III
“O
meu nome é Xoxombo. Só na escola é que eu digo o meu nome todo,
quando a professora pergunta. E digo também que nasci da minha mãe,
senhora Domingas João, negra, a sô pessora diz que isso não
precisa dizer, e do meu pai, senhor capitão Bento de Jesus Abano,
mulato, a sô pessora também quer que eu diga misto, mas é como eu
gosto dizer. Nasci na Ingombota, ando na terceira e tenho nove anos.
A sô pessora é boa mas eu não gosto dela. Quando os meninos
começam-me fazer pouco chamando Xoxombo-macaco e outras coisas, ela
aparece sempre mas eu não gosto. Diz eu sou coitadinho não tenho
culpa de ser assim escuro e que a minha alma é igual me agarra e
quer ser como mamãe, mas eu não gosto dela porque naquele dia levei
minha mandioca cozida para o lanche e o Antoninho, o filho do sô
Antunes da quitanda, estava comer o pão dele com a manteiga e
começou-me fazer pouco. A sô pessora puxou-lhe nas orelhas, lhe
tirou o pão, deitou fora minha mandioca e me deu-me o pão dele. Mas
eu não aceitei e chorei. Eu queria mesmo era minha mandioca, minha
mãe tinha-me dado para o lanche.”
Mais
ou menos assim é a lembrança daquele caderno do Xoxombo e, nalgumas
folhas, na sua letra redonda, ele tinha escrito conversas e confusões
lá do musseque. Mas não continuou contar as histórias; adiantou
fazer desenhos de asneiras e um dia sá Domingas encontrou, deu-lhe
com o pau de funji, rasgou e queimou o caderno. Só que o Zeca, com
seu espírito curioso, estava espreitar a surra no Xoxombo, foi ainda
apagar o fogareiro e salvou uns bocados. Alguns deitei fora, só
tinha desenhos de malandro; o resto eu guardei porque o Xoxombo
escrevia coisas que ele pensava e que, sempre que eu leio, fico
também a pensar.
1.
Numa
noite, depois deste caso, o musseque ficou muito calmo e nem tinha
vento no ar, as folhas dos paus não mexiam. Albertina estava ainda
no hospital e os pais do Zeca Bunéu tinham saído para visitar os
primos do Kinaxixi.
Nesse
fim de jantar, sá Domingas veio sentar na porta com Xoxombo,
Carmindinha e Tunica brincando suas rodas e, mais daí a bocado, foi
don’Ana quem chegou sozinha, as meninas tinham deitado já. Vinha
para sunguilar com a vizinha, sabia era dia de capitão Bento chegar,
queria-lhe ajudar a encher o tempo.
A
noite estava escura ainda; a lua, escondida atrás do Tanque d’Água,
não dava luz para as brincadeiras que sempre gostávamos fazer.
Assim, a chegada de don’Ana foi recebida com alegria, os meninos
correram para a senhora e começaram pedir para contar as histórias
ou pôr adivinhas, como só ela é que sabia.
Sentindo
esse barulho, Zeca Bunéu, que já estava para dormir, recomendação
de dona Branca antes de sair, veio também. Este menino gostava mesmo
ouvir as histórias. Sabia já, quando o pai chegasse e não lhe
encontrasse na cama, ia apanhar surra, mas nada, ficava na mesma.
Na
janela do meu quarto eu assistia triste, todos a sentar à volta de
don’Ana, sá Domingas abanando o calor. Minha madrasta não deixava
eu ir, dizia que essas conversas de cazumbis é história de negros
e, quando ela falava assim, eu lembrava a minha falecida mãe, ficava
a chorar e espreitava bem com os ouvidos para apanhar o que don’Ana
contava e o silêncio amigo me trazia.
Mas
o Zeca era saliente, gostava se meter:
— Ená!
Mas camucala e diquixe é o quê então?
Os
outros meninos estavam assustados e, sempre que ele falava, riam,
faziam-lhe pouco mas era também para assustar o medo que sentiam. Só
Zeca não tinha vergonha, o que ele queria era saber, cantar no grupo
com os outros e tudo. Por isso, quando nessa noite don’Ana acabou
contar essa história dumas meninas que foram pôr tatuagens, o Zeca
interrompeu:
— Don’Ana,
a senhora deixa só eu contar também minha história?
— Ih,
menino! Criança que pede muito, recebe cagalhão! Sempre a pedir,
sempre a pedir! Não fica mais calado?
Mais
curiosa, sá Domingas falou para don’Ana deixar o Zeca contar. O
Xoxombo desatou a rir, Tunica e Carmindinha fizeram-lhe pouco, mas
ele começou na mesma. E contou que era uma vez uma rapariga que foi
com a quinda dela cheia de mandiocas, batata-doce e galinhas para
oferecer na avó que morava na mata. Aí, no caminho, apareceu o
senhor Onça e começou-lhe falar...
— Xê,
Zeca! Cala-te a boca! — gritou o Xoxombo, rindo.
— Elá,
menino, então? ’tá interromper assim o teu mais-velho? —
protestou don’Ana.
— Não
é, don’Ana! É o Zeca ’tá aldrabar. Essa história não é
assim, a professora adiantou contar lá na escola. Nome dela é o
Capuchinho Vermelho, eu sei mesmo...
Tunica
e Carmindinha, batendo a palma da mão na boca, começaram a correr
em volta do Zeca Bunéu, troçando e rindo:
— Uatobo!
Uatobo!
Mas
nem assim ficou derrotado, não senhor. Virou para don’Ana, pôs
cara séria e falou com muito jeito:
— Ai
don’Ana! Se eu contasse a história com a menina do chapéu
vermelho ser comida no lobo, ninguém que percebia, não é? Na nossa
terra tem menina assim? E tem lobo na mata? Ora pópilas, tem mas é
onça! É por isso eu conto assim...
Acabando
de rir, as mães concordaram e mandaram calar os filhos. O Zeca
contou até no fim, quando apareceram os caçadores da sanzala da
menina, deram uma surra no senhor Onça que ele morreu. Sukuama! Esse
Zeca, cada mentira que ele meteu aí na história! Mas toda a gente
gostou, é verdade.
Com
os risos e os barulhos dos meninos, gostando as adivinhas que don’Ana
punha, minha madrasta veio-me tirar da janela e nem dei conta a
chegada de capitão Abano. Mas durante o resto da noite fiquei ainda
acordado a pensar o Zeca e o Xoxombo e naquelas coisas que o menino
tinha escrito no caderno. Na imaginação do Zeca e na esperteza do
Xoxombo, parecia mesmo um mais-velho; e também essas conversas do
meu pai e da minha madrasta, conversas antigas faladas na cama quando
o sono não vem. Cadavez eram mais, o pior era mesmo no fim do mês.
Xoxombo e Zito contavam que os pais e as mães falavam muito esses
casos do preço das coisas de comer, na quitanda de sô Antunes. Ele
só dizia que era a guerra, mas não aviava o que as mães mandavam
os miúdos buscar e andava ameaçar que só ia vender com dinheiro,
não queria aceitar mais vale.
Foi
assim que, numa tarde, no caminho da escola, o Xoxombo pelejou no
Antoninho. Xoxombo disse que o pai dele estava ficar gordo com a
nossa fome e ele respondeu que as nossas famílias eram negros
matumbos. Que o pai fazia negócio com os arcos dos barris, com as
garrafas vazias, com pneus velhos, sucata e que as nossas famílias
eram mangonheiros.
Xoxombo
não esperou dar café nem nada. Deitou a saca no chão, agarrou-lhe
na capanga; o Antoninho deu-lhe um pontapé e começaram lutar, os
outros é que separaram. O filho do capitão Abano contou, depois,
que tinha pelejado porque, de manhã, sô Antunes lhe mandou embora
sem açúcar branco nem a manteiga. A Tunica não ouviu ele dizer na
mãe e começou pedir manteiga e então sá Domingas bateu-lhe na
cara. Xoxombo, quando viu a Tunica chorar com a chapada e sá
Domingas sair embora triste, no quintal, jurou na palma da mão que
ia pelejar no Antoninho.
Mas
o que doeu mesmo mais no Xoxombo foi aquela tarde dos brinquedos.
José Luandino Vieira, in Nosso Musseque
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