A
construção é a penúltima composição de Kafka, escrita em
Berlim depois que ele deixou Praga, no final de 1923. Em novembro
daquele ano, quando o escritor já estava instalado na Alemanha,
houve o putsch da cervejaria de Munique e foi nessa mesma
época que ele começou a agonizar, pois a tuberculose pulmonar que
tinha desde 1920 ameaçava alcançar a faringe. Além disso a
aposentadoria que recebia da companhia de seguros contra acidentes do
trabalho na Tchecoslováquia estava sendo reduzida a pó pela
hiperinflação alemã e ele mal tinha dinheiro para comprar carvão
para o aquecimento num inverno que agravava seu estado de saúde.
Nessa circunstância histórica e pessoal sombria — ameaçado por
fora pelo nazismo e por dentro pela doença — não é de espantar
que tenha composto um dos textos mais pesados da sua obra e que A
construção seja considerado o verdadeiro testamento do escritor
e de toda uma geração.
É
muito difícil resumir A construção porque a novela se
organiza em torno de um fio narrativo mínimo e se sustenta num
monólogo interior contínuo que só se interrompe depois de quarenta
páginas de texto cerrado. O narrador de primeira pessoa é um bicho
que vive sob a superfície da terra. O leitor não fica sabendo ao
certo qual é a sua forma ou o seu tamanho, mas deduz logo que é um
animal ágil e sagaz, extremamente articulado, ao mesmo tempo lúcido
e perseguido, que discorre com uma lógica de ferro sobre si mesmo,
sobre a sua obra e sobre os perigos que enfrenta sob a terra. A
história que ele conta pode ser dividida em duas partes: na primeira
ele descreve sua vida depois de instalado na construção — uma
vida solitária, marcada por hábitos regulares, como comer, dormir e
vigiar —, com flashbacks ocasionais sobre o trabalho de
construção em épocas anteriores; na segunda, que se
desenrola depois de um breve período fora da construção, dedicado
à caça de víveres, o acontecimento central e decisivo é o
aparecimento de um ruído debaixo da terra que leva o narrador a
tentativas renovadas de busca e interpretação, até que finalmente
ele chega à conclusão de que se trata de um adversário volumoso e
desconhecido que está se aproximando de sua fortaleza subterrânea e
vai invadi-la por dentro da terra para travar com ele uma luta de
extermínio.
Olhando
A construção de perto, o que o texto tematiza é o vínculo
de um ser vivo com a sua casa e o mundo externo e, a partir dele, a
relação consigo mesmo e com os outros. Tudo isso se faz no registro
único de angústia e trabalho. Um animal fala em linguagem humana
sobre suas tentativas de garantir a própria sobrevivência em paz e
solidão. Ele passa a vida sob a superfície e sabe pouco sobre a luz
do sol. A natureza celebrada pelos poetas é revolvida
por ele num pedaço de chão. Para ele a terra não é uma amiga
confiável, mas um território minado. Esse narrador-personagem não
é alguém que saiba o que acontece ou vai acontecer, mas sim o
membro de uma espécie que mergulha no indeterminado e se torna, ele
próprio, o centro da impossibilidade de saber.
Para
produzir um relato vertiginoso e original, a via escolhida por Kafka,
aqui, é a supressão da rica variedade da vida. Um animal de
recortes nítidos, a despeito da escassez de traços individuais,
vive e observa a própria existência num conjunto labiríntico, ora
satisfeito com a “praça do castelo” da construção, ora
apavorado com o inimigo virtual que o ameaça por dentro e por fora
da sua morada. Para ele não é viável nenhum acordo com o mundo
exterior, embora seja dono e único ocupante de inúmeros recintos e
corredores cavados no solo. O silêncio sob a terra é enganador, mas
o animal se sente de algum modo protegido. No fundo ele é um cidadão
que se protege, embora o burgo (esta palavra é textual na
novela), o burgo que esse burguês defende, esteja situado no
submundo e nele exista pouca semelhança com a vivência
idealizada de lar ou pátria. Num texto de 1920 intitulado Er
[Ele], Kafka usou a expressão “cidadania do nada”.
Esse
animal no entanto parece conciliado e identificado com o seu mundo.
Dentro dele a vida não é menos precária ou perigosa do que fora
dele. Sendo assim, é previsível que as fronteiras entre o familiar
e o estranho, ou entre o lar e o território estrangeiro, sejam
suspensas, e que as noções de entrada e saída se tornem
permutáveis. Quando o narrador ouve o ruído que anuncia o animal
adversário dentro da terra, pensa em fugir pela entrada da
construção. Ao mesmo tempo ele se indaga se aquele invasor também
não teve o seu território invadido por ele. A ótica tradicional do
“dentro” e do “fora” foi cancelada nessa novela de Kafka —
autor, aliás, que tem sido descrito como o outsider que ocupa
o centro da arte do seu tempo.
As
várias formas de indistinção observadas em Kafka assumem às vezes
um aperspectivismo que lembra Escher. Na evolução da prosa kafkiana
essa nova modalidade de percepção marca a passagem do “cenário
familiar” das primeiras obras para o estranhamento profundo das
últimas. Os primeiros contos e novelas voltam-se para trás, para o
lado perdido; mas em A construção a narrativa está voltada
para a frente, para um novo “domicílio”, isto é: para um
universo onde a distinção entre casa e esconderijo, lar e
armadilha, homo sapiens e animal já não desempenha um papel
relevante. Nesse novo continente não vigora a hierarquia dos valores
conhecidos nem repertório algum de ideais, pois no seu lugar entrou
um esquema de existência que parece moralmente neutralizado.
Assim
o eu que se manifesta em A construção não se sente, como os
heróis da grande literatura do passado, como um coroamento da
criação, mas apenas como criatura que não demonstra o menor
orgulho por qualidades especificamente humanas. Por isso mesmo
esse narrador é um bicho. Do ponto de vista da composição é
melhor para Kafka objetivar a condição desumanizada do mundo por
intermédio de um animal, já que o seu comportamento obsessivo é
aceito pelo leitor como algo natural. Se se tratasse de um personagem
homem ele seria imediatamente entendido como portador de uma
neurose compulsiva ou coisa do gênero, o que enfraqueceria o
extraordinário poder de estranhamento do texto.
Na
verdade Kafka só usa categorias antropocêntricas para iluminar a
novela por contraste. Assim é que esse bicho-narrador possui
mãos, procura o silêncio e a paz, memoriza as observações
que faz, ocupa-se de questões técnicas, reflete sobre sua
autoconfiança, sonha com a construção perfeita e algumas vezes
fala da sua casa e de uma porta. Tem orgulho da praça
do castelo que ergueu no centro da construção, sofre com o cansaço
e no entanto continua a cavar. Tudo o que é relatado acontece depois
da sua mocidade e muitas vezes o leitor tem a impressão de estar
ouvindo as confissões de um homem maduro que agora se retira para
sua fortaleza. Mas por outro lado ele também se alimenta de insetos
e camundongos da floresta, come ratos, tem coxas, dentes, uma barba e
uma testa muito forte. Perguntar de que espécie é esse animal é
tão impertinente quanto perguntar se Josef K. em O processo
ou K. em O castelo são de origem eslava ou germânica. O
importante é que os acontecimentos evoluem numa área específica,
espacialmente estruturada, mas cujos habitantes não conseguem
definir, sejam eles a figura central ou os seus inimigos.
Uma
conclusão possível a partir de todos esses dados é que a novela de
Kafka nivela tudo por baixo — categorias de tempo e espaço,
categorias zoológicas, morais e históricas. É evidente que isso
remete a um momento de tamanha crise que os próprios valores ficaram
empastados, na medida em que um não se distingue mais do outro — e
sem essa distinção nenhum deles pode se afirmar, seja na direção
que for.
Quanto
ao leitor da história, ele não é propriamente entretido por
ela. Falta ao texto a tensão causada por expectativa e desfecho,
espanto e sobriedade, perplexidade e conhecimento. Na narrativa
tradicional o leitor sempre está ouvindo a batida de um relógio. Em
A construção não existem as linhas de força de um agora
e de um depois; não há uma sucessão temporal muito marcada,
nenhuma dependência natural de passado, presente e futuro. Os verbos
mais frequentes são os que exprimem uma ação que se repete, como
saltar, saltitar ou correr, para dar apenas alguns
exemplos. Nesse sentido os acontecimentos também parecem não se
distinguir qualitativamente uns dos outros: é sempre de novo que o
animal busca o seu alimento, é sempre de novo que se ouvem os ruídos
ameaçadores do inimigo. A mesmidade adorniana (das Immergleiche)
encontra no aspecto monocórdio dessa novela uma espécie de
exemplificação narrativa a priori.
Mas
essa monotonia se torna artisticamente inteligível quando se
compreende o caráter não dialógico da novela. Desvios,
retardamentos, digressões, tramas secundárias — tudo isso fica de
fora em A construção. A arte monológica de Kafka assume
aqui uma função de conhecimento, porque ela é a formalização
estética do isolamento, da solidão, do mundo esquecido. Ou seja:
quanto mais o homem conseguiu se apropriar da literatura para se
exprimir em primeira pessoa, tanto mais numerosos foram os recursos
de que passou a dispor — poemas, diários, cartas, memórias etc.
São esses os pequenos grandes documentos da maneira de sentir e
pensar dentro do universo literário. A construção não é nem um
artifício puro e simples, nem um jorro do coração. O animal da
novela não vive no reino arejado das conversas, ele age como uma
criatura à parte, distanciado de toda atividade social ou literária.
O que ele formula, formula para si mesmo e no máximo apreende ruídos
estranhos e zumbidos ameaçadores como resposta. É um ser dotado da
mais alta capacidade de expressão, mas tem como parceiros (no caso
invisíveis) tão somente animais providos dos meios de expressão e
comunicação mais primitivos.
Não
é possível exprimir melhor, utilizando imagens, a desumanização e
o caráter solitário do indivíduo contemporâneo.
P.
S. Dois comentários de Walter Benjamin e dois de Theodor Adorno
sobre Franz Kafka:
O
mundo de Kafka se caracteriza pela mais precisa das deformações. W.
B.
Com
muita frequência Kafka coloca animais no centro das suas narrativas.
É possível então acompanhar esses animais por um bom tempo sem
absolutamente perceber que não se trata aqui de modo algum de seres
humanos. Quando pela primeira vez se bate no nome do animal,
desperta-se com um choque e observa-se de uma só vez que o
continente dos homens já está muito distante. W. B.
Os
protocolos herméticos de Kafka revelam a gênese social da
esquizofrenia. T. A.
Em
Kafka a História vira inferno porque o momento da salvação foi
perdido. T. A.
Este
texto foi apresentado numa das mesas-redondas realizadas no Centro
Universitário Maria Antonia sobre o marxismo ocidental, em maio de
1995. Posteriormente, foi publicado pela revista Praga, nº 1,
set.-dez. 1996. O caráter informal da fala foi mantido.
Modesto Carone, in Lição de Kafka
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