sexta-feira, 13 de janeiro de 2023

A criação sem amanhã

Descubro, agora, por conseguinte, que a esperança não pode ser evitada para sempre e que pode assaltar até aqueles que supunham estar livres dela. É o interesse que encontro nas obras de que cuidamos até o momento. Eu poderia, pelo menos no campo da criação, enumerar algumas obras verdadeiramente absurdas {O Moby Dick, de Melville, por exemplo}. Mas em tudo é necessário um começo. O objeto desta pesquisa é uma certa fidelidade. A Igreja só tem sido tão dura para com os hereges porque achava que não há pior inimigo do que um filho desgarrado. Mas a história das ousadias gnósticas e a persistência das correntes maniquéias fizeram mais, para a construção do dogma ortodoxo, do que todas as preces. Guardadas as devidas proporções, acontece o mesmo com o absurdo. Reconhece-se a sua trilha descobrindo os caminhos que se afastam dele. Na própria conclusão do raciocínio absurdo, numa das atitudes ditadas por sua lógica, não é ocioso reencontrar a esperança insinuada ainda sob uma de suas faces mais patéticas. Isso mostra a dificuldade da ascese absurda. Mostra, principalmente, a necessidade de se manter uma incessante consciência e rearticula o quadro geral deste ensaio.
Mas se ainda não se trata de enumerar as obras absurdas, pode-se ao menos concluir a propósito da atitude criativa, uma daquelas capazes de completar a existência absurda. A arte só pode ser tão bem servida por um pensamento negativo. Seus procedimentos obscuros e humilhados são tão necessários à inteligência de uma grande obra quanto o preto o é para o branco. Trabalhar e criar “para nada”, esculpir com barro, saber que sua criação não tem futuro, ver sua obra destruída em um dia, consciente de que, em profundidade, isso não tem mais importância do que edificar para séculos – eis a difícil sabedoria que o pensamento absurdo preconiza. Levar adiante simultaneamente essas duas tarefas, negar de um lado e exaltar do outro, é a trilha que se abre para o criador absurdo. Ele tem de lançar suas cores n vazio.
Isso leva a uma concepção particular da obra de arte. Considera-se com bastante frequência a obra de um criador como uma sucessão de testemunhos isolados. Confunde-se então artista e literato. Um pensamento profundo está em contínuo devir, esposa a experiência de uma vida e se amolda a ela. Do mesmo modo, a criação única de um homem se fortalece nas faces múltiplas e sucessivas que são suas obras. Umas completam as outras, corrigem-nas ou as recuperam, contradizem-nas também. Se alguma coisa termina a criação, não é o grito vitorioso e ilusório do artista que se cega – “Eu disse tudo” – mas a morte do criador que encerra a sua experiência e o liberta de seu gênio.
Esse esforço, essa consciência sobre-humana, não aparecem necessariamente ao leitor. Não há mistério na criação humana. A vontade faz esse milagre. Mas pelo menos não existe verdadeira criação sem segredo. Sem dúvida uma série de obras pode ser apenas uma sequência de tentativas do mesmo pensamento. Mas pode-se conceber uma outra espécie de criadores que procederiam por justaposição. Suas obras podem parecer sem relação entre si. Em certa medida, são contraditórias. Mas, recolocadas em seu conjunto, recobram sua disposição. É da morte, então, que elas recebem o sentido definitivo. Ganham o que há de mais claro em sua luz da própria vida do seu autor. Nesse momento, a sucessão de suas obras não passa de uma coleção de fracassos. Mas, se esses fracassos mantêm todos a mesma ressonância, o criador soube repetir a imagem de sua própria condição, fazer retinir o segredo estéril de que é detentor.
O esforço pela dominação passa a ser considerável. Mas a inteligência humana pode ser suficiente para muito mais. Ela somente demonstrara o aspecto voluntário da criação. Eu procuro ressaltar, alhures, que a vontade humana não tinha outro fim que o de sustentar a consciência. Mas isso não poderia funcionar sem disciplina. De todas as escolas da paciência e da lucidez, a criação é a mais eficiente. É também desconcertante testemunho da única dignidade do homem: a revolta obstinada contra a sua condição, a perseverança em um esforço tido como estéril. Ela exige um esforço cotidiano, o domínio de si mesmo, a apreciação exata dos limites do verdadeiro, a medida e a força. Constitui uma ascese. Tudo isso “para nada”, para repetir e bater o pé. Mas talvez a grande obra de arte tenha menos importância em si mesma do que na experiência que exige de um homem, na oportunidade que lhe propicia para superar seus fantasmas e chegar um pouco mais perto de sua realidade nua.
Que não nos enganemos de estética. Não é a informação paciente, a incessante e estéril ilustração de uma tese que eu invoco aqui. Bem ao contrário, se me expliquei claramente. O romance de tese, a obra que prova, a mais odiosa de todas, é a que mais frequentemente se inspira num pensamento satisfeito. A verdade que se acredita deter é o que se demonstra. Mas estão ali ideias que se põem em marcha e as ideias são o contrário do pensamento. Esses criadores são filósofos envergonhados. Aqueles de que falo ou que imagino são, ao contrário, pensadores lúcidos. Em certo ponto em que o pensamento se volta sobre si mesmo, eles levantam as imagens de suas obras como os símbolos evidentes de um pensamento limitado, mortal e revoltado.
Elas talvez provem alguma coisa. Mas essas provas os romancistas mais se dão do que as fornecem. O essencial é que triunfam no concreto e que é esta a sua grandeza. Esse triunfo todo carnal lhes foi preparado por um pensamento em que os poderes abstratos foram humilhados. Quando estes o são inteiramente, a carne no mesmo instante faz brilhar a criação em todo o seu esplendor absurdo. São os filósofos irônicos que fazem as obras apaixonadas.
Todo pensamento que renuncia à unidade exalta a diversidade. E a diversidade é o lugar da arte. O único pensamento que liberta o espírito é aquele que o deixa só, certo de seus limites e de seu fim próximo. Nenhuma doutrina o solicita. Ele espera o amadurecimento da obra e da vida. Destacada dele, a primeira fará ouvir uma vez mais a voz mal ensurdecida de uma alma para sempre livre da esperança. Ou ela não fará ouvir nada, se o criador, cansado de seu jogo, prefere se desviar. Dá no mesmo.
Peço assim à criação absurda o que eu exigia do pensamento, da revolta, da liberdade e da diversidade. Ela, em seguida, manifestará sua profunda inutilidade. Nesse esforço cotidiano em que a inteligência e a paixão se misturam e se arrebatam, o homem absurdo descobre uma disciplina que formará o essencial de suas forças. A aplicação, a tenacidade e a perspicácia necessárias redescobrem desse modo a atitude conquistadora. Criar, assim, é dar uma forma ao seu destino. Todos esses personagens são pelo menos tão definidos pela obra quanto esta por eles. O comediante no-lo ensinou. Não há fronteira entre o parecer e o ser.
Repitamo-lo: nada disso tem sentido real. No caminho dessa liberdade há ainda um progresso a fazer. O último esforço para esses espíritos afins, criador ou conquistador, é o de também saber se libertar de seus cometimentos: chegar a admitir que a própria obra, seja de conquista, amor ou criação, pode não ser; consumir assim a profunda inutilidade de toda a vida individual. Isso mesmo lhes dá mais desembaraço na realização dessa obra, como a percepção da absurdidade da vida os autorizava a mergulhar ali com todos os excessos.
O que resta é um destino de que só a saída é fatal. Fora dessa única fatalidade da morte, tudo, alegria ou felicidade, está liberto. Permanece um mundo de que o homem é o único senhor. O que o prendia era a ilusão de um outro mundo. A inclinação de seu pensamento não é mais a de renunciar, mas a de explodir em imagens. Ele se representa em mitos, não há dúvida, mas mitos sem outra profundidade que a da dor humana e, como esta, inesgotáveis. Não a fábula divina que diverte e cega, mas o rosto, o gesto e o drama terrenos em que se resumem uma difícil sabedoria e uma paixão sem amanhã.

Albert Camus, in O Mito de Sísifo Ensaio sobre o absurdo

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