Para
mim não existe vida fora da palavra escrita. Passei quatro dias
ouvindo, pensando e por último falando sobre literatura em conversas
na Casa de Cultura da FLIP (Festa Literária Internacional), em
Paraty. O debate me carregou para uma reflexão sobre as minhas
marcas. E penso que as marcas se inscrevem em nós primeiro como algo
indizível. E depois as transformamos em outra coisa que nos dá a
possibilidade de viver. Em mim, elas viram texto. Percebo então que
palavras são marcas por escrito. E lamento as vidas que não querem
ser assinaladas pela vida.
Vivemos
numa época que não quer ser marcada. A maioria de nós tenta
escapar das rugas, essas cicatrizes do rosto, de todas as formas —
algumas delas bem violentas. Os sinais da passagem do tempo, da vida
vivida, são interpretados como algo alienígena, estranho a nós.
Estão ali, mas não deveriam estar. É quase uma traição. Urge
então apagá-las.
É
tamanho o nosso medo da velhice e da morte, que as marcas da vida
vivida são decodificadas como feias, quase repugnantes. Tanto que
estamos diante de uma novidade: as primeiras gerações de seres
humanos envelhecendo e morrendo com os sinais não da idade, mas das
cirurgias plásticas. Sim, porque estas também são cicatrizes.
Não
há jeito de morrer sem marcas porque não há como viver sem ser
marcado pela vida. Mesmo os bebês, que por alguma razão morrem ao
nascer, já trazem no corpo a marca fundadora: o corte do cordão
umbilical que lhes arrancou de dentro da mãe. O umbigo é nossa
primeira cicatriz, aquela que nos unifica.
Se
a tecnologia conseguir inventar um ser humano sem marcas é porque
desinventou o ser humano. Podemos talvez um dia apagar todas as
marcas visíveis, tatuadas no corpo. Mas nunca haverá uma cirurgia
capaz de eliminar as marcas da alma. E esta é também uma tentativa
que temos empreendido com muito empenho. Por um excesso de
psicologês, uma leitura transtornada do pensamento de Freud,
passamos a achar que tudo é terrivelmente traumático. Qualquer
contrariedade ou vivência não programada supostamente
estigmatizaria nossos filhos e aniquilaria seu futuro. Qualquer
derrapada no script de nossos dias nos assinala como
catástrofe. Parece que viver se tornou uma experiência por demais
traumática para quase todos — e, se assim é, a única solução
seria não viver. Mas a questão não é o trauma — e sim o que
cada um faz com ele.
Há
algumas semanas participei de um debate no Instituto Sedes
Sapientiae, em São Paulo, sobre Sobreviventes, o pungente
documentário de Miriam Chnaiderman e Reinaldo Pinheiro. Em minha
fala, sugeri que não existem sobreviventes. Só é possível ser
vivente. A palavra sobre-vivente contém a ideia de viver
apesar do vivido. E eu acredito que só é possível viver por causa
do vivido.
Em
mais de 20 anos contando histórias de pessoas — e também minha
própria história —, percebo que as pessoas morrem e renascem
muitas vezes numa vida só. Cada existência é uma sucessão de
pequenas mortes e renascimentos desde esse primeiro corte que nos
separa de nossas mães e dá início à nossa existência como
indivíduo. Fico só imaginando nesta época onde tudo vira trauma
insuperável, o que aconteceria se as pessoas pudessem se lembrar
dessa expulsão do paraíso uterino. Haveria uma legião de homens e
mulheres incapazes de lidar com acontecimento tão terrível. Sem
perceber que é só por ele, afinal, que começamos a viver. Até
então, somos todos apenas uma continuidade, um apêndice, do corpo
materno.
É
verdade que, compreendendo o trauma como algo que nos marca, que nos
mata simbolicamente para que possamos renascer de outro jeito, nossa
vida é cheia deles. O que questiono aqui é a crença de que não
deveria ser assim, a ilusão de que é possível — e o pior, que é
desejável — ter uma vida sem marcas no corpo e na alma.
É
claro que alguns acontecimentos são devastadores — e lutamos para
que não voltem a se repetir com ninguém. Mas, mesmo nestes casos,
me parece que a vida só é possível não apagando o que é
inapagável, mas fazendo algo novo com essa marca. Transformando-a em
algo que possa viver.
Recentemente,
causou grande polêmica um vídeo no YouTube, onde Adolek Kohn, de 89
anos, “sobrevivente” do holocausto judeu, dança com sua filha e
netos a música “I will survive” (“Eu sobreviverei”),
de Gloria Gaynor, em campos de concentração como o de Auschwitz.
Quem não tiver assistido pode encontrá-lo facilmente na internet.
Muita gente achou desrespeitoso com o sofrimento das vítimas do
holocausto. A mim pareceu emocionante. Concordo com a filha, a
artista australiana Jane Korman, quando diz: “Essa dança é um
tributo à tenacidade do espírito humano e uma celebração da
vida”.
Poder
dançar no palco em que quase foi assassinado — e onde milhões de
pessoas foram exterminadas — é fazer algo vivo em vez de fazer
algo mórbido. Especialmente poder dançar com a continuidade de você
— na companhia de todos aqueles que quase não existiram, uma
descendência inteira quase aniquilada pela morte de um. Afinal, ele
dança sobre suas antigas e brutais lembranças amparado por uma nova
memória, representada pelos seus descendentes, por aqueles que vão
recordá-lo e produzir outras histórias e sentidos para a trama das
gerações. É mais do que uma magistral vingança — é uma dança.
Isso
não significa que este (sobre)vivente tenha lidado melhor com seu
trauma que todos os outros. Cada um encontra seu caminho — e a
maioria dos caminhos não aparece no YouTube. Mas acho uma
prepotência “ser contra” ou ridicularizar a tentativa de um
outro de lidar com suas marcas, dar um novo sentido àquilo que o
constitui. Transformar em algo mais que a dor o que era só dor. Pode
não ser o seu caminho, mas isso não o impede de olhar para a saída
encontrada pelo outro com o profundo respeito que ela merece.
Quando
as pessoas me contam suas histórias, começam a contar pelos seus
renascimentos. Pelo momento em que morreram de um jeito, por causa de
um trauma, e renasceram de outro. É ali que identificam seu início
— ou reinício. Uma nova vida só é possível quando contém a
anterior e a sua quebra. O que atravanca nossa existência é ficar
fixado no trauma — enxergar a marca como uma morte que não
renasce, como um corte que não vira cicatriz. Por isso a palavra
“sobrevivente” — e o sentido que ela tem no senso comum — me
incomoda. É como se vida fosse o que havia antes, algo que não
pudesse se quebrar, e o que temos agora fosse algo menor que a vida,
uma mera sobre-vida. Me parece, ao contrário, que a matéria
da vida é justamente essa sucessão de quebras — e viver é dar
sentido a elas.
Essa
ideia vendida e consumida exaustivamente, de que a vida não pode ser
marcada nem no corpo nem na alma, tem causado enorme sofrimento às
pessoas. Não o sofrimento que nos leva a criar uma vida, mas aquele
que nos leva a anestesiar uma vida. Esse equívoco tem transformado
gente que poderia viver em meros sobreviventes. Porque, se não
podemos ser marcados, se cada marca for vivida como algo mórbido e
não como parte do vivido, fixamo-nos na morte. Viramos uma ladainha
que repete sempre o momento mortífero e não consegue seguir
adiante.
Ser...
é ser em pedaços. O que nos impede de viver não é o trauma, mas a
ideia de que exista uma vida que possa prescindir deles. E o que nos
humaniza é a capacidade de criar algo vivo com nossas marcas de
morte. Palavra escrita, literatura, como tanto se discutiu na festa
literária de Paraty. Dança, como o (sobre)vivente do holocausto.
Jardins, bordados, doces, móveis, dribles de futebol.
Como
poderia dizer a poeta Adélia Prado, “uso todos os meus cacos para
fazer um vitral”. Cada vida humana é um vitral feito com as marcas
de todas as nossas mortes. Sem os cacos, nada há.
9
de agosto de 2010
Eliane Brum, in A Menina Quebrada
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