quarta-feira, 2 de novembro de 2022

Zeca Bunéu e outros

III

O meu nome é Xoxombo. Só na escola é que eu digo o meu nome todo, quando a professora pergunta. E digo também que nasci da minha mãe, senhora Domingas João, negra, a sô pessora diz que isso não precisa dizer, e do meu pai, senhor capitão Bento de Jesus Abano, mulato, a sô pessora também quer que eu diga misto, mas é como eu gosto dizer. Nasci na Ingombota, ando na terceira e tenho nove anos. A sô pessora é boa mas eu não gosto dela. Quando os meninos começam-me fazer pouco chamando Xoxombo-macaco e outras coisas, ela aparece sempre mas eu não gosto. Diz eu sou coitadinho não tenho culpa de ser assim escuro e que a minha alma é igual me agarra e quer ser como mamãe, mas eu não gosto dela porque naquele dia levei minha mandioca cozida para o lanche e o Antoninho, o filho do sô Antunes da quitanda, estava comer o pão dele com a manteiga e começou-me fazer pouco. A sô pessora puxou-lhe nas orelhas, lhe tirou o pão, deitou fora minha mandioca e me deu-me o pão dele. Mas eu não aceitei e chorei. Eu queria mesmo era minha mandioca, minha mãe tinha-me dado para o lanche.”
Mais ou menos assim é a lembrança daquele caderno do Xoxombo e, nalgumas folhas, na sua letra redonda, ele tinha escrito conversas e confusões lá do musseque. Mas não continuou contar as histórias; adiantou fazer desenhos de asneiras e um dia sá Domingas encontrou, deu-lhe com o pau de funji, rasgou e queimou o caderno. Só que o Zeca, com seu espírito curioso, estava espreitar a surra no Xoxombo, foi ainda apagar o fogareiro e salvou uns bocados. Alguns deitei fora, só tinha desenhos de malandro; o resto eu guardei porque o Xoxombo escrevia coisas que ele pensava e que, sempre que eu leio, fico também a pensar.

1.

Numa noite, depois deste caso, o musseque ficou muito calmo e nem tinha vento no ar, as folhas dos paus não mexiam. Albertina estava ainda no hospital e os pais do Zeca Bunéu tinham saído para visitar os primos do Kinaxixi.
Nesse fim de jantar, sá Domingas veio sentar na porta com Xoxombo, Carmindinha e Tunica brincando suas rodas e, mais daí a bocado, foi don’Ana quem chegou sozinha, as meninas tinham deitado já. Vinha para sunguilar com a vizinha, sabia era dia de capitão Bento chegar, queria-lhe ajudar a encher o tempo.
A noite estava escura ainda; a lua, escondida atrás do Tanque d’Água, não dava luz para as brincadeiras que sempre gostávamos fazer. Assim, a chegada de don’Ana foi recebida com alegria, os meninos correram para a senhora e começaram pedir para contar as histórias ou pôr adivinhas, como só ela é que sabia.
Sentindo esse barulho, Zeca Bunéu, que já estava para dormir, recomendação de dona Branca antes de sair, veio também. Este menino gostava mesmo ouvir as histórias. Sabia já, quando o pai chegasse e não lhe encontrasse na cama, ia apanhar surra, mas nada, ficava na mesma.
Na janela do meu quarto eu assistia triste, todos a sentar à volta de don’Ana, sá Domingas abanando o calor. Minha madrasta não deixava eu ir, dizia que essas conversas de cazumbis é história de negros e, quando ela falava assim, eu lembrava a minha falecida mãe, ficava a chorar e espreitava bem com os ouvidos para apanhar o que don’Ana contava e o silêncio amigo me trazia.
Mas o Zeca era saliente, gostava se meter:
Ená! Mas camucala e diquixe é o quê então?
Os outros meninos estavam assustados e, sempre que ele falava, riam, faziam-lhe pouco mas era também para assustar o medo que sentiam. Só Zeca não tinha vergonha, o que ele queria era saber, cantar no grupo com os outros e tudo. Por isso, quando nessa noite don’Ana acabou contar essa história dumas meninas que foram pôr tatuagens, o Zeca interrompeu:
Don’Ana, a senhora deixa só eu contar também minha história?
Ih, menino! Criança que pede muito, recebe cagalhão! Sempre a pedir, sempre a pedir! Não fica mais calado?
Mais curiosa, sá Domingas falou para don’Ana deixar o Zeca contar. O Xoxombo desatou a rir, Tunica e Carmindinha fizeram-lhe pouco, mas ele começou na mesma. E contou que era uma vez uma rapariga que foi com a quinda dela cheia de mandiocas, batata-doce e galinhas para oferecer na avó que morava na mata. Aí, no caminho, apareceu o senhor Onça e começou-lhe falar...
Xê, Zeca! Cala-te a boca! — gritou o Xoxombo, rindo.
Elá, menino, então? ’tá interromper assim o teu mais-velho? — protestou don’Ana.
Não é, don’Ana! É o Zeca ’tá aldrabar. Essa história não é assim, a professora adiantou contar lá na escola. Nome dela é o Capuchinho Vermelho, eu sei mesmo...
Tunica e Carmindinha, batendo a palma da mão na boca, começaram a correr em volta do Zeca Bunéu, troçando e rindo:
Uatobo! Uatobo!
Mas nem assim ficou derrotado, não senhor. Virou para don’Ana, pôs cara séria e falou com muito jeito:
Ai don’Ana! Se eu contasse a história com a menina do chapéu vermelho ser comida no lobo, ninguém que percebia, não é? Na nossa terra tem menina assim? E tem lobo na mata? Ora pópilas, tem mas é onça! É por isso eu conto assim...
Acabando de rir, as mães concordaram e mandaram calar os filhos. O Zeca contou até no fim, quando apareceram os caçadores da sanzala da menina, deram uma surra no senhor Onça que ele morreu. Sukuama! Esse Zeca, cada mentira que ele meteu aí na história! Mas toda a gente gostou, é verdade.
Com os risos e os barulhos dos meninos, gostando as adivinhas que don’Ana punha, minha madrasta veio-me tirar da janela e nem dei conta a chegada de capitão Abano. Mas durante o resto da noite fiquei ainda acordado a pensar o Zeca e o Xoxombo e naquelas coisas que o menino tinha escrito no caderno. Na imaginação do Zeca e na esperteza do Xoxombo, parecia mesmo um mais-velho; e também essas conversas do meu pai e da minha madrasta, conversas antigas faladas na cama quando o sono não vem. Cadavez eram mais, o pior era mesmo no fim do mês. Xoxombo e Zito contavam que os pais e as mães falavam muito esses casos do preço das coisas de comer, na quitanda de sô Antunes. Ele só dizia que era a guerra, mas não aviava o que as mães mandavam os miúdos buscar e andava ameaçar que só ia vender com dinheiro, não queria aceitar mais vale.
Foi assim que, numa tarde, no caminho da escola, o Xoxombo pelejou no Antoninho. Xoxombo disse que o pai dele estava ficar gordo com a nossa fome e ele respondeu que as nossas famílias eram negros matumbos. Que o pai fazia negócio com os arcos dos barris, com as garrafas vazias, com pneus velhos, sucata e que as nossas famílias eram mangonheiros.
Xoxombo não esperou dar café nem nada. Deitou a saca no chão, agarrou-lhe na capanga; o Antoninho deu-lhe um pontapé e começaram lutar, os outros é que separaram. O filho do capitão Abano contou, depois, que tinha pelejado porque, de manhã, sô Antunes lhe mandou embora sem açúcar branco nem a manteiga. A Tunica não ouviu ele dizer na mãe e começou pedir manteiga e então sá Domingas bateu-lhe na cara. Xoxombo, quando viu a Tunica chorar com a chapada e sá Domingas sair embora triste, no quintal, jurou na palma da mão que ia pelejar no Antoninho.
Mas o que doeu mesmo mais no Xoxombo foi aquela tarde dos brinquedos.

José Luandino Vieira, in Nosso Musseque

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