Toda
a arte de Kafka consiste em obrigar o leitor a reler. Seus
desenlaces, ou suas faltas de desenlace, sugerem explicações, mas
que não são reveladas com clareza e exigem, para nos parecerem
fundadas, que a história seja relida sob um novo ângulo. Às vezes
há uma dupla possibilidade de interpretação, donde aparece a
necessidade de duas leituras. É o que pretendia o autor. Mas não
estaríamos certos se quiséssemos, em Kafka, interpretar tudo
minuciosamente. Um símbolo está sempre expresso no sentido geral e,
por mais precisa que seja a tradução, um artista só pode
recuperar, através dela, o movimento: não há literalidade. Além
disso, nada é mais difícil de entender do que uma obra simbólica.
Um símbolo ultrapassa sempre quem faz uso dele e o leva a dizer
mais, na realidade, do que tem intenção de dizer. Nesse caso, o
meio mais seguro de dominar a situação é não o provocar,
principiar a obra com um espírito não deliberado e não buscar suas
correntes secretas. Particularmente no caso de Kafka, é bom aceitar
o seu jogo, entrar no drama pela aparência e no romance pela forma.
À
primeira vista, e para um leitor descomprometido, são inquietantes
aventuras que levam personagens trêmulos e obstinados à perseguição
de problemas que eles jamais enunciam. Em O processo, Joseph
K... é acusado. Mas ele não sabe de quê. Deve, sem dúvida, se
defender, mas ignora por quê. Os advogados acham a causa difícil.
Entrementes, ele não negligencia o amor, a alimentação ou a
leitura de seu jornal. Depois, é julgado. Mas a sala do tribunal é
muito escura. Ele não compreende coisa nenhuma. Supõe, apenas, que
é condenado, mas mal se pergunta a quê. Assim como, às vezes,
duvida disso e continua a viver. Muito tempo depois, dois senhores
bem trajados e polidos vem procurá-lo e o convidam a segui-los. Com
toda cortesia, eles o levam para um desolado subúrbio, colocam-lhe a
cabeça sobre uma pedra e o degolam. Antes de morrer, o condenado
somente diz: “como um cão”.
Vê-se
como é difícil falar de símbolo depois de uma narrativa em que a
qualidade mais sensível parece ser exatamente o natural. Mas o
natural é uma categoria difícil de compreender. Há obras em que o
acontecimento parece natural ao leitor. Mas há outras (mais raras, é
verdade) em que é o personagem que acha natural o que lhe acontece.
Por um paradoxo singular, mas evidente, quanto mais extraordinárias
forem as aventuras do personagem, mais sensível se tornará o
natural da narrativa: é proporcional à diferença que se pode
sentir entre a estranheza da vida de um homem e a simplicidade com
que este a aceita. Parece que este natural é o de Kafka. E é por
isso que se sente bem o que O processo quer dizer. Falou-se de
uma imagem da condição humana. Sem dúvida. Mas é ao mesmo tempo
mais simples e mais complicado. Quero dizer que o sentido do romance,
no caso de Kafka, é mais particular e mais pessoal. De certa
maneira, é ele quem fala, é a nós que ele confessa. Vive e é
condenado. Fica sabendo-o nas primeiras páginas do romance que leva
adiante neste mundo e, se tenta remediá-lo, não se revela, no
entanto surpreso. Ele nunca se espantará suficientemente com essa
falta de espanto. É nessas contradições que se reconhecem os
primeiros sinais da obra absurda. O espírito projeta no concreto sua
tragédia espiritual. E ele só pode fazê-lo através de um paradoxo
permanente que dá às cores o poder de expressar o vazio e aos
gestos cotidianos a força de traduzir as ambições eternas.
De
igual modo, O castelo talvez seja uma teologia em ação, mas
é antes de tudo a aventura individual de uma alma em busca de sua
graça, de um homem que procura nos objetos deste mundo seu segredo
real, e nas mulheres os signos do deus que dorme nelas. A
metamorfose, por sua vez, representa certamente a terrível
iconografia de uma ética da lucidez. Mas é também o produto desse
assombro inimaginável que experimenta o homem ao sentir o bicho que
ele, sem esforço, se tornou. É nessa ambiguidade fundamental que
está o segredo de Kafka. Essas perpétuas oscilações entre o
natural e o extraordinário, o indivíduo e o universal, o trágico e
o cotidiano, o absurdo e o lógico reaparecem na sua obra inteira e
lhe dão ao mesmo tempo sua ressonância e significado. São esses
paradoxos que é preciso enumerar, são essas contradições que é
preciso ressaltar, para compreender a obra absurda.
Um
símbolo, com efeito, pressupõe dois planos, dois mundos de ideias e
de sensações, e um dicionário de correspondências entre um e o
outro. Esse léxico é que é o mais difícil de se fixar. Mas tomar
consciência dos dois mundos assim presentes é colocar-se no caminho
de suas relações secretas. Em Kafka, os dois mundos são aqueles da
vida cotidiana, de um lado, e da inquietação sobrenatural, do
outro{33}. Parece que se assiste aqui a uma interminável exploração
da palavra de Nietzsche: “Os grandes problemas estão na rua.”
Há
na condição humana – é o lugar-comum de todas as literaturas –
uma absurdidade fundamental, ao mesmo tempo que uma implacável
grandeza. As duas coincidem, como é natural. Ambas se apresentam –
repitamo-lo – no divórcio ridículo que separa as nossas
intemperanças da alma e as alegrias perecíveis do corpo. O absurdo
é que seja a alma desse corpo que o ultrapassa tão desmedidamente.
Para quem quiser simbolizar essa absurdidade, é em um jogo de
contrastes paralelos que será preciso lhe dar vida. É assim que
Kafka exprime a tragédia pelo cotidiano e o absurdo pela lógica.
Um
ator imprime ainda maior força a um personagem trágico se se abstém
de exagerá-lo. Se ele é comedido, o horror que suscita será
descomedido. A tragédia grega, quanto a isso, é rica de
ensinamentos. Numa obra trágica, o destino sempre se faz perceber
melhor sob as faces da lógica e do natural. O destino de Édipo é
antecipadamente anunciado. Está sobrenaturalmente decidido que ele
cometerá o homicídio e o incesto. Todo o esforço do drama é
mostrar o sistema lógico que, de dedução em dedução, vai
consumar a infelicidade do herói. Anunciar-nos apenas esse destino
inusitado quase não é apavorante, pois é inverossímil. Mas se a
necessidade daquilo nos é demonstrada no quadro da vida cotidiana,
da sociedade, do Estado, da emoção familiar, aí o pavor se
consagra. Nessa revolta que sacode o homem e o faz dizer: “Isso não
é possível” já existe a certeza desesperada de que “isso” é
possível.
É
todo o segredo da tragédia grega ou, pelo menos, um de seus
aspectos, Pois ocorre um outro que, por um método inverso, nos
permitiria uma melhor compreensão de Kafka. O coração humano tem
uma penosa tendência a chamar destino somente ao que o esmaga. Mas
também a felicidade, à sua maneira, não tem razão de ser, pois é
inevitável. O homem moderno, no entanto, se atribui o método dela,
quando não a desconhece. Haveria muito a dizer, ao contrário, sobre
os destinos privilegiados da tragédia grega e os preferidos da lenda
que, como Ulisses, no meio das piores aventuras, se encontram a salvo
deles próprios.
Em
todo o caso, o que é preciso reter é essa cumplicidade secreta que
une ao trágico o lógico e o cotidiano. Eis aí por que Samsa, o
herói de A metamorfose, é um caixeiro-viajante. Eis aí por
que a única coisa que o aborrece na singular aventura que faz dele
um inseto repugnante é que seu patrão ficará descontente com sua
ausência. Crescem-lhe patas e antenas, sua espinha se arca, pontos
brancos se lhe espalham pelo ventre e – não direi que isso não o
surpreende: o efeito seria falho – isso lhe causa uma “leve
chateação”. Em sua obra central, O castelo, são os
detalhes da vida cotidiana que voltam à tona e, no entanto, nesse
estranho romance em que nada se conclui e tudo recomeça, a aventura
essencial que se configura é a de uma alma em busca de sua graça.
Essa tradução do problema para o ato, essa coincidência do geral e
do particular, reconhecemos também nos pequenos artifícios
peculiares a todo grande criador. Em O processo, o herói
teria podido chamar-se Schmidt ou Franz Kafka. Mas ele se chama
Joseph K... Não é Kafka e é ao mesmo tempo. É um europeu médio.
É como todo o mundo. Mas é também a entidade K que apresenta o x
dessa equação de carne.
Da
mesma forma, se Kafka quer exprimir o absurdo, é da coerência que
ele se servirá. Conhece-se a história do louco que pescava numa
banheira: um médico que tinha suas ideias sobre os tratamentos
psiquiátricos lhe perguntava “se isso mordia” e recebeu a
resposta rigorosa: “Mas claro que não, seu imbecil, pois se é uma
banheira.” Essa história é do gênero barroco. Mas se capta aí,
de maneira sensível, como o efeito absurdo está ligado a um excesso
de lógica. O mundo de Kafka, na verdade, é um universo inexprimível
em que o homem se dá ao luxo supliciante de pescar em uma banheira
sabendo que nada sairá dali.
Reconheço,
pois, nesse caso uma obra absurda em seus princípios. Sobre O
processo, por exemplo, posso mesmo dizer que o êxito é total. A
carne triunfa. Nada falta ali, nem a revolta inexpressa (e é ela,
porém, que escreve), nem o desespero lúcido e mudo (e é ele,
porém, que cria), nem essa assombrosa liberdade de atitude que os
personagens do romance respiram até a morte final.
No
entanto, esse mundo não é tão fechado quanto parece. Nesse
universo sem progresso, Kafka vai inserir a esperança de uma forma
singular. A esse respeito, O processo e O castelo não
tomam a mesma direção. Eles se completam. A insensível progressão
que se pode notar de um para o outro representa uma conquista
descomunal na ordem da evasão. O processo apresenta um
problema que O castelo, de certo modo, resolve. O primeiro
descreve, segundo um método quase científico, mas sem concluir. O
segundo, à sua maneira, explica. O processo diagnostica e O
castelo imagina um tratamento. Mas o remédio ali proposto não
cura. Ele só faz a doença retornar à vida normal. Ajuda a
aceitá-la. Num certo sentido (pensemos em Kierkegaard), ele a leva à
cura. O agrimensor K... não pode imaginar outra preocupação além
da que o devora. Até aqueles que o cercam se apaixonam por esse
vazio e essa dor que não tem nome, como se o sofrimento revestisse
assim um rosto privilegiado. “Como preciso de você”, diz Frieda
a K... “Como me sinto abandonada, desde que o conheço, quando você
não está junto de mim.” Esse remédio sutil, que os faz amar o
que nos esmaga e faz nascer a esperança num mundo sem saída, esse
“salto” brusco pelo qual tudo se acha mudado, é o segredo da
revolução existencial e do próprio O castelo.
Poucas
obras são tão rigorosas em seu andamento quanto O castelo.
K... é nomeado agrimensor do castelo e chega à aldeia. Mas da
aldeia ao castelo é impossível a comunicação. Ao longo de
centenas de páginas, K... se obstinará em achar o seu caminho,
tomará todas as providências, se fará sagaz e ardiloso, jamais se
zangará e, com uma fé desconcertante, quererá assumir a função
que lhe foi confiada. Cada capítulo é um fracasso. E também um
recomeço. Não é lógica, mas senso de concatenação. A magnitude
dessa teimosia produz o trágico da obra. Quando K... telefona para o
castelo, são vozes confusas e misturadas, risos vagos ou apelos
longínquos o que ele distingue. Isso basta para alimentar sua
esperança, como esses vagos sinais que aparecem nos céus do verão,
ou essas promessas da tarde que nos trazem uma razão de viver.
Encontra-se aqui o segredo da melancolia peculiar a Kafka. A mesma,
na verdade, que se respira na obra de Proust ou na paisagem
plotiniana: a nostalgia dos paraísos perdidos. “Eu fico muito
melancólica”, diz Olga, “quando Barnabé de manhã me diz que
vai ao Castelo: esse trajeto provavelmente inútil, esse dia
provavelmente perdido, essa esperança provavelmente vã”.
“Provavelmente”: com esse mesmo toque Kafka envolve sua obra
inteira. Mas nada o explicita, e a procura do eterno é meticulosa. E
esses autômatos inspirados que são os personagens de Kafka nos
passam a própria imagem do que seríamos sem os nossos
divertimentos{34}. É inteiramente entregues às humilhações do
divino.
Em
O castelo essa submissão ao cotidiano se torna uma ética. A
grande esperança de K... é conseguir que o Castelo o adote. Não
tendo como chegar a isso sozinho, todo o seu esforço é de merecer
essa graça tornando-se um habitante da aldeia e perdendo sua
qualidade de estrangeiro que todo o mundo lhe faz sentir. O que ele
quer é um ofício, um lar, uma vida de homem normal e são. Está
cansado de sua loucura. Quer ser razoável. Quer se desembaraçar da
maldição particular que o torna estrangeiro na aldeia. O episódio
de Frieda, quanto a isso, é significativo. Essa mulher conheceu um
dos funcionários do castelo e, se ele a faz sua amante, é por causa
de seu passado. Ele extrai dela alguma coisa que o supera – ao
mesmo tempo em que tem consciência daquilo que a torna para sempre
indigna do castelo. Sonha-se aqui com o amor singular de Kierkegaard
por Regina Olsen. Em certos homens, o fogo da eternidade que os
devora é tão grande que eles chegam a queimar o próprio coração
dos que o cercam. O funesto erro que consiste em dar a Deus o que não
é de Deus é também o principal assunto desse episódio de O
castelo. Mas, para Kafka, parece muito não ser um erro. É uma
doutrina e um “salto”. Não existe nada que não seja de Deus.
Mais
significativo ainda é o fato de o agrimensor se desligar de Frieda e
ir para as outras irmãs Barnabés. Porque a família Barnabé é a
única da aldeia que está completamente abandonada pelo castelo e
pela própria aldeia. Amália, a irmã mais velha, recusou as
propostas indecorosas que lhe fazia um dos funcionários do castelo.
A maldição imoral que se seguiu eliminou-a para sempre do amor de
Deus. Ser incapaz de perder a honra por Deus é tornar-se indigno da
sua graça. Observa-se um tema familiar à filosofia existencial: a
verdade que contraria a moral é uma coisa que vai longe. Pois o
caminho que o herói de Kafka realiza, o que vai de Frieda às irmãs
Barnabés é aquele mesmo que vai do amor confiante à deificação
do absurdo. Aqui também o pensamento de Kafka volta a se encontrar
com Kierkegaard. Não é surpreendente que o "relato Barnabé"
se situe no fim do livro. A última tentativa do agrimensor é a de
encontrar Deus através do que o nega, de reconhecê-lo não segundo
as categorias de bondade e de beleza, mas atrás dos rostos vazios e
hediondos de sua indiferença, sua injustiça e seu ódio. Esse
estrangeiro que solicita ao castelo para adotá-lo está no fim da
viagem um pouco mais exilado, pois, desta vez, é a si próprio que é
infiel e que abandona lógica, moral e verdade espirituais para
tentar entrar, rico somente de sua esperança insensata, no deserto
da graça divina{35}.
A
palavra esperança, aqui, não é ridícula. Ao contrário, quanto
mais trágica é a condição relatada por Kafka, mais rígida e
provocante se torna essa esperança. Quanto mais o O processo
é verdadeiramente absurdo, mais o “salto” exaltado de O
castelo se mostra comovente e ilegítimo. Mas redescobrimos
então, em estado puro, o paradoxo do pensamento existencial tal
como, por exemplo, é expresso por Kierkegaard: “Deve-se ferir
mortalmente a esperança terrena – só então é que nos salvamos
pela esperança verdadeira{36}”, e que se pode traduzir assim: “É
preciso ter escrito O processo para empreender O castelo”.
A
maior parte dos que falaram de Kafka realmente definiram sua obra
como um grito desesperador em que nenhum recurso é deixado ao homem.
Mas isso requer uma revisão. Há esperanças e esperanças. A obra
otimista do Sr. Henry Bordeaux me parece singularmente
desencorajadora. E que nada, ali, é permitido aos corações um
pouco difíceis{37}. O pensamento de Malraux, ao contrário, se
mantém sempre estimulante{38}. Mas no dois casos não se trata nem
da mesma esperança nem do mesmo desespero. Vejo apenas que a própria
obra absurda pode levar à infidelidade que desejo evitar. A obra que
só era a repetição sem perspectiva de uma condição estéril, uma
exaltação inteligente do perecível se torna agora um berço de
ilusões. Ela explica, ela dá uma forma à esperança. O criador não
pode mais se separar disso. Ela não é o jogo trágico que devia
ser. Dá um sentido à vida do autor.
É
singular, em todo caso, que obras aparentadas na inspiração como
aquelas de Kafka, Kierkegaard ou Chestov, e aquelas – para ser
breve – dos romancistas e filósofos existenciais inteiramente
voltados para o absurdo e suas consequências, culminam afinal nesse
enorme grito de esperança.
Eles
abraçam o Deus que os devora. É pela humildade que a esperança se
introduz. Porque o absurdo dessa existência lhes assegura um pouco
mais da realidade sobrenatural. Se o caminho desta vida termina em
Deus, há pois uma saída. E a perseverança, a obstinação com as
quais Kierkegaard, Chestov e os heróis de Kafka repetem seus
itinerários são uma garantia singular do poder entusiasmante dessa
certeza{39}.
Kafka
recusa a seu deus a grandeza moral, a evidência, a bondade, a
coerência, mas é para melhor se lançar em seus braços. O absurdo
é reconhecido e aceito, o homem se resigna a isso e, desde esse
instante, sabemos que ele não é mais absurdo. Nos limites da
condição humana, que esperança é maior do que aquela que permite
escapar a essa condição? Uma vez mais percebo que o pensamento
existencial, contra a opinião dominante, é composto de uma
esperança desmesurada, aquela mesma que, com o cristianismo
primitivo e a anunciação da boa nova, sublevou o mundo antigo. Mas
nesse salto que caracteriza todo o pensamento existencial, nessa
obstinação, nessa agrimensura de uma divindade sem superfície,
como não ver a marca de uma lucidez que se renega? Vê-se somente
que é um orgulho que abdica para se salvar. Essa renúncia seria
fecunda. Mas isso não muda aquilo. A meu ver, não se diminui o
valor moral da lucidez declarando-a estéril como todo orgulho.
Porque também uma verdade, por sua própria definição, é estéril.
Todas as evidências o são. Em um mundo em que tudo se dá e nada se
explica, a fecundidade de um valor ou de uma metafísica é uma noção
vazia de sentido.
Seja
como for, vê-se aqui em que tradição de pensamento se inscreve a
obra de Kafka. De fato, não seria inteligente considerar rigorosos
os passos que levam de O processo a O castelo. Joseph
K... e o agrimensor K... são apenas os dois polos que atraem
Kafka{40}. Falarei com ele e direi que sua obra provavelmente não é
absurda. Mas isso não nos impede de ver sua grandeza e sua
universalidade. Elas provêm de ele ter sabido representar com tanta
amplitude essa passagem cotidiana da esperança para o desgosto e da
prudência desesperada para a cegueira voluntária. Sua obra é
universal (uma obra efetivamente absurda não é universal), no
sentido de que representa nela a face comovedora do homem que foge da
humanidade e destila em suas contradições razões de crer, razões
de esperar em seus fecundos desesperos, chamando de vida o seu
terrível aprendizado da morte. Ela é universal porque de inspiração
religiosa Como em todas as religiões, o homem se livra, aí, do peso
de sua própria vida. Mas se fico sabendo disso, se posso também
admirá-lo, sei também que não procuro o que é universal, mas o
que é verdadeiro. Os dois podem não coincidir.
Entenderemos
melhor essa maneira de ver se digo que o pensamento verdadeiramente
desesperador se define precisamente pelos critérios opostos, e que a
obra trágica, uma vez exilada toda a esperança futura, poderia ser
aquela que descreve a vida de um homem feliz. Quanto mais apaixonante
é a vida, mais absurda é a ideia de perdê-la. Talvez esteja nisso
o segredo dessa aridez soberba que se respira na obra de Nietzsche.
Nessa ordem de ideias, Nietzsche parece ser o único artista a ter
chegado às últimas consequências de uma estética do Absurdo,
visto que sua mensagem final reside em uma lucidez estéril e
conquistadora, e numa negação obstinada de toda consolação
sobrenatural.
O
que acima examinamos terá sido suficiente, no entanto, para mostrar
a importância capital da obra de Kafka no panorama deste ensaio. É
aos confins do pensamento humano que somos agora transportados. Dando
à palavra seu sentido pleno, pode-se dizer que nessa obra tudo é
essencial. Ela apresenta, além do mais, o problema absurdo em todos
os seus aspectos. Se quisermos, pois, reunir essas conclusões a
nossas observações iniciais, o fundo da forma, o secreto senso em O
castelo da arte natural em que se passa, a busca apaixonada e
orgulhosa de K... do cenário cotidiano em que caminha,
compreenderemos o que pode ser sua grandeza. Porque, se a nostalgia é
a marca do humano, talvez ninguém tenha dado tanto relevo e carne a
esses fantasmas do arrependimento. Mas ao mesmo tempo se perceberá
qual a singular grandeza que a obra absurda exige e que talvez não
se encontre ali. Se for próprio da arte ligar o geral ao particular,
a eternidade perecível de uma gota de água aos jogos de suas luzes,
é mais verdadeiro ainda avaliar a grandeza do escritor absurdo na
separação que ele sabe interpor entre os dois mundos. Seu segredo é
o de saber achar o ponto exato em que eles se tornam a juntar em sua
maior desproporção.
E
para dizer a verdade, os corações puros sabem ver em toda parte o
lugar geométrico do homem e do inumano. Se Fausto e Don Quixote são
eminentes criações da arte, é graças às grandezas ilimitadas que
eles nos mostram com as mãos terrenas. No entanto, há sempre aquele
momento em que o espírito nega as verdades que essas mãos podem
tocar. Sempre aquele momento em que a criação não é mais elevada
ao trágico: é apenas levada a sério. O homem, então, se ocupa de
esperança. Mas não é sua tarefa. Sua tarefa é se desviar do
subterfúgio. Ora, é ele que reencontro no fim do veemente processo
que Kafka instaura contra o universo inteiro. Seu veredicto
inacreditável absolve, para terminar, esse mundo hediondo e
desconcertante em que as próprias toupeiras se atrevem a
esperar{41}.
___________________________
{32}
Na primeira edição de O mito de Sísifo, este estudo sobre
Franz Kafka foi substituído por um capítulo que abordava
Dostoiévski e o suicídio. Foi publicado, porém, pela revista
L'Arbalète, em 1943. Reencontraremos aí, sob um outra
perspectiva, crítica da criação absurda que as páginas sobre
Dostoiévski já haviam esboçado. (N. do E.)
{33}
Deve-se notar que com a mesma legitimidade se podem interpretar as
obras de Kafka no sentido de uma crítica social (por exemplo, em O
processo). É provável, aliás, que não haja como escolher. As
duas interpretações são boas. Em termos absurdos, como vimos, a
revolta contra os homens se dirige também a Deus: as grandes
revoluções são sempre metafísicas.
{34}
Em O castelo, parece muito que os “divertimentos”, no
sentido pascaliano, são representados pelos Ajudantes, que “desviam”
K... de sua inquietação. Se Frieda acaba sendo a amante de um
desses ajudantes, é que ela prefere os cenários à verdade, a vida
cotidiana à angústia partilhada.
{35}
Isso evidentemente só vale para a versão inacabada de O castelo
que Kafka nos deixou. Mas é duvidoso que, nos últimos capítulos,
o escritor tenha rompido a unidade de tom do romance.
{36}
A pureza do coração.
{37}
A menção de Camus, de ironia justificadamente meio cáustica,
invectiva o tradicionalismo e a mediocridade satisfeita de Bordeaux
(1870-1963). (N. do T.)
{38}
Não esqueçamos, a propósito, que Malraux merece tanto essa
distinção de Camus que publicara, em 1937, cinco anos antes de O
mito de Sísifo, um romance com o próprio título de L'espoir
(A esperança): é um livro de inconformismo e de luta, em plena
Guerra Civil Espanhola. (N. do T.)
{39}
A única personagem sem esperança de O castelo é Amália. É
a ela que o agrimensor se opõe com mais violência.
{40}
Sobre os dois aspectos do pensamento de Kafka, comparar Nas galés
(“A culpabilidade – entenda-se do homem – nunca deixa
dúvidas.”) e um fragmento de O castelo – relato de Momus
(“A culpabilidade do agrimensor K... é difícil de provar.”)
{41}
O que é proposto acima é, evidentemente, uma interpretação da
obra de Kafka. Mas é justo acrescentar que nada impede de
considerá-la, à parte de qualquer interpretação, do ponto de
vista puramente estético. Por exemplo, B. Groethuysen, em seu
notável prefácio ao Procès, se limita, com mais prudência
do que nós, a acompanhar as fantasias dolorosas desse que ele chama,
de maneira surpreendente, um dormidor acordado. É o destino – e
talvez a grandeza – dessa obra oferecer tudo e não confirmar
nada.
Albert Camus, in O Mito de Sísifo – Ensaio sobre o absurdo
Nenhum comentário:
Postar um comentário