Assim esteve Deus, para mim: primeiro, ausente; depois, desaparecido.
Fulano
Malta
– Não
é que esteja errada, estou é mal corrigida. A Avó insiste. Desde
que saímos de casa que vai teclando o mesmo: é domingo e ela não
quer ser tratada como inválida. Na realidade, apesar do volume e da
idade, Dulcineusa vai seguindo ao meu lado, marcha acertada no meu
lento andamento.
– Em
velho, é o que mais tememos: a queda! Não é a queda no escuro da
cova. Mas o cair no próprio passo, como se o osso já obedecesse à
convocatória do chão.
– É
por isso que ando assim, a soletrar a perna. Veste de preto. Não é
apenas agora por motivo de luto. Vestuário escuro é o que ela
sempre enverga quando sai à rua. Desde há anos que o universo dela
se divide, simples: a casa e a igreja. Sempre que lhe dizem que vai
sair, ela se arranja para a missa.
Hoje
acordou insistindo que era domingo. Concedi o dia de mão beijada.
Que importância tinha? Dulcineusa tinha sido educada em igreja. O
que a fazia crer não era o que o padre falava. Mas porque ele falava
cantando. Alguém mais fala cantando? Algum branco o fazia? O Padre
Nunes era o único. Cantava, e quando cantava, no recinto da igreja,
em coro e com eco, aquilo era tudo verdade. E isso lhe dava remédio.
– A
cruz, por exemplo, sabe o que me parece? Uma árvore, um canhoeiro
sagrado onde nós plantamos os mortos.
A
palavra que usara? Plantar. Diz-se assim na língua de Luar-do-Chão.
Não é enterrar. É plantar o defunto. Porque o morto é coisa viva.
E o túmulo do chefe de família como é chamado? De yindlhu, casa.
Exactamente a mesma palavra que designa a moradia dos vivos. Talvez
por isso não seja grande a diferença entre o Avô Mariano estar
agora todo ou parcialmente falecido.
Passamos
pelo administrador da Ilha. A Avó pára, suspende-se sobre uma perna
como se fosse ajoelhar. Embaraçado, o administrador diz: – Dona
Dulcineusa, eu já disse para não fazer isso! – Sim, senhor
administrador. Por favor, não me bata, eu não tenho idade para
palmatória! O administrador sacode a cabeça. Ele não acredita que
se trate de demência. Pensa que se trata de chacota com intenção
política bem determinada: Dulcineusa faz de conta que o confunde com
o administrador colonial. Apressadamente o governante atravessa a
rua, antes que se juntem os curiosos.
A
Avó não deixa nunca de falar, convencendo-me de que não há, na
nossa família, quem detenha mais juízo. O que ela quer dizer é que
devo apoiá-la na sua luta maior: que o moribundo seja abençoado
pela religião católica. E que o padre tome conta dos restantes
preceitos e cerimónias. Afinal, o encomendado caixão ainda está
lá, em casa, à espera do corpo e da derradeira bendição.
É
por isso que vamos tomar palavra com o Padre Nunes, que há mais de
trinta anos presta serviço na Ilha. Não posso imaginar Luar-do-Chão
sem a sua serena presença, como se ele fosse já essência do nosso
lugar.
Quando
entro na igreja entendo melhor a insistência da Avó. Em contraste
com a decadência do bairro, a igreja está pintada, mantida, e até
um pequeno jardim envaidece a cercania. É o mais antigo dos
edifícios, um templo contra o tempo. Num mundo de dúvidas, onde
tudo se desmorona, a igreja surge como a memória mais certa e
permanente.
Padre
Nunes saúda-me com seu modo fraterno, suas falas mansas. Os “esses”
se arredondam em “xis” e o idioma se torna mais doce. Aquele
sossego no interior da igreja sempre produziu em mim o mesmo
instantâneo efeito: uma enorme sonolência. Nunca pude ceder a essa
vontade de me deitar e ali dormir dias a fio. Não será agora que
cumprirei esse desejo. O padre me conduz à sacristia enquanto a Avó
vai rezando junto ao altar.
– Os
estudos, Mariano? É o primeiro a querer saber do que faço na
cidade. Foi ele quem me baptizou, ele me ajudou nas primeiras
leituras. Nunes é como que um tio para além da família, da raça e
da crença.
– E
como está o teu pai? Pergunta-me antes de eu responder à sua
primeira questão. Ele sabe que meu pai há muito que perdeu fé no
deus dos católicos. Para ele era claro: Fulano tinha a sua fé
exclusiva, fizera uma igreja dentro de si mesmo.
– Teu
pai lutou para que fôssemos todos ricos, partilhando essa grande
riqueza que é, simplesmente, não haver pobreza.
Tinham
tido sérias desavenças. No entanto, ninguém para ele merecia maior
respeito em toda a Ilha. Na altura em que meu pai decidiu juntar-se à
guerrilha, o Padre Nunes foi chamado pela família a pedido de
Dulcineusa. O português pediu a meu pai que reconsiderasse. Mas
fazia-o a contragosto. É isso que agora me confessa: na altura, lhe
apeteceu estar no lugar de Fulano Malta. Uma secreta inveja o roía
por dentro. Queria ser ele a partir, a romper com tudo, em trânsito
para um outro ser. Não era que concordasse com os ideais de Fulano.
Estava era cansado. A injustiça não podia ser mando divino. E a sua
instituição se acomodara tanto, que parecia ajoelhar-se mais
perante os poderosos que perante Deus.
– Imagino
quanto teu pai sofre a ver tudo o que está acontecer.
Mas
a miséria em Luar-do-Chão era, para o sacerdote, somente uma
antevisão do que iria acontecer com as nações ricas. A violência
dos atentados nas grandes capitais? Para ele era apenas um presságio.
Não era só gente inocente que morria. Era o colapso de todo um modo
de viver. Pena era não haver uma crença para onde fugir, como
fizera Fulano Malta há vinte anos.
– Mas
não tem esperança, padre? – Se disser que não tenho esperança
como é que posso manter crença em Deus? Baixa os olhos como se
fechasse a conversa. Levanta-se e mostra-me o caminho para irmos ter
com Dulcineusa. Um cheiro estranho me invade o peito. Um eflúvio de
bicho, tenho quase receio em reconhecer.
– Não
vos cheira a animal? A Avó não permite a resposta. Interpela o
Padre Nunes: – Posso pedir para extremar a unção em Dito Mariano?
– Isso eu já fiz, Dona Dulcineusa. Não se recorda? – É melhor
passar os óleos mais uma vez. Uma segunda demão. O senhor padre não
conhece o meu marido. Aquele não é de olear facilmente.
O
padre sorri para mim, indulgente. A Avó aponta uma vela sobre o
parapeito: – Esta acendi agora para o meu defunto marido.
– Mas,
afinal, confirma-se que ele já morreu? Ficava como prevenção,
responde a Avó. Para acordar o anjo da guarda. O padre sorri. Sabia
Dulcineusa o que seu marido sempre dizia? Pois ele passava a vida
repetindo: – O meu anjo, felizmente, nunca me guardou. Nunes sabia
que as rezas do nosso patriarca nunca foram voltadas para nenhum
deus. Ou talvez tivesse outros deuses só dele. Essas divindades, de
qualquer modo, deveriam ser bonitas. Que não o abandonavam nesse
período em que ele se suspendia entre a vida mortal e a vida
imortal.
Nos
retiramos quando, de supetão, dou de caras com um burro. Salto, de
susto, ante o inesperado da visão. O que fazia uma alimária no
recinto sagrado das almas? Estava explicada a origem do cheiro que
ainda há pouco senti. O padre desafia-me: – Dou-lhe um prémio se
o conseguir tirar daqui.
Nem
faço tenção. O burro me contempla com seus olhos de água
empoçada. Havia tal quietude naquele olhar que fiquei em dúvida se
a igreja seria, afinal, sua natural moradia.
– A
tua avó te explica, depois, os motivos da presença deste burro.
À
porta da igreja nos despedimos de Nunes. Ele me saúda, à maneira do
lugar, volte ando a mão em redor do polegar.
– Vou
de férias, saio amanhã – anuncia. E lendo o meu rosto, adianta: –
Também temos férias.
– Entendo
que esteja cansado.
O
que mais o fatigava não eram os afazeres religiosos. Era o
desrespeito pela vida, pelos homens. Como fora esse caso em que um
barco naufragara e morreram dezenas de pessoas.
– O
quanto sofremos nós nesse dia, lembra,Dulcineusa? – Nem fale,
senhor padre.
– E
ainda está preocupada que eu não encaminhe a alma do velho Mariano?
Não esqueça desses, tantos, que não tiveram enterro.
– É
assim a ganância, padre: uns possuem, outros são possuídos pelo
dinheiro.
Dulcineusa
já me havia falado desse barco que afundara, a poucos minutos de ter
saído do cais, sobrecarregado de pessoas, madeiras e mercadorias. O
padre tinha escrito para o jornal a denunciar os responsáveis. A
partir desse dia, ele passou a receber ameaças. Acusavam-no de ser
branco, de ser racista, de não se ater a suas obrigações
religiosas. Isso provocara nele um cansaço de que nunca se iria
restabelecer. Sua voz é frágil quando me indaga: – E tu, Ma ria
no, vais ficar por aqui? Que remédio, me apeteceu responder. Pode-se
dar férias ao parentesco? Em silêncio, olho em volta.
Cercado
pelo sossego da pequena igreja me apetecia, naquele momento, deixar
de ser filho, neto, sobrinho. Deixar de ser gente. Suspender o
coração como quem pendura um casaco velho. Fazer como o velho
Mariano. Ou ficar por ali, suspenso no sossego da igrejinha, fazendo
companhia ao burrico. Dulcineusa me apressa: – Vamos, que o seu Avô
está lá sozinho.
Lhe
ofereço o ombro para ela se apoiar enquanto vai vencendo os degraus.
Por nós passa o tractor carregado de troncos. O motorista acena
simpatias, engordando um sorriso no rosto já largo. A Avó está
parada, sacode uma sandália. Recuo para a ajudar. A sua fala
desfocada me surpreende: – Muito obrigado, senhor padre.
– Avó,
sou eu, seu neto.
Bate
com a sandália para fazer cair a areia. Tem um só pé no chão, vai
bamboleando amparada no meu corpo.
– Mas
você não quer ser padre? – Nunca pensei nisso, Avó.
– É
pena, você é tão bom escutador.
As
ruas estão cheias de crianças que voltam da escola. Algumas me
olham intensamente. Reconhecem em mim um estranho. E é o que sinto.
Como se a Ilha escapasse de mim, canoa desamarrada na corrente do
rio. Não fosse a companhia da Avó, o que eu faria naquele momento
era perder-me por atalhos, perder-me tanto até estranhar por
completo o lugar.
De
novo me chegam os sinais de decadência, como se cada ruína fosse
uma ferida dentro de mim. Custa a ver o tempo falecer assim. Levassem
o passado para longe, como um cadáver. E deixassem-no lá, longe das
vistas, esfarelado em poeira. Mas não.
A
nossa ilha está imitando o Avô Mariano, morrendo junto a nós,
decompondo-se perante o nosso desarmado assombro. Ao alcance de uma
lágrima ou de um voo de mosca.
– Posso
lhe pedir uma coisa, meu neto? – Claro que pode, Avó.
– Quando
dissermos as boas-noites, lá em casa, posso tratá-lo de “senhor
padre”? É que ela tinha uma confissão para ser ajoelhada em troca
de clemência. Eu seria o primeiro a escutar esse abrir de peito.
Afinal, nem esperou que chegássemos a casa porque logo ali, de
adiantado, ela desabafou: – Fui eu que matei o seu Avô! Sorrio,
mas sem vontade. O sorriso é minha resposta por não saber como
reagir. Dulcineusa não dá tempo, prosseguindo: – Eu sempre o quis
matar, senhor padre. Sempre. Esse homem fez-me tanto mal, com essas
amantes dele. E agora, sabe o que aconteceu? – Diga, diga sem medo.
– Agora,
que está morto, só quero que fique vivo outra vez.
Mia Couto, in Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra
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