quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

1. Apaixonar-se e desapaixonar-se

Meu caro amigo, estou lhe enviando um pequeno trabalho do qual se poderia dizer, sem injustiça, que não é cabeça nem rabo, já que tudo nele é, ao contrário, uma cabeça e um rabo, alternada e reciprocamente. Suplico-lhe que leve em consideração a conveniência admirável que tal combinação oferece a todos nós — a você, a mim e ao leitor. Podemos abreviar — eu, meus devaneios; você, o texto; o leitor, sua leitura. Pois eu não atrelo interminavelmente a fatigada vontade de qualquer um deles a uma trama supérflua. Retire um anel, e as duas partes desta tortuosa fantasia voltarão a se unir sem dificuldade. Corte em pedacinhos e vai descobrir que cada um deles tem vida própria. Na expectativa de que alguma dessas fatias possa agradá-lo e diverti-lo, ouso dedicar-lhe a cobra inteira.”

Foi assim que Charles Baudelaire apresentou Le spleen de Paris a seus leitores. Que pena. Não fosse por isso, eu gostaria de escrever esse mesmo preâmbulo, ou um parecido, sobre o texto que segue. Mas ele o escreveu e só me resta citá-lo. Evidentemente, Walter Benjamin enfatizaria na última sentença a palavra “só”. E eu também, pensando bem.
Corte-a em pedacinhos e vai descobrir que cada um deles tem vida própria.” Os fragmentos que fluíam da pena de Baudelaire tinham. Se os dispersos retalhos de pensamento reunidos a seguir também terão, não cabe a mim decidir, mas ao leitor.
A família dos pensamentos está repleta de anões. É por isso a lógica e o método foram inventados e, depois de descobertos, adotados pelos pensadores de ideias. Pigmeus podem esconder-se e acabar esquecendo sua insignificância em meio ao esplendor de colunas em marcha e formações de batalha. Cerradas as fileiras, quem vai notar o tamanho diminuto dos soldados? E possível reunir um exército de aparência extremamente poderosa alinhando-se para o combate fileiras após fileiras de pigmeus...
Só para satisfazer os viciados em metodologia, talvez eu devesse ter feito o mesmo com estes fragmentos. Mas como não tenho tempo para levar a cabo essa tarefa, seria tolice de minha parte pensar primeiro na ordem das fileiras e deixar a convocação para o final...
Pensando bem: talvez o tempo de que disponho pareça curto demais não por minha idade avançada, mas porque, quanto mais velho você é, mais sabe que os pensamentos, embora possam parecer grandiosos, jamais serão grandes o suficiente para abarcar a generosa prodigalidade da experiência humana, muito menos para explicá-la. O que sabemos, o que desejamos saber, o que lutamos para saber, o que devemos tentar saber sobre amor ou rejeição, estar só ou acompanhado e morrer acompanhado ou só — será que tudo isso poderia ser alinhado, ordenado, adequado aos padrões de coerência, coesão e completude estabelecidos para assuntos de menor grandeza? Talvez sim — quer dizer, na infinitude do tempo.
Não é verdade que, quando se diz tudo sobre os principais temas da vida humana, as coisas mais importantes continuam por dizer?

O amor e a morte — os dois personagens principais desta história sem trama nem desfecho, mas que condensa a maior parte do som e da fúria da vida — admitem, mais que quaisquer outros, esse tipo de devaneio/escrita/leitura.

Para Ivan Klima, poucas coisas se parecem tanto com a morte quanto o amor realizado. Cada chegada de um dos dois é sempre única, mas também definitiva: não suporta repetição, não permite recurso nem promete prorrogação. Deve sustentar-se “por si mesmo” — e consegue.
Cada um deles nasce, ou renasce, no próprio momento em que surge, sempre a partir do nada, da escuridão do não-ser sem passado nem futuro; começa sempre do começo, desnudando o caráter supérfluo das tramas passadas e a utilidade dos enredos futuros.
Nem no amor nem na morte pode-se penetrar duas vezes — menos ainda que no rio de Heráclito.
Eles são, na verdade, suas próprias cabeças e seus próprios rabos, dispensando e descartando todos os outros.
Bronislaw Malinowski ironizava os difusionistas por confundirem coleções de museu com genealogias. Tendo visto toscos utensílios de pederneira expostos em estojos de vidro diante de instrumentos mais refinados, eles falavam de uma “história das ferramentas”. Era, zombava Malinowski, corno se um machado de pedra gerasse um outro, da mesma forma que, digamos, o hipparion deu origem, na plenitude do tempo, ao equus caballus. Os cavalos podem derivar de outros cavalos, mas as ferramentas não têm ancestralidade nem descendência. Diferentemente dos cavalos, não têm uma história própria. Pode-se dizer que elas pontuam as biografias individuais e as histórias coletivas dos seres humanos, das quais são emanações ou sedimentos. Na plenitude do tempo, ao equus caballus. Os cavalos podem derivar de outros cavalos, mas as ferramentas não têm ancestralidade nem descendência. Diferentemente dos cavalos, não têm uma história própria. Pode-se dizer que elas pontuam as biografias individuais e as histórias coletivas dos seres humanos, das quais são emanações ou sedimentos.
Quase o mesmo se pode dizer do amor e da morte. Parentesco, afinidade, elos causais são traços da individualidade e/ou do convívio humanos. O amor e a morte não têm história própria. São eventos que ocorrem no tempo humano — eventos distintos, não conectados (muito menos de modo causal) com eventos “similares”, a não ser na visão de instituições ávidas por identificar — (por inventar) — retrospectivamente essas conexões e compreender o incompreensível.
Assim, não se pode aprender a amar, tal como não se pode aprender a morrer. E não se pode aprender a arte ilusória — inexistente, embora ardentemente desejada — de evitar suas garras e ficar fora de seu caminho. Chegado o momento, o amor e a morte atacarão — mas não se tem a mínima ideia de quando isso acontecerá. Quando acontecer, vai pegar você desprevenido. Em nossas preocupações diárias, o amor e a morte aparecerão ab nihilo — a partir do nada.
Evidentemente, todos nós tendemos a nos esforçar muito para extrair alguma experiência desse fato; tentamos estabelecer leis antecedentes, apresentar o princípio infalível de um post hoc corno se fosse um propter hoc, construir uma linhagem que “faça sentido” — e na maioria das vezes obtemos sucesso. Precisamos desse sucesso pelo conforto espiritual que ele nos traz: faz ressurgir, ainda que de forma circular, a fé na regularidade do mundo e na previsibilidade dos eventos, indispensável para a nossa saúde mental. Também evoca uma ilusão de sabedoria conquistada, de aprendizado, e sobretudo de uma sabedoria que se pode aprender, tal como aprendemos a usar os cânones da indução de J. S. Mill, a dirigir automóveis, a comer com pauzinhos em vez de garfos ou a produzir uma impressão favorável em nossos entrevistadores.
No caso da morte, o aprendizado se restringe de fato à experiência de outras pessoas, e portanto constitui uma ilusão in extremis. A experiência alheia não pode ser verdadeiramente aprendida como tal; não é possível distinguir, no produto final da descoberta do objeto, entre o Erlebnis original e a contribuição criativa trazida pela capacidade de imaginação do sujeito. A experiência dos outros só pode ser conhecida como a história manipulada e interpretada daquilo por que eles passaram. No mundo real, tal como nos desenhos de Tom & Jerry, talvez alguns gatos tenham sete vidas ou até mais, e talvez alguns convertidos possam acreditar na ressurreição — mas permanece o fato de que a morte, assim como o nascimento, só ocorre uma vez. Não há como aprender a “fazer certo na próxima oportunidade” com um evento que jamais voltaremos a vivenciar.

Zygmunt Bauman, in Amor Líquido

Nenhum comentário:

Postar um comentário