Camila
era a mais velha de três irmãs. Na época devia ter uns onze anos,
mas eu a via com uns quarenta e três. Subia no micro-ônibus com
certa dificuldade, carregando uma mochila imensa da Barbie (que vinha
com uma lancheira acoplada, com os mesmos desenhos), mas para mim era
como se ela ostentasse toda manhã, dependurados nos ombros, um
apartamento próprio com criadagem fazendo bolos variados e uma casa
na praia com súditos sexuais. Eu tinha medo dela e a respeitava
muito.
Eram
irmãs “sofridas”. O pai morrera de câncer fazia pouco menos de
um ano. As duas mais novas eram apenas tristinhas. Mas no coração
da Camila havia ódio. Ela estava naquela fase não passiva e muito
nobre conhecida como “raiva do mundo”, e eu achava uma coisa
bonita de ver. Ela quebrava o pau na aula de religião, “sabia que
a Bíblia era a favor dos escravos?”, e eu vibrava por dentro.
Uma
vez, na aula de geografia, ao ser repreendida por não ter feito o
dever de casa (desenhar rios numa folha de papel-manteiga: a
lembrança mais horrenda que tenho dos tempos de escola), ela
respondeu (tão amarga, tão machucada, tão protagonista de um
seriado dramático para adolescentes): “meu pai me ajudava a fazer
essas coisas, mas ele morreu”. E todas as crianças
instantaneamente olharam para a professora: “sai dessa agora,
fofa”. Para que Camila precisava saber o nome da porra de um rio no
Pará se a sua vida era uma escura água desenfreada que não
desembocava em lugar nenhum? No fundo dos seus olhos dava para ver
uma areiazinha movediça. Era uma garota com angústia latente e
infinita, afundando em seu lodo pessoal e intransponível. Foi quando
pensei: “é essa!”.
Desde
que entrei naquela escola, aos sete anos, eu sonhava em ter uma amiga
que me entendesse. Alguém a quem pudesse falar coisas como “você
acorda com medo, chora no banho, pensa em vomitar, unha um pouco a
palma das mãos e pergunta como será a vida daqui a quarenta anos se
você continuar assim?”. Mas eu já devia estar com uns dez anos, e
nada. Arrumava amigas para trocar papel de carta, brincar “de
elástico”, dividir um salgadinho Ebicen de camarão. Mas, para
falar do quanto eu me sentia esquisita e apavorada, não arrumava
ninguém.
Arrisquei
uma vez com a Paula, mas ela arrotou suco de melancia na minha cara.
Tentei com a Dani, mas ela me perguntou se era porque “nenhum
menino olhava pra mim”. Tentei com o Felipe, um gordinho da minha
sala que sofria de enjoos (cheguei mesmo a amar esse garoto, eu
achava que aqueles enjoos significavam que éramos almas gêmeas),
mas ele me disse que não estava entendendo nada e que eu era feia
demais e que nenhum cara do New Kids on the Block ia querer me
beijar.
Minha
esperança crescia dia a dia em relação a Camila. Na aula de
português, estávamos aprendendo “descrição” e a professora
botou um vaso lá na mesa dela. A redação de todos era aquela
chatice de “pequeno, azul, bonito, com uma flor”. Quando chegou a
minha vez, lembro da professora Celina pondo as mãos na frente da
boca, num misto de espanto e alegria. Eu tinha escrito: “longe,
velho, acinzentado e com saudade”. A classe inteira riu
despudoradamente da minha cara, menos Camila. Camila me olhou com
profundidade e, na minha fantasia urgente, chegou a sorrir para mim.
Então,
uma quinta-feira, durante a “queimada” (ainda existe esse crime
nas escolas? Consistia em tacar a bola com toda a força num
coleguinha que não estivesse atento ao jogo: eu. Mas àquela altura
eu já tinha aprendido o macete da “pouca destreza física” e
pedia dispensa da terrível aula de educação física me utilizando
de um atestado de prolapso da válvula mitral), tomei coragem e fui
falar com a Camila. Assim como eu, ela estava liberada dessas aulas.
Quis
saber se era medo de levar bolada; obviamente, não era. Ela estava
“de castigo” porque dava boladas muito fortes nos outros. Eu
precisava mentir que tinha sopro (e tinha mesmo, mas quem não tem?),
já ela fora “convidada a sair pra aprender a se conter”. Que
mulher! Respirei fundo, e saiu: “amanhã, na hora do recreio, vamos
conversar?”.
Mal
acabei de falar, me arrependi. Nada daquilo fazia o menor sentido,
pois, se eu já estava conversando com ela! Que falasse logo! Mas ela
não me colocou nessa posição desconfortável, não ficou me
exigindo lógica, como fazia de forma cruel com os professores, não
esfregou sua melancolia e dura realidade na minha cara sempre
disforme por uma coriza alérgica que dura até hoje. Ela topou.
“Tudo bem, amanhã na hora do recreio, em frente à lanchonete, daí
eu te pago.” E foi logo estendendo as mãozinhas e pedindo: “me
empresta trinta preu comprar um lanche, amanhã eu pago o seu”.
Então era isso? Melhores amigas forever a ponto de “um dia eu pago
o dela, no outro ela paga o meu!?”. Já era oficial, então: eu
nunca mais me sentiria sozinha.
No
dia seguinte, na hora do recreio, percebi que existiam duas “frentes
da lanchonete”. A frente de quem vinha da direita e a frente de
quem vinha da esquerda. Achei um ângulo de onde pudesse
supervisionar, evitando piscar os olhos, as duas frentes. Lá fiquei
uma hora, sem comer, sem beber, sem fazer xixi. Esperando a Camila,
esperando minha primeira conversa realmente legal com alguém que me
entenderia. Só arredei o pé da frente da lanchonete quando, dez
minutos depois do sinal, uma espécie de “supervisor do recreio”
me puxou pelos braços. Ele era engraçado, gordo, gente boa, “vâmu,
moça, coragem!”. Eu não podia acreditar que minha musa do
desalento, minha rainha do pesar, tinha feito aquilo comigo.
Vinte
e cinco anos depois, num jantar na casa de um amigo diretor de
cinema, sentei ao lado de Contardo Calligaris. Lembro de sentir algo
parecido com o que vivi com Camila. Talvez ele pudesse me dizer
alguma coisa sobre “você acorda com medo, chora no banho, pensa em
vomitar, unha um pouco a palma das mãos e pergunta como será a vida
daqui a quarenta anos se você continuar assim?”. Dessa vez, porque
afinal de contas eu já era adulta e, por fim, pertencia à tal de
“hora do recreio ao lado de alguém que possa me entender”, fui
bem direta. Ele tirou com muita elegância uma espinha de peixe,
colocou com muita elegância na beiradinha do prato, e com muita
elegância me disse: “leva um chocolatinho na bolsa”.
Tati Bernardi, in Depois a louca sou eu
Nenhum comentário:
Postar um comentário