sábado, 17 de dezembro de 2022

Cuidado com o que você pede...

Pô, Luana.
Não chega nem perto.
Mas estamos só você e eu nesta ilha. E estaremos aqui pelo resto das nossas vidas.
Vai ler o teu livro, vai. Você não disse que era o seu favorito?
Mas eu já li o livro várias vezes.
Então vai ouvir o teu disco e me deixa em paz.
Com que aparelho? Nesta ilha não tem eletricidade. Nesta ilha não tem nada. Só coqueiros. E nós dois.
A escolha foi sua. Ninguém me perguntou nada.
Como é que eu ia saber que a pergunta não era hipotética? Que quando o cara me perguntou que livro, que disco e que mulher eu levaria para uma ilha deserta, não era pesquisa? Que ele ia interpretar não como sonho, mas como pedido?
Você devia ter desconfiado do turbante.
Se eu soubesse, teria pedido mantimentos. Enlatados, champanhe. Um gerador. Algum tipo de moradia, com som e mordomia. Talvez um bar. Sei lá. E 30 anos menos.
Azar.
Pô, Luana. Só um beijinho.
Não-ô.
Passa o tempo. Eu e Luana Piovani conseguimos sobreviver na ilha deserta, mas a duras penas. Dada a nossa diferença de idades e de preparo físico, é ela que trepa nos coqueiros para pegar o coco e constrói a cabana rudimentar que nos abriga, com camas de capim separadas. Ela reluta, depois acaba cedendo aos meus insistentes pedidos e tira o sutiã, mas só para fazermos um anzol do fecho de metal. Conseguimos pegar alguns peixes, usando mariscos como isca. Como não temos fósforo, fazemos fogo usando o CD do Miles Davis com o Sonny Rollins e o Horace Silver para refletir a luz do sol num monte de gravetos e alimentando o fogo com as páginas de O grande Gatsby. Quando termina o papel, usamos capim seco, ou comemos o peixe cru mesmo. Improviso uma armadilha para roedores com o estojo de plástico do CD. Não pegamos nada. A ilha é tão deserta que não tem nem roedor. De noite, tento me aconchegar a Luana, para pelo menos nos protegermos do frio. Ela me repele.
Não-ô.
Passam-se anos. Um dia, sinto a Luana mordiscando a minha orelha. Me afasto. Mesmo se quisesse alguma coisa com ela, não poderia. Estou anêmico e enfraquecido. A dieta de coco, peixe cru e água da chuva não me fez bem. E a Luana também está péssima. A roupa esfarrapada deixa entrever quase todo o seu corpo curtido pelo sol e o vento, mas eu nem olho mais. Ela insiste na orelha. Diz que já que estaremos lá para sempre e não tem remédio... Eu me recuso. Se estivéssemos em qualquer outro lugar e não lutando para sobreviver daquele jeito, talvez rolasse alguma coisa entre nós. Mas naquelas condições estressantes, numa ilha deserta... Pego o que sobrou de O grande Gatsby, as duas capas apodrecidas, e finjo que leio, para desencorajá-la.
Pô, Luis Fernando.
Azar — suspiro.

Luís Fernando Veríssimo, in Sexo na cabeça

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