segunda-feira, 5 de dezembro de 2022

Cartas para minha avó

Nunca te falei disso, vó, mas talvez minha mãe tenha contado. Quando eu tinha seis anos, um afilhado dela, de onze, foi passar um tempo lá em casa. A gente brincava muito juntos, pulando corda e correndo pelo prédio. Um dia, minha mãe precisou dar uma saída rápida para o mercado e pediu para uma vizinha ficar de olho na gente, já que estávamos no corredor. Quando se viu sozinho comigo, ele começou a me puxar para dentro do apartamento. Eu briguei dizendo que não queria ir, lutei, mas ele era maior e mais forte do que eu.
A vizinha não ouviu quando fui arrastada para dentro do meu quarto, nem quando eu gritei enquanto ele abaixava meus shorts e passava o pênis em mim. Aos berros que ninguém parecia ouvir, ordenando que ele parasse, consegui fugir.
Não disse nada pra minha mãe quando ela voltou. No dia seguinte, contei a Dara o que havia acontecido. Estávamos brincando de jogo da memória. Assim que a partida terminou, fui tomar banho, e ela foi contar pra minha mãe, que apareceu no banheiro de repente, escancarando a cortina do box e perguntando se era verdade. Eu somente sinalizei com a cabeça que sim.
Percebi umas movimentações estranhas, meu pai falava bravo com alguém ao telefone. A partir daquele momento, o afilhado da minha mãe, que ainda estava em casa, não se aproximou mais de mim. Quando a mãe dele veio buscá-lo, eu o ouvia gritar: “É mentira, madrinha, é mentira”. Meus pais foram taxativos e não o vi por muitos anos. Eu não entendia direito o que havia acontecido, mas lembro que, daquele dia em diante, minha mãe regularmente me perguntava se alguém havia tocado em mim. Ela também insistia que não era pra eu aceitar carona de ninguém ou falar com homens na rua. Meu pai reforçava, de forma contundente: “Nem se for amigo meu, escutou?”. E tudo era seguido religiosamente.
Quando eu tinha nove anos, minha mãe e meu pai, com problemas financeiros, precisaram cancelar a van escolar, vó. Meus irmãos e eu, então, passamos a ir a pé para a escola, um trajeto de vinte minutos. Denis tinha treze anos na época e, por ser o mais velho de nós quatro, ficou responsável por olhar a gente — ele e as outras crianças mais velhas que nos acompanhavam. Tudo correu bem por um bom tempo. Um dia, porém, passando em frente ao posto de gasolina que ficava no caminho de volta para casa, um frentista me chamou, dizendo que queria me dar uma boneca. Eu não respondi e fui logo contar pro Denis, como minha mãe exigia. Ele, claro, ficou ao meu lado e xingou o homem. O frentista correu atrás da gente e nós tivemos que fugir, atravessando uma grande avenida às pressas e quase sendo atropelados.
Em casa, contamos tudo pra nossa mãe, que ficou furiosa. Ela esperou meu pai chegar e exigiu que ele fosse até o posto tirar satisfação, mas ele não podia, porque tinha mais um turno no trabalho. Aborrecida, dona Erani reuniu os pais das outras crianças que iam à escola com a gente e foi ao posto de gasolina brigar com o frentista, que negou tudo, alegando que correu atrás da gente porque estávamos vandalizando o posto. Ela ficou furiosa e armou o maior escândalo. Por um tempo, ela tentou nos acompanhar no caminho pra escola, mas depois voltamos a ir sozinhos novamente. Vimos o homem mais algumas vezes, mas ele sempre abaixava a cabeça quando passávamos.
Quando eu tinha onze anos, duas situações semelhantes aconteceram. Uma vez foi num ônibus intermunicipal, quando estava indo a São Vicente com minha mãe. O ônibus estava cheio, nós estávamos em pé e um homem se aproximou de mim. Eu era pequena ainda, mas brincava de tentar segurar na parte alta do suporte. Meus seios estavam crescendo, eu usava uma blusa um pouco cavada e não entendia por que o homem, toda vez que eu erguia os braços e ficava na ponta dos pés, inclinava a cabeça em direção ao meu corpo. Eu me lembro dessa cena como se fosse hoje. Na minha inocência de criança, não entendia. Ao ver tudo, minha mãe se colocou entre nós dois e o homem se afastou.
A outra foi quando comecei a andar de ônibus sozinha. Minha mãe me colocou numa escola de inglês um pouco distante de casa, e ela não tinha como me levar e buscar sempre, então me ensinou a ir por conta própria. Não era muito difícil, o ponto ficava quase em frente ao prédio onde morávamos. Um dia, enquanto eu esperava o ônibus, um homem passou de bicicleta me olhando. Um pouco mais adiante, ele parou e me ofereceu carona. Ele acenava com a cabeça e apontava para o cano da bicicleta, dizendo para eu subir ali. Eu neguei, mas ele ficou insistindo, dizendo: “Vem cá, eu te levo”. Eu lembrava da voz contundente do meu pai e negava. Como estava muito perto de casa, não senti medo, então quando o ameacei dizendo que chamaria meu pai, ele foi embora.
Tempos depois, na saída da escola, enquanto eu esperava meus irmãos, um daqueles homens que são tidos como “os loucos da rua” simplesmente apareceu e me deu um chute. Todo mundo que estava no pátio viu. O homem, claro, fugiu, mas contamos à coordenadora da escola. A ronda escolar veio, e eu, meus irmãos e outras crianças e adolescentes relatamos o que aconteceu, mas não havia nenhum adulto por perto. O policial, então, disse que era pra eu entrar no carro com ele e começou a dar voltas sozinho comigo pelo bairro para ver se eu reconhecia o homem pelo caminho. Rodamos por algum tempo, mas não achamos ninguém. Quando ele me levou de volta pra escola, meu irmão ficou aliviado — sabia da punição caso chegasse sem mim em casa.
Eu reprimi essas experiências por muito tempo. Somente quando adulta fui perceber quão graves essas situações foram. Quando criança, eu entendia que era diferente dos meus irmãos por ser menina. Era só eles ameaçarem bater em quem os xingava que as ofensas terminavam. Já Dara e eu, por mais que respondêssemos, não podíamos fazer as mesmas coisas que os meninos, nossos pais não deixavam. Me enfurecia ter que ajudar minha mãe a fazer a faxina de fim de ano enquanto ouvia os gritos felizes dos meus irmãos brincado na rua. Eu achava injusto ter que ajudar minha mãe a cozinhar e limpar a casa enquanto a função de um dos meus irmãos era só colocar o lixo na rua. Desde criança, eu percebia que existiam diferenças de tratamento e, como sempre fui questionadora, me rebelava.
Na época, porém, eu ainda não entendia que eram essas mesmas diferenças, presentes não só na minha casa mas em todo o lugar que eu ia, que causavam os episódios horríveis de assédio que eu tinha sofrido. Somente depois de muito tempo eu entendi que o que o afilhado da minha mãe havia feito comigo só não foi mais grave porque ele também era uma criança e não sabia como “fazer” sexo. Claro que isso não deixa de ser violência, mas foi o que ele disse anos depois para minha mãe: “Foi coisa de criança”.
Aquele caso, porém, só não foi mais grave porque meus pais tomaram as providências necessárias e me protegeram, acreditaram em mim e tiraram o afilhado da minha mãe de dentro de casa. Somente adulta eu fui entender que o homem no ônibus tentava olhar por dentro da minha blusa para ver os seios de uma criança em crescimento. Que eu poderia não estar aqui ou carregar um trauma se tivesse ido para trás do posto com o frentista na promessa de ganhar uma boneca ou se tivesse aceitado a carona do homem da bicicleta.
Recentemente, quando estava numa balsa a caminho do Guarujá, me dei conta que o policial da ronda escolar não poderia ter me colocado na viatura, uma vez que eu era menor de idade. Esse episódio me veio à memória enquanto eu olhava o mar, e tenho certeza de que, naquele dia, fui protegida por Iemanjá. Eu vi o policial dirigindo o carro enquanto eu estava sentada no banco do passageiro, mas eu também vi que no banco de trás havia uma presença, minha proteção.
Vó, te contando disso me lembrei das vezes em que minha mãe me levou ao terreiro. Fui iniciada aos oito anos como filha de Iemanjá, apesar de ser filha de Oxóssi. O pai de santo, preso às ideias do colonialismo, justificou dizendo que menina que tem orixá homem precisa colocar um orixá feminino na frente para “não virar lésbica”. Foi apenas muitos anos depois, ao encontrar um lugar mais sério, que descobri ser, na verdade, filha de Oxóssi com Iansã, mas que pelo fato de ter cultuado Iemanjá por muito tempo, ela era uma mãe que haviam escolhido para mim e que eu deveria seguir cultuando-a — até porque ela é considerada a mãe de todas as cabeças. E foi justamente enquanto eu atravessava o mar de Iemanjá que aquela memória me veio. Há um itan que conta que Iemanjá foi violentada. Imediatamente lembrei de você, vó. Das vezes em que me benzeu, me ajudou a cultuar Iemanjá, enterrou seus feitiços de proteção no quintal de sua casa, invocou as Grandes Mães para que me protegessem.
Naquela balsa, já adulta, eu senti que se não fosse por você e minha mãe, eu poderia não estar aqui. Assim como há mulheres que dizem que Ogum são os maridos delas, vocês invocaram as mães que eu precisava quando vocês não estavam por perto. A força de minha mãe, que ela aprendeu com você, me protegeu: afugentou tarados em ônibus, pôs pra correr abusadores que ficavam à espreita em postos de gasolina, não sentiu pena de afilhados. E eu nem precisei explicar, bastou um aceno de cabeça para ela acreditar em mim. Não houve “tem certeza, filha?”. Foi um aceno de cabeça enquanto eu tomava banho e esfregava minhas costas para ela afastar pra longe o perigo. A força dos olhares cúmplices.
Essa diferença criou um mundo no qual eu sabia que juntas as mulheres poderiam se fortalecer, um mundo no qual eu aprendi a admirar e amar mulheres, um mundo que me abriu os caminhos para ser feminista. Minha mãe jamais permitiu que homem algum tocasse suas filhas. E, na sua ausência, enviou as Grandes Mães para espantarem qualquer um que estivesse mal-intencionado. Você, que nunca soube o que era feminismo, minha mãe, que nunca soube o que era feminismo, me ensinaram a importância de me defender.
Vó, hoje eu entendo que, na sua casa, poder dormir somente com você também era uma forma de me proteger. Os conselhos insistentes para não sentar no colo de homem algum, mesmo sendo da família, também. Eu não entendia por que não podia demonstrar muito afeto pelos meus tios, primos, qualquer homem que fosse, mas hoje eu entendo. Você tinha medo, e acreditava que me tirar de perto era a única forma de proteção. Isso também era ensinar o que era a vida para uma menina negra.

Djamila Ribeiro, in Cartas para minha avó

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