Era
um marinheiro, um pequeno marinheiro com sua blusa de gola e seu
gorro, na rua deserta que a madrugada já fazia lívida. Talvez não
fosse tão pequeno, a solidão da rua é o que fazia menor entre os
altos edifícios.
Aproximou-se
de uma grande porta e bateu com os nós dos dedos. Ninguém abriu.
Depois de uma pausa, voltou a bater. Eu o olhava de longe e do alto,
do fundo de uma janela escura, e ainda que voltasse a vista para mim
ele não poderia me ver. Esperei que a grande porta se abrisse e ele
entrasse; ele também esperava, imóvel. Quando bateu novamente, foi
com um punho cerrado; depois com os dois — e com tanta força que o
som chegava até mim. Chegava uma fração de segundo depois de seu
gesto; assim na minha infância eu via as lavadeiras baterem roupa
nas pedras do outro lado do rio, e só um instante depois ouvia o
ruído.
Essa
recordação da infância me fez subitamente suspeitar que ô
marinheiro fosse meu filho, e essa ideia me deu um pequeno choque. Se
fosse meu filho eu não poderia estar ali, no escuro, assistindo
impassível àquela cena. Eu deveria me reunir a ele, e bater também
à grande porta; ou telefonar para que alguém lá dentro abrisse, ou
chamar outras pessoas — a imprensa, deputados da oposição,
bombeiros, o Pronto-Socorro, que sei eu.
Fosse
o que fosse que houvesse lá dentro, princesa adormecida ou um animal
ganindo em agonia, seria urgente abrir. Caso necessário eu
telefonaria para o Presidente da República e para o Cardeal e faria
divulgar um apelo pelo rádio: quem dispusesse de um aríete deveria
trazê-lo imediatamente, e estou seguro de que os atletas do Flamengo
não se negariam a cooperar; aliás eu aceitaria a ajuda de homens de
bem de outros clubes, notadamente do Botafogo, pois naquele momento
não deveria haver distinção entre brasileiros.
Essas
ideias risíveis me passaram pela cabeça com uma grande rapidez,
pois quase imediatamente depois de pensar que o marinheiro poderia
ser meu filho, me veio a suspeita de que era eu mesmo; talvez lá
dentro, no bojo do imenso prédio, estivesse estirada numa rede, meio
inconsciente, minha impassível amada, talvez doente, talvez sonhando
um sonho triste, e eu precisaria estar a seu lado, segurar sua mão,
dizer uma palavra de tão profunda ternura que a fizesse sorrir e a
pudesse salvar.
Cansado
de bater inutilmente, o marinheiro recuou vários passos e ergueu os
olhos para a porta e para a fachada do edifício, como alguém que
encara outra pessoa pedindo explicações. Ficou ali, perplexo e
patético, e assim olhando para o alto, me parecia ainda menor sob
seu gorro, onde deveria estar escrito o nome de um desconhecido
navio. Olhava. A fachada negra permaneceu imóvel perante seu olhar,
fechada, indiferente. Caía uma chuva fina, na antemanhã filtrava-se
uma débil luz pálida.
Vai-te
embora, marinheiro! Onde estão teus amigos, teus companheiros?
Talvez do outro lado da cidade, bebendo vinho grosso em ambiente de
luz amarela, entre mulheres ruivas, cantando... Vai-te embora,
marinheiro! Teu navio está longe, de luzes acesas, arfando ao embalo
da maré; teu navio te espera, pequeno marinheiro...
Quando
ele seguiu lentamente pela calçada, fiquei a olhá-lo de minha
janela escura, até perdê-lo de vista. A rua sem ele ficou tão
vazia que de súbito me veio a impressão de que todos os habitantes
haviam abandonado a cidade e eu ficara sozinho, numa absurda e
desconhecida sala de escritório do centro, sem luz, sem saber por
que estava ali, nem o que fazer.
Sentia,
entretanto, que estava prestes a acontecer alguma coisa.
Olhei
a fachada escura do prédio em que ele tentara entrar. Olhei...
Então
lá dentro todas as luzes se acenderam, e o edifício ficou maior que
todos na rua escura; sua fachada oscilou um pouco; alguma coisa
rangeu, houve rumores vagos, e o prédio começou a se mover
pesadamente como um grande navio negro — e, lentamente, partiu.
Mas
suas luzes estavam acesas; e eu senti confusamente que, estirada em
sua rede, minha triste amada receberia bem cedo a brisa do mar, e
despertaria, e se sentiria feliz em viajar para muito, muito longe,
feliz, sem pensar em mim, sem precisar de mim.
Rubem Braga, in A traição das elegantes
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