Descubro,
agora, por conseguinte, que a esperança não pode ser evitada para
sempre e que pode assaltar até aqueles que supunham estar livres
dela. É o interesse que encontro nas obras de que cuidamos até o
momento. Eu poderia, pelo menos no campo da criação, enumerar
algumas obras verdadeiramente absurdas {O Moby Dick, de
Melville, por exemplo}. Mas em tudo é necessário um começo. O
objeto desta pesquisa é uma certa fidelidade. A Igreja só tem sido
tão dura para com os hereges porque achava que não há pior inimigo
do que um filho desgarrado. Mas a história das ousadias gnósticas e
a persistência das correntes maniquéias fizeram mais, para a
construção do dogma ortodoxo, do que todas as preces. Guardadas as
devidas proporções, acontece o mesmo com o absurdo. Reconhece-se a
sua trilha descobrindo os caminhos que se afastam dele. Na própria
conclusão do raciocínio absurdo, numa das atitudes ditadas por sua
lógica, não é ocioso reencontrar a esperança insinuada ainda sob
uma de suas faces mais patéticas. Isso mostra a dificuldade da
ascese absurda. Mostra, principalmente, a necessidade de se manter
uma incessante consciência e rearticula o quadro geral deste ensaio.
Mas
se ainda não se trata de enumerar as obras absurdas, pode-se ao
menos concluir a propósito da atitude criativa, uma daquelas capazes
de completar a existência absurda. A arte só pode ser tão bem
servida por um pensamento negativo. Seus procedimentos obscuros e
humilhados são tão necessários à inteligência de uma grande obra
quanto o preto o é para o branco. Trabalhar e criar “para nada”,
esculpir com barro, saber que sua criação não tem futuro, ver sua
obra destruída em um dia, consciente de que, em profundidade, isso
não tem mais importância do que edificar para séculos – eis a
difícil sabedoria que o pensamento absurdo preconiza. Levar adiante
simultaneamente essas duas tarefas, negar de um lado e exaltar do
outro, é a trilha que se abre para o criador absurdo. Ele tem de
lançar suas cores n vazio.
Isso
leva a uma concepção particular da obra de arte. Considera-se com
bastante frequência a obra de um criador como uma sucessão de
testemunhos isolados. Confunde-se então artista e literato. Um
pensamento profundo está em contínuo devir, esposa a experiência
de uma vida e se amolda a ela. Do mesmo modo, a criação única de
um homem se fortalece nas faces múltiplas e sucessivas que são suas
obras. Umas completam as outras, corrigem-nas ou as recuperam,
contradizem-nas também. Se alguma coisa termina a criação, não é
o grito vitorioso e ilusório do artista que se cega – “Eu disse
tudo” – mas a morte do criador que encerra a sua experiência e o
liberta de seu gênio.
Esse
esforço, essa consciência sobre-humana, não aparecem
necessariamente ao leitor. Não há mistério na criação humana. A
vontade faz esse milagre. Mas pelo menos não existe verdadeira
criação sem segredo. Sem dúvida uma série de obras pode ser
apenas uma sequência de tentativas do mesmo pensamento. Mas pode-se
conceber uma outra espécie de criadores que procederiam por
justaposição. Suas obras podem parecer sem relação entre si. Em
certa medida, são contraditórias. Mas, recolocadas em seu conjunto,
recobram sua disposição. É da morte, então, que elas recebem o
sentido definitivo. Ganham o que há de mais claro em sua luz da
própria vida do seu autor. Nesse momento, a sucessão de suas obras
não passa de uma coleção de fracassos. Mas, se esses fracassos
mantêm todos a mesma ressonância, o criador soube repetir a imagem
de sua própria condição, fazer retinir o segredo estéril de que é
detentor.
O
esforço pela dominação passa a ser considerável. Mas a
inteligência humana pode ser suficiente para muito mais. Ela somente
demonstrara o aspecto voluntário da criação. Eu procuro ressaltar,
alhures, que a vontade humana não tinha outro fim que o de sustentar
a consciência. Mas isso não poderia funcionar sem disciplina. De
todas as escolas da paciência e da lucidez, a criação é a mais
eficiente. É também desconcertante testemunho da única dignidade
do homem: a revolta obstinada contra a sua condição, a perseverança
em um esforço tido como estéril. Ela exige um esforço cotidiano, o
domínio de si mesmo, a apreciação exata dos limites do verdadeiro,
a medida e a força. Constitui uma ascese. Tudo isso “para nada”,
para repetir e bater o pé. Mas talvez a grande obra de arte tenha
menos importância em si mesma do que na experiência que exige de um
homem, na oportunidade que lhe propicia para superar seus fantasmas e
chegar um pouco mais perto de sua realidade nua.
Que
não nos enganemos de estética. Não é a informação paciente, a
incessante e estéril ilustração de uma tese que eu invoco aqui.
Bem ao contrário, se me expliquei claramente. O romance de tese, a
obra que prova, a mais odiosa de todas, é a que mais frequentemente
se inspira num pensamento satisfeito. A verdade que se acredita deter
é o que se demonstra. Mas estão ali ideias que se põem em marcha e
as ideias são o contrário do pensamento. Esses criadores são
filósofos envergonhados. Aqueles de que falo ou que imagino são, ao
contrário, pensadores lúcidos. Em certo ponto em que o pensamento
se volta sobre si mesmo, eles levantam as imagens de suas obras como
os símbolos evidentes de um pensamento limitado, mortal e revoltado.
Elas
talvez provem alguma coisa. Mas essas provas os romancistas mais se
dão do que as fornecem. O essencial é que triunfam no concreto e
que é esta a sua grandeza. Esse triunfo todo carnal lhes foi
preparado por um pensamento em que os poderes abstratos foram
humilhados. Quando estes o são inteiramente, a carne no mesmo
instante faz brilhar a criação em todo o seu esplendor absurdo. São
os filósofos irônicos que fazem as obras apaixonadas.
Todo
pensamento que renuncia à unidade exalta a diversidade. E a
diversidade é o lugar da arte. O único pensamento que liberta o
espírito é aquele que o deixa só, certo de seus limites e de seu
fim próximo. Nenhuma doutrina o solicita. Ele espera o
amadurecimento da obra e da vida. Destacada dele, a primeira fará
ouvir uma vez mais a voz mal ensurdecida de uma alma para sempre
livre da esperança. Ou ela não fará ouvir nada, se o criador,
cansado de seu jogo, prefere se desviar. Dá no mesmo.
Peço
assim à criação absurda o que eu exigia do pensamento, da revolta,
da liberdade e da diversidade. Ela, em seguida, manifestará sua
profunda inutilidade. Nesse esforço cotidiano em que a inteligência
e a paixão se misturam e se arrebatam, o homem absurdo descobre uma
disciplina que formará o essencial de suas forças. A aplicação, a
tenacidade e a perspicácia necessárias redescobrem desse modo a
atitude conquistadora. Criar, assim, é dar uma forma ao seu destino.
Todos esses personagens são pelo menos tão definidos pela obra
quanto esta por eles. O comediante no-lo ensinou. Não há fronteira
entre o parecer e o ser.
Repitamo-lo:
nada disso tem sentido real. No caminho dessa liberdade há ainda um
progresso a fazer. O último esforço para esses espíritos afins,
criador ou conquistador, é o de também saber se libertar de seus
cometimentos: chegar a admitir que a própria obra, seja de
conquista, amor ou criação, pode não ser; consumir assim a
profunda inutilidade de toda a vida individual. Isso mesmo lhes dá
mais desembaraço na realização dessa obra, como a percepção da
absurdidade da vida os autorizava a mergulhar ali com todos os
excessos.
O
que resta é um destino de que só a saída é fatal. Fora dessa
única fatalidade da morte, tudo, alegria ou felicidade, está
liberto. Permanece um mundo de que o homem é o único senhor. O que
o prendia era a ilusão de um outro mundo. A inclinação de seu
pensamento não é mais a de renunciar, mas a de explodir em imagens.
Ele se representa em mitos, não há dúvida, mas mitos sem outra
profundidade que a da dor humana e, como esta, inesgotáveis. Não a
fábula divina que diverte e cega, mas o rosto, o gesto e o drama
terrenos em que se resumem uma difícil sabedoria e uma paixão sem
amanhã.
Albert Camus, in O Mito de Sísifo – Ensaio sobre o absurdo
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