à primeira interioridade. O molho de chaves que a Avó me dera retilinta em minha mão. Já me haviam dito: aquelas chaves não valiam de nada. Eram de fechaduras antigas, há muito mudadas. Mas a Avó Dulcineusa guardava-as todas, porque sofria de uma crença: mesmo não havendo porta, as chaves impediam que maus espíritos entrassem dentro de nós.
Agora, confirmo: nenhuma chave se ajusta em nenhuma fechadura. Excepto uma, no sótão, que abre a porta do quarto de arrumas. Entro nesse aposento obscuro, não há lâmpada, um cheiro húmido recobre tudo como um manto. Deixo a porta entreaberta, para receber uma nesga de claridade.
De rompante, a porta se fecha. Sou engolido pelo escuro ao mesmo tempo que um corpo me aperta, com violência. Perco o equilíbrio, me recomponho e, de novo, o estranho se lança sobre mim. Não existe dúvida: estou sendo agredido, vão-me matar de vez, serei enterrado antes mesmo do Avô Mariano. Tudo isso relampeja em minha cabeça enquanto, sem jeito nem direcção, me vou defendendo. Luto, esbracejo e, quando intento gritar, uma mão cobre a minha boca, silenciando-me. O intruso em meu corpo se estreita, ventre a ventre, e sinto, pela primeira vez, que se trata de uma mulher. Os seios estão colados às minhas mãos. Aos poucos, o gesto tenso afrouxa e o arrebatado vigor se vai reconvertendo em ternura. E já não é a mão que me recobre a boca. São lábios, doces e polpudos lábios. Quem é?, me pergunto. Tia Admirança é quem primeiro me ocorre. Podia ser? Não. Admirança é mais alta, mais cheia de corpo. As mãos da mulher são certeiras rodando nos meus botões e me deixando mais e mais despido. De início, resisto. Estou amarrado à interdição de não se fazer amor em tempo de luto. E ainda sussurro: – Não podemos, há o morto…
Que morto? Alguém morreu? A mulher sem rosto me mordisca no pescoço, engalinhando-me a pele. A voz dela é indecifrável, alteada pela ofegação: esbatida, desfocada, se insinua e me vai invadindo intimidades.
Tudo acontece sem contorno, sem ruído, sem peso. Nunca o sexo me foi tão saboroso. Porque eu sonhava quem amava, sonhando amar naquela todas as mulheres. Admirança seria quem eu mais desejaria que fosse. Mas a carne daquela mulher me parecia de menos despontada idade. Outra seria, dessas tantas convidadas que circundavam pela casa. No final, ainda arfando no escuro, a mulher me passa uma caixa para as mãos.
Entregue isto a Abstinência.
E o vulto desaparece, além da porta. Eu bem podia ter espreitado no corredor para corrigir as minhas suspeitas. Mais forte, porém, foi o desejo de deixar em sombra a identidade daquela mulher. Fizera amor, sim, com uma ausência, a quem eu podia entregar o rosto de quem me aprouvesse.
Saio de casa. Respiro um novo ar, afastando de mim aquela lembrança do quarto de arrumos. A minha missão é bem clara: encontrar o médico. Preciso entender o que se passa com o meu Avô. Amílcar Mascarenha é quem melhor me pode ajudar. Quando pergunto por ele nas ruas dizem-me que está nas barracas. É onde os homens da Ilha se reúnem para beber, conversar e ouvir música. As barracas são ao virar da esquina, tudo ali é perto, a meio passo. Encontro Amílcar Mascarenha na tenda de bebidas do mulato Tuzébio. Peço que me acompanhe. Amílcar resiste. Eu que me sente por ali, ele já me encomenda uma bazuca. Sem outro remédio, me abandono sobre um velho caixote, abstraído da confusão reinante.
Por detrás do balcão, Tuzébio me acena, sorrindo. Aponta a garrafa do xidiba ndoda, a aguardente que, em tempos, eu vinha buscar a mando do Avô Mariano.
Está aqui a garrafinha à espera! – anuncia Tuzébio.
À espera?
À espera que o seu Avô regresse.
Quase me dói a certeza no rosto do taberneiro.
Ocupo-me, então, do que ali me levou: questiono o médico sobre o estado de meu Avô. Queria esclarecer tudo, em transluzente lógica. Queria saber se meu Avô, já antes, sofria de doença que explicasse aquele desfecho. Ou melhor, aquela ausência de desfecho. E ainda, na incerteza de um epílogo, o que se faria: emitir uma incertidão de óbito? Queria finalmente saber se era explicável, na ciência dos livros, que Avô Mariano me escrevesse cartas.
O médico a nada responde: seu olhar persegue as moças que vão passando. Entendi que o lugar não era apropriado. Peço para sairmos dali. O goês aceita, mas com condição: eu lhe servisse daquele tinto lá de casa, a boa água de Lisboa que ele vira no armário da sala. Lhe garanto que será servido. Sem pagar, o médico se retira do bar.
Amílcar Mascarenha me acompanha, então, pelas vielas sujas da vila. Traz consigo uma velha mala que, outrora, já tinha sido de cabedal. Num edifício em ruínas o médico faz paragem. Procura alguma coisa na parede descascada pelo tempo. Amílcar está debruçado sobre uma mancha que não distingo.
Vê? Me aproximo e espreito. Havia um resto de pintura, em letra quase ilegível:
ABAIXO A EXPLORAÇÃO DO HOMEM PELO HOMEM”.
Fui eu que pintei! Ainda se orgulha, fossem aquelas letras uma arte de autor. Sacode a cabeça e, enquanto se afasta, vai olhando para trás como quem se despedisse de um tempo.
Passamos pela igreja. Agora, sem o Padre Nunes, o edifício surge fragilizado, vulnerável aos abusos do tempo e dos homens. Peço ao médico que me aguarde por instante. Subo a escadaria, saltando degraus, e, já no topo, quase tombo de susto: uma enorme cabeçorra assoma à porta. É o burro que está espreitando a vila, vendo o mundo desfilar. O bicho vai mastigando algo. São flores. Escuto, vinda de dentro, a inconfundível voz de minha Avó Dulcineusa:– Entra, meu neto! Não entro. Perscrutona penumbra e vejo-a carregando molhos de flores silvestres. Ela torce o pescoço, apontando o asno: – Trago esta floragem toda que é para ele se alimentar.
Se ninguém lhe der nada, ele vai ter que pastar lá fora, que é o lugar dele.
A Avó recebe as minhas palavras com melindre. Em seu andar de pelicano ela se aproxima e murmura-me ao ouvido: – Não fala assim, meu neto. Eu já disse: esse burro nem bicho não é.
A sua voz emagrece ainda mais, não restando senão um esfumado ciciar. Não quer, obviamente, ser escutada pelo jumento: – Esse aí é criatura de alma baptizada.
Ora, Avó, só falta o bicho confessar-se, já agora ..
Isso não se brinca, Mariano.
Falo sério, Avó.
Não esqueça uma coisa: essa gente toda que desapareceu no rio está, agora mesmo, olhando-nos pelos olhos deste bicho. Não esqueça.
Beija-me na testa e ordena que me afaste. Junto-me ao médico que, entretanto, foi andando pela Rua do Meio. Chegados a Nyumba-Kaya, dirigimo-nos para o salão das visitas. Descarrego as perguntas todas de uma vez. Mascarenha não responde. Aproxima-se da mesa onde se estende o Avô. Qua se automaticamente, o goês toma a mão do falecido.
Sente o pulso? Ele não responde. Com displicência abre a maleta e me estende um estetoscópio.
Quer ouvir?
Não sei mexer nisso. Só quero saber se ele está vivo.
O indiano tosse, para dar profundidade à vaticinação. Sinais vitais haveria, segundo ele, mas só poderiam ser captados por olhos da alma, secretas janelas do espírito. Os aparelhos médicos não os podiam ler.
Diga-me só uma coisa, doutor. Você o levava a enterrar, se tivesse que decidir? – Há muito que eu não tenho que decidir nada. Foi essa a minha última decisão.
Era por isso que estava ali, em Luar-do-Chão, arrumado na periferia do mundo. Já fora militante revolucionário, lutara contra o colonialismo e estivera preso durante anos. Após a Independência lhe atribuíram lugares de responsabilidade política. Depois, a revolução terminou e ele foi demovido de todos os cargos. Assistiu à morte dos ideais que lhe deram brilho ao viver. A sua raça começou a ser apontada e aos poucos a cor da pele se converteu num argumento contra ele. Amílcar Mascarenha se isolou na Ilha e ganhou refúgio em bebida. Dava consultas de graça, na sua própria casa. A velha e desbotada malinha de mão era o único apetrecho.
Como lhe prometera, vou ao armário e abasteço-o generosamente da reserva de vinho. Amílcar olha o copo à transparência e depois concentra o olhar nas alturas como se, só então, reparasse que não havia tecto. Vai bebendo, lento, olhos fechados ao modo de quem beija. Passa a língua pelos lábios a conferir que nenhuma gota se desperdiça. Só depois me dirige palavra. O seu tom é sério, parece reassumir a postura doutoral: eu que vá ter com Abstinêncio. Só ele pode credenciar a decisão de adiar o enterro.
Você foi escolhido pelo morto. Mas Abstinêncio é o mais velho. Ele é quefoi escolhido pela vida.
Agita o copo vazio, comentando como era transparente aquele vidro. É o modo de pedir mais. Encho, ele me tranquilizando: é a última bebida, o derradeiro pedido. E eu, no poupar do tempo: – Concordo consigo, doutor. Irei já agora falar com meu Tio Abstinêncio. Me acompanhe, por favor! Antes de sair, recupero a caixa que me fora encomendada no quarto de arrumas. No caminho para a casa de Abstinência, o goês já vai de alma escancarada, mais falador que o corvo no coqueiro. Meu tio é o único motivo de suas falas. Lembra Abstinência e ri-se dos episódios que rechearam o seu tempo.
Conhece aquela história da pintura da repartição? A vida de Abstinência se consumira no bafio da repartição. Todos recordam o zeloso funcionário: sempre o mesmo ombro encostado no mesmo umbral da porta. Envelheciam ele e o edifício, irmãos da mesma idade. Um dia decidiu-se pintar a repartição e os pintores atacaram de branco paredes, portas e janelas. Mas não conseguiam pintar aquele pedaço de madeira onde Abstinência se encostava. O homem não arredava do encosto.
Só se me pintarem a mim junto – teimava. E aquele pedaço de parede ficou para sempre por pintar. Como se ali se desenhasse a ausência desse estranho homem.
Lembrança desatava lembrança. O médico se comprazia em repuxar velhos episódios passados com meu tio. Se eu sabia, por exemplo, o motivo da sua recusa em sair de sua casa? Pensava eu que ele não amava viver? Era o contrário: meu tio se emparedara, recusado a sair, não era porque perdera afeição pela sua terra. Amava-a tanto que não tinha força para assistir à sua morte. Passeava pela vila e que via? Lixos, lixos e lixos. E gente dentro dos lixos, gente vivendo de lixo, valendo menos que sujidades.
Nunca estivemos tão próximo dos bichos.
Não era tanto a pobreza que o derrubava. Mais grave era a riqueza germinada sabe-se lá em que obscuros ninhos. E a indiferença dos poderosos para com a miséria de seus irmãos. Esse era o ódio que ele fermentava contra Ultímio. Meu tio mais novo visitava a Ilha, cheio de goma e colarinho. Ele e seus luxos, arrotando ares. Entrava e saía sem licença, todo inchado, feito bicho graúdo.
É um desses que pensam que são senhores só porque são mandados por novos patrões.
Infelizmente, os ilhéus eram tão pequenos que apenas queriam ser como os grandes. A maior parte invejava os brilhos. Mas ele, Amílcar Mascarenha, ele só via em Ultímio a minhoca rasteira e rastejante. Iludido com seus voláteis poderes.
No charco onde a noite se espelha, o sapo acredita voar entre as estrelas.
Raiva tinham meu pai e o Tio Abstinêncio. Dedicavam a Ultímio sentimentos que nenhum irmão deveria alimentar.
Nós, na Ilha, não somos assim. Ficamos contentes quando alguém da família tem sorte e se sai bem nas vantagens do poder.
Mas não era o caso da nossa família. Nem Abstinêncio nem meu pai queriam favores desse Ultímio. Aquele era um dinheiro quente, queimava as mãos.
Abstinêncio era consumido pela tristeza. E pela inveja. Tristeza lhe dava o Mano Ultímio. Inveja lhe causava seu irmão Fulano. Ele se acabrunhava de não ser corajoso como este irmão que abraçara uma causa, vestira uma farda e se batera contra a injustiça. Abstinêncio nunca seria capaz de sequer sonhar fazer metade daquilo que o Mano Fulano empreendera.
Aos poucos o nosso tio mais velho foi emagrecendo, parecendo querer insubstanciar-se. Ao princípio, o médico suspeitara haver doença por detrás de tanta magreza. Examinara o seu estado. Mas não havia enfermidade. Abstinêncio era magro por timidez: para ser menos visto.
Por um tempo até acreditou que meu tio variasse da razão. Porque ele passou a mudar de nome. Como se o que trazia, por herança de baptismo, já não servisse. Meu tio assumia os nomes de todos os que faleciam. Morria José e ele se nomeava José. Falecia Raimundo e ele passava a ser Raimundo. Quando o médico o questionou sobre o porquê daquele saltitar de nome, ele respondeu: – É que, assim, acredito que nunca morreu ninguém.
Chegamos a casa de Abstinêncio, já vai luscofuscando. Me espantam as luzes e os ruídos de festa que exalam da casa. A porta está aberta, a sala em flagrante desordem e, pelos cantos, se estendem moças quase despidas. Meu tio mais velho nos recebe, no corredor, tão alterado que quase não o reconheço. Me estende uma garrafa de cerveja: – Vá, aceite, há bebida que chegue. Depois escolha aí a menina que lhe aprouver.
Deixe, Tio. Estou bem assim.
Escolha, sobrinho, que escolher é coisa que eu nunca pude fazer.
As meninas, às dezenas, exibem seus corpos, soltam gargalhadas como se o riso fosse medida de sua disponibilidade. Algumas me dirigem gestos de convite. Uma tontura me derruba e sento-me para ganhar discernimento. Afinal, me pergunto: Abstinêncio é um, de dia, e outro, de noite? Toda a imagem de contenção e recolhimento, essa sua quase santidade, se desfaz ante a minha incredulidade.
O médico se aproxima de meu tio, segura-lhe o braço e puxa-o para um canto. Pede-lhe que mande embora as meninas e reponha a ordem. Abstinêncio obedece. Desliga o rádio, bate palmas e ordena às moças que se retirem. Aos poucos a casa regressa ao sossego. Quando estamos, por fim, em silêncio nenhum de nós parece saber o que dizer. Me levanto e faço a entrega da caixa de papelão que trouxe de Nyumba-Kaya.
Trouxe-lhe isto, Tio.
Não abre logo a caixa. Mantém-na sobre os joelhos. Respira fundo como se temesse algo. Adiava, em si, o chegar da notícia. Os joelhos juntos, o corpo erecto, o ciciar da voz: eis de novo o nosso Tio Abstinêncio. Aponta a desordem, as garrafas no chão e me pergunta: – Está admirado, sobrinho? Sabe por que faço isto?
Não faço ideia, meu Tio.
Você foi-se daqui de Luar-do-Chão. Esta é a minha maneira de me ir embora, entende? Que ele era como a montanha, prosseguiu. Tinha raiz mais funda que o mundo. Mas às vezes lhe raspava a asa de um sonho – e ele se deslugarejava. Estar bêbedo era a sua única emoção. A bebida lhe entregava um momento em que tudo se estreava, ao ponto de se sentir outra vez vivo. Amílcar se ergue e fecha os cortinados como se emendasse a lengalenga.
Por que não abre a caixa, Abstinência? O Tio finge não ouvir o médico. A mão sobre a tampa da caixa parece a prescrição de um eterno adiamento.
Eu sei muito bem a doença que o faz ficar nesse estado – insiste Mascarenha. – Isso é paixão de mulher. É essa a sua doença, Abstinência.
Espero de Abstinêncio a reacção amarga, a negação serena mas veemente. Contudo, ele nada responde. Em vez disso, se decide a abrir a caixa. Dela vai retirando, lentamente, um longo vestido branco. Meu tio se arrepia, o gesto lhe vai gaguejando e seus olhos se vão liquefazendo. Puxa o inteiro vestido para fora da caixa e o leva ao rosto. Respira uma memória e fica assim, nariz metido entre os folhos, como se se drogasse de antigos perfumes. Depois desaba nele um choro, convulso, e sua magreza parece sacudida por visitação de espíritos. O médico me faz sinal para que nos retiremos. Por respeito, saímos, sem ruído. Nem a porta fechámos para não interromper a visita que Abstinêncio estava recebendo.
Voltamos a calcorrear as ruelas da vila, saltando sobre os charcos enlameados. Uma espécie de ciúme me vai queimando o peito e não seguro, em mim, a lancinante dúvida: – Lembranças de Admirança?
Admirança?
Sim, esse vestido não era de minha Tia Admirança?
O médico faz estalar uma risada. Admirança? Não, aquele era um vestido de Maria da Conceição Lopes, a mulher do comerciante português. Essa era a razão de tão antiga e acumulada melancolia. Meu tio, nos tempos, se incendiara de paixão mais que proibida. Mulher branca, esposa de gente máxima, um dos patrões da Ilha.
Sorrio, por espanto da revelação. Dona Conceição? Afinal era esse o motivo das intermináveis saudades da minha madrinha? Então, as vezes sem conta que ela se meteu no barco e regressou a Luar-do-Chão foi para visitar meu solitário tio! E eu nunca entendi. Também só agora compreendo a presença de Abstinêncio na minha despedida, há uma dezena de anos. O homem se demorara num abraço, derramado em antecipada saudade. Mas não era eu quem ele abraçava. Em mim, ele se despedia de minha acompanhante, a estimada esposa do patrão Lopes.

Mia Couto, in Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra

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