quarta-feira, 4 de janeiro de 2023

A Criação Absurda | Filosofia e romance

Kirílov

Todos os heróis de Dostoiévski se interrogam sobre o sentido da vida. É nisso que eles são modernos: não temem o ridículo. O que distingue a sensibilidade moderna da sensibilidade clássica é que esta se nutre de problemas morais e aquela de problemas metafísicos. Nos romances de Dostoiévski a questão é apresentada com uma tal intensidade que só pode levar a soluções extremas. A existência é mentirosa ou ela é eterna. Se Dostoiévski se satisfizesse com esse exame, seria filósofo. Mas ele ilustra as consequências que esses jogos do espírito podem ter numa vida humana e é nisso que ele é artista. Entre tais consequências, é a última que o retém aquela que ele próprio, no Diário de um escritor, chamou de suicídio lógico. Nas folhas já prontas em dezembro de 1876 ele de fato imagina o raciocínio do “suicídio lógico”. Persuadido de que a existência humana é uma perfeita absurdidade para quem não tem a fé na imortalidade, o desesperado chega às seguintes conclusões:
Uma vez que, às minhas questões a respeito da felicidade, ele me declarou em resposta, por intermédio da minha consciência, que eu não posso ser feliz de outra maneira senão nessa harmonia com o grande todo, que não concebo e não estarei nunca em estado de conceber, evidentemente (...)”
(...) Uma vez que, enfim, nessa ordem das coisas, assumo ao mesmo tempo o papel da acusação e o da defesa, do réu e do juiz, e uma vez que acho essa comédia por parte da natureza inteiramente estúpida e que até considero humilhante da minha parte aceitar trabalhar nela (...)”
Na minha qualidade indiscutível de acusador e defensor, de juiz e réu, condeno essa natureza que, com uma tão impudente sem-cerimônia, me fez nascer para sofrer – eu a condeno a ser aniquilada junto comigo.”
Há ainda um ponto de humor nessa posição. Esse suicida se mata porque, no plano metafísico, ele está vexado. Em certo sentido, ele se vinga. É a sua maneira de provar que “não o apanharão”. Sabe-se, porém, que o mesmo tema se encarna, mas com a amplitude mais admirável, em Kirílov, personagem de Os possessos, outro partidário do suicídio lógico. O engenheiro Kirílov declara em algum lugar que quer acabar com a vida porque “é sua ideia”. Entende-se bem que é preciso tomar a palavra na acepção apropriada. É por uma ideia, um pensamento que ele se prepara para a morte. É o suicídio superior. Progressivamente, ao longo de muitas cenas em que a máscara de Kirílov se aclara pouco a pouco, o pensamento mortal que a anima nos é exposto. O engenheiro, de fato, retoma os raciocínios do Diário. Sente que Deus é necessário e que é preciso demais que ele exista. Mas sabe que ele não existe e que não pode existir. “Como você não compreende”, exclama, “que aí existe uma razão suficiente para se matar?” Essa atitude acarreta igualmente para ele algumas das consequências absurdas. Ele aceita, por indiferença, deixar utilizar seu suicídio em proveito de uma causa que despreza. “Esta noite decidi que isso não me importava.” Prepara o gesto, afinal, com um sentimento mesclado de revolta e liberdade: “Vou me matar para afirmar a minha insubordinação, a minha nova e terrível liberdade.” Não se trata mais de vingança, mas de revolta. Kirílov, portanto, é um personagem absurdo – com essa reserva essencial, todavia, de que se mata. Mas ele próprio explica essa contradição, e de tal modo que revela ao mesmo tempo o segredo absurdo em toda a sua pureza. Acrescenta realmente à sua lógica mortal uma ambição extraordinária que dá ao personagem toda a sua perspectiva: quer se matar para virar deus.
O raciocínio é de uma clareza clássica. Se Deus não existe, Kirílov é deus. Se Deus não existe, Kirílov deve se matar. Kirílov, portanto, deve se matar para ser deus. Essa lógica é absurda, mas é o que se precisa. Todavia, o interessante é dar um sentido a essa divindade reconduzida à terra. Isso volta a esclarecer a premissa: “Se Deus não existe, eu sou deus”, que ainda fica bastante obscura. É importante observar, antes de tudo, que o homem que apregoa essa pretensão insensata é bem deste mundo. Faz ginástica todas as manhãs para cuidar da saúde. Comove-se com a alegria de Chátov reencontrando a mulher. Num papel que se acha depois de sua morte, pretende desenhar uma figura que “lhes” bota a língua de fora. É pueril e colérico, apaixonado, metódico e sensível. Do super-homem só tem a lógica e a ideia fixa, do homem todo o registro. É ele, no entanto, que fala tranquilamente de sua divindade. Não é louco, ou então Dostoiévski o é. Não é pois uma ilusão de megalômano que o agita. E tomar as palavras no sentido próprio seria ridículo, desta vez.
O próprio Kirílov nos ajuda a compreender melhor. Sobre um problema de Stavróguin ele esclarece que não fala de um deus homem. Poderíamos pensar que é pela preocupação de se distinguir do Cristo. Mas trata-se, na verdade, de anexá-lo. Kirílov efetivamente imagina um momento em que Jesus, morrendo, não se tornou a achar no paraíso. Descobriu, então, que sua tortura tinha sido inútil. “As leis da natureza”, diz o engenheiro, “fizeram o Cristo viver no meio da mentira e morrer por uma mentira”. Apenas nesse sentido, Jesus encarna claramente todo o drama humano. É o homem-perfeito, sendo o que realizou a condição mais absurda. Não é o deus-homem, mas o homem-deus. Como ele, cada um de nós pode ser crucificado e ludibriado – e o é, numa certa medida.
A divindade de que se trata é, portanto, completamente terrena. “Procurei durante três anos”, diz Kirílov, “o atributo da minha divindade e o encontrei. O atributo da minha divindade é a minha independência”. Percebe-se, daí em diante, o sentido da premissa kiriloviana: “Se Deus não existe, eu sou deus.” Tornar-se deus é apenas ser livre sobre esta terra, não servir um ser imortal. É sobretudo, indiscutivelmente, extrair todas as consequências dessa dolorosa independência. Se Deus existe, tudo depende dele e nós nada podemos contra a sua vontade. Se não existe, tudo depende de nós. Para Kirílov, como para Nietzsche, matar Deus é converter-se a si próprio em deus – é realizar nesta terra a vida eterna de que falam os Evangelhos{26}.
Mas se esse crime metafísico é suficiente à realização do homem, por que acrescentar aí o suicídio? Por que se matar, deixar este mundo após ter conquistado a liberdade? Isso é contraditório. Kirílov bem o sabe, acrescentando: “Se você sente isso, você é um czar e, longe de se matar, viverá no auge da glória.” Mas os homens não o sabem, não sentem “isso”. Como no tempo de Prometeu, alimentam neles esperanças cegas{27}. Têm necessidade de que se lhes mostre o caminho e não podem abrir mão da pregação. Kirílov, portanto, deve se matar por amor da humanidade. Deve mostrar a seus irmãos uma estrada real e difícil na qual ele será o primeiro. É um suicídio pedagógico. Kirílov, portanto, se sacrifica. Mas, se ele for crucificado, não será ludibriado. Permanece homem-deus, convencido de uma morte sem futuro, impregnado da melancolia evangélica. “Eu”, afirma, “sou infeliz porque sou obrigado a afirmar minha liberdade”. Mas com ele morto, os homens finalmente esclarecidos, esta terra se povoará de czares e se iluminará da glória humana. O tiro de pistola de Kirílov será o sinal da última revolução. Não é, assim, o desespero que o impele à morte, mas o amor ao próximo como a si mesmo. Antes de encerrar com sangue uma indizível aventura espiritual, Kirílov tem uma palavra tão velha quanto o sofrimento dos homens:
Está tudo bem.”
Esse tema do suicídio em Dostoiévski é então claramente um tema absurdo. Observemos apenas, antes de ir mais longe, que Kirílov repercute em outros personagens que implicam eles próprios novos temas absurdos. Stavróguin e Ivã Karamázov experimentam na vida prática o exercício de verdades absurdas. São eles que a morte de Kirílov liberta. Tentam ser czares. Stavróguin leva uma vida “irônica”, sabe-se bem qual. Faz-se erguer o ódio em torno dele. E, no entanto, a palavra-chave desse personagem está em sua carta de despedida: “Eu não pude detestar nada.” É czar na indiferença. Ivã também o é, recusando-se a abdicar os poderes reais do espírito. Àqueles que, como seu irmão, provam com sua vida que é preciso humilhar-se para crer, poderia responder que a condição é indigna.
Sua palavra-chave é o “Tudo é, permitido”, com o toque de tristeza que lhe convém. E claro que, como Nietzsche, o mais célebre dos assassinos de Deus, ele acabou na loucura. Mas é um risco que se corre e, diante desses fins trágicos, a propensão essencial do espírito absurdo é a de perguntar: “O que é que isso prova?”
Desse modo os romances, como o Diário, apresentam a questão absurda. Implantam a lógica até a morte, a exaltação, a liberdade “terrível”, a glória dos czares tornada inumana. Tudo está bem, tudo é permitido e nada é detestável: são julgamentos absurdos. Mas que prodigiosa criação aquela em que esses seres de fogo e gelo nos parecem tão familiares! O mundo apaixonado da indiferença que resmunga no fundo do coração não nos parece em nada monstruoso. Reencontramos aí nossas angústias cotidianas. E sem dúvida ninguém, como Dostoiévski, soube dar ao mundo absurdo sortilégios tão próximos e tão supliciantes.
No entanto, qual é a sua conclusão? Duas citações mostrarão o completo desabamento metafísico que leva o escritor a outras revelações. Como o raciocínio do suicida lógico provocou alguns protestos dos críticos, Dostoiévski, nas folhas do Diário que aprontou em seguida, desenvolve sua posição e conclui: “Se a fé na imortalidade é tão necessária ao ser humano (que sem ela chega a ponto de se matar), é porque ela é o estado normal da humanidade. Visto que isso acontece, a imortalidade da alma humana existe sem dúvida nenhuma.” Além disso, nas últimas páginas de seu último romance ao fim dessa gigantesca batalha com Deus, umas crianças perguntam a Aliócha: “Karamázov, é verdade o que diz a religião, que ressuscitaremos dentre os mortos, que nos reveremos uns aos outros?” E Aliócha responde: “Claro, nós nos reveremos e nos contaremos de novo, alegremente, tudo o que se passou.”
Assim Kirílov, Stavróguin e Ivã são vencidos. Os Karamázovi respondem a Os possessos e trata-se mesmo de uma conclusão. O caso Aliócha não é ambíguo como o do príncipe Míchkin. Enfermo, este último vive num perpétuo presente, matizado de sorrisos e indiferença, e esse estado de bem-aventurança poderia ser a vida eterna de que fala o príncipe. Aliócha, ao contrário, bem o diz: “Nós nos reencontramos.” Não é mais uma questão de suicídio e de loucura. Com que proveito, para quem está certo de imortalidade e de suas alegrias? O homem faz a troca de sua dignidade pelo ser feliz. “Nós nos contaremos de novo, alegremente, tudo o que se passou.” Ainda assim, a pistola de Kirílov ressoou em algum lugar da Rússia, mas o mundo continuou a rolar suas cegas esperanças. Os homens não compreenderam “isso”.
Não é pois um romancista absurdo que nos fala, mas um romancista existencial. Ainda aqui o salto é comovedor, dá a sua grandeza à arte que o inspira. É uma adesão tocante, repleta de dúvidas, incerta e ardente. Falando dos Karamázovi, Dostoiévski escrevia: “A principal questão a ser perseguida em todas as partes desse livro é aquela mesma com que sofri, consciente ou inconscientemente, em toda a minha vida: a existência de Deus.” É difícil acreditar que um romance tenha bastado para transformar em certeza feliz o sofrimento de uma vida inteira. Um estudioso{28} o assinala com razão: Dostoiévski está mais ligado à parte de Ivã e os capítulos afirmativos dos Karamázovi lhe tomaram três meses de trabalho enquanto o que ele chamava “as blasfêmias”! foram compostas em três semanas e em exaltação. Não há sequer um de seus personagens que não traga esse espinho na carne, que não o exaspere ou que não busque um remédio para isso nos sentidos ou na imortalidade{29}. Demoremo-nos, em todo o caso, nessa dúvida. Eis uma obra em que, num claro-escuro mais impressionante que a luz do dia, podemos acompanhar a luta do homem contra suas esperanças. No fim da linha, o criador escolhe em desfavor de seus personagens. Tal contradição nos permite, desse modo, inserir uma gradação. Não é de uma obra absurda que tratamos, mas de uma obra que apresenta o problema absurdo.
A resposta de Dostoiévski é a humilhação à “vergonha” conforme Stavróguin. Uma obra absurda, ao contrário, não oferece resposta, eis aí toda a diferença. Observemo-lo bem, para terminar: o que contradiz o absurdo nessa obra não é o seu caráter cristão, mas o anunciar a vida futura. Pode-se ser cristão e absurdo. Há exemplos de cristãos que não creem na vida futura. A respeito da obra de arte, seria possível, portanto, precisar uma das direções da análise absurda que se pôde pressentir nas páginas precedentes. Ela leva a se propor “a absurdidade dos Evangelhos”. Ela aclara essa ideia, fértil em desdobramentos, de que as convicções não impedem a incredulidade. Vê-se bem, ao contrário, que o autor de Os possessos, familiarizado com esses caminhos, enveredou, no final, por outro muito diferente. A surpreendente resposta do criador a seus personagens, de Dostoiévski a Kirílov, pode realmente ser assim resumida: a existência é mentirosa e ela é eterna.

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{27} “O homem só resolveu inventar Deus para não se matar. Eis aí o resumo da história universal até o momento”.
{28} Bóris de Schloezer.
{29} Observação curiosa e penetrante de Gide: todos os heróis de Dostoiévski são polígamos.

Albert Camus, in O Mito de Sísifo – Ensaio sobre o absurdo

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