O que um dia vou saber,
não sabendo eu já sabia.
Da
Espereza.
Sete-e-setenta
vezes milmente tinha ele de roer nisso, às macambúzias. De tirar a
chapa, sem aviso nem permisso, o Iô Wi abusara, por arrogo e nenhum
direito, agravando-o, pregara-lhe logro. Igual a um furto! — ao
dono da faca é que pertence a bainha... — cogitava, com a cabeça
suando vinagres. Seu, cujudo, legítimo, era o ginete, de toda a
estima; mas que, reproduzido destarte, fornecia visão vã, virava o
trem alheio, difugido. Descocava-o estampada junto, abraçando-lhe o
crinudo pescoço, a moça, desinquieta, que namorava o Iô Wi,
tratava-o de Williãozinho.
Encismava-se:
feito alguma coisa houvessem tomado ao animal, subtraindo-lhe uma
virtude; o que trazia dano, pior que mau-olhado. O retrato. Ele não
podia impedir que aquilo já tivesse acontecido. Saía agora à
porteira, a vigiar o extraordinário formoso — alvo no meio dos
verdes que pastando — mesmo quando assim, declinado entortado.
Vistoso mais que no retrato, ou menos, ou tanto? Era muito um cavalo.
Dele.
O que lhe influía a única vaidade. Deu pontapé num esteio, depois
meditou sobre seus sapatos velhos. Ele, o Bio. Ia outra vez ver Iô
Williãozinho — e o quadro.
Ia
a pé; para giro vulgar ou de mister, não o selava: o seu corcel,
sem haver nome. Referiam-no todos ao nulo e transato, o primeiro dono
consistindo de ser um falecido Nhô da Moura, instruidor. — “O
cavalo branco do Nhô da Moura...” — por lerdo, injusto
costume, ainda pronunciavam.
Nhô
da Moura certo inventara e executara de o fazer à mão, refinado e
afalado, governava-o com estalos do olhar, quem-sabe só por afetos
do pensamento. Outro o montasse, e era o Nhô da Moura assoviar dum
jeito sortilégio — e truque que ele a dar às upas e popas,
depondo o cavaleiro postiço. Entanto, trampa, a qual, que não
procedia mais: Nhô da Moura morto em-de levara consigo a gerência.
Bio rezava por essa distante alma. Seu era agora o cavalo, sem
artifícios, para sempre.
Não
o retrato. O que: moderno, aumentado, nas veras cores, mandado
rematar no estrangeiro por alto preço, guarnecido de moldura. Iô Wi
pendurara-o na abastada sala de casa — que perdia só para a de Seo
Drães, vivenda em apalaço. Isso pecava. Seria todo retrato uma
outra sombra, em falsas claridades?
Bio
olhava-o com instância, num sussurro soletrante, a Iô Wi quase
suplicava-o. Seu cavalo avultava, espelhado, bem descrito, no
destaque dessa regrada representação, realçado de luz: grosso
liso, alvinitoso, vagaroso belo explicando as formas, branco feito
leite no copo, sem perder espaço. E que com coragem fitava alguma
autoridade maior de respeito — era um cavalo do universo! —
cavalo de terrível alma.
Iô
Wi, então, não dadivava, de o entregar ou retornar, a quem, que?
Bio, sem acenar naquilo, fechava os olhos. Doía-lhe de não. Iô Wi
do dito não se desfazia, jamais, tanto nele contemplava a metade —
a moça, de fora, de cidade, com ela ia se casar — cheio de
amorosidades. Por causa, o queria, como um possuído. Mais disse: que
não se podia fazer partição, rateio dos feitios do cavalo e da
moça, cortar em claro. O Bio voltasse, para o ver e rever, vezes
quantas quisesse, entrar só assim em quinhão — de regalia de
usuflor.
Iô
Williãozinho, por palavras travessas, caçoadamente, dava a entender
que o cavalo, de verdade, não era portentoso desse jeito, mas mixe,
somente favorecido de indústrias do retratista e do aspecto e
existir da Moça — risonha, sonsa, a cara lambível. Descobria o Iô
Wi as tençoadas estranhezas! Todos querem acabar com o amor da
gente.
De
lá o Bio saiu, de ódio.
Indo
que entendendo: e achava. Tinha era de nele montar, pelo comum
preceito, uso, sem escrúpulo nem o remorso. Montava-o — e dele só
assim se posseava. Ia então exercer o que até aqui delongara, por
temor e afeição rodeadora — só a o tratar, raspar, lavar, lhe
adoçar ração, fazer-lhe a crina — xerimbabado. Tá, o dia
chegou. Terno botou-lhe o selim, rogava indultos.
Tanto
cavalgou, rumo a enfim nenhum, nem era passeio, mas um ato, sem
esporte nem espairecer. Senseava-o, corpo em corpo, macio e puro
assim nem o aipim mais enxuto, trotandante ou à bralha. Seguia o
sol, no chão as sobreluzidinhas flores, do amarelo que cria caminhos
novos. A estrada nua limpa com águas lisices — tudo o que nele
alegre, arrebatado de gosto — e o azul que continua tudo. Eles
subiam.
Somente
com o em-paz Nhô da Moura, aqui estivesse, poderia conversar,
carecia, sobre este: airoso, de manejo, de talento. Se vivo o Nhô da
Moura, ah, mas — então dele Bio o soreiro ainda não seria... Deu
galope. Um requerer o mandou para trás, de qualquer jeito,
havido-que, se reenviava ao Iô Wi. Desdenhava falsejos e retratos.
Agouros! devia abolir aquele, destruído em os setecentos pedaços.
Só depois sossegasse. Era um demais de cavalo.
Desafioso,
chegou. Viu o Iô Wi — jururu-roxo — e logo soube. O retrato já
não pendia da parede, senão que removido em recato. Iô Wi
suspirou-se: o Bio fosse, ao qual canto, e à vontade o espiasse. A
moça não viria mais. Ingrata, ausenciada, desdeixara o Iô Wi,
ainda de coração sangroso, com hábitos de desiludido.
Bio
se coçava os dedos das mãos. A moça não podia assim de todo
fugir. No viso daquela enfeitada arte, também alguma parte dela
parava presa, semblante da alma, por sobejos e vivente parecença.
Mesmo longe, certas horas ela havia de sentir, sem saber, repuxão da
tristeza do Iô Wi, compondo silêncio.
E
o Iô Wi, agora, não ia apossá-lo no quadro? Não, o Iô
Williãozinho sendo dos que persistem, ele carecia daquilo, para
conferir saudades. Só o vilão sonha sem o seu coração. Bio
concordou, tossia. Outros possíveis retratos rejeitou, que o Iô Wi
prometia mandar bater. Maior queria pensar o que percebia, de volta.
Meteu-se por dentro.
Mais
nem praguejava que em rasgados aquele figurado se acabasse. Só, numa
madrugada, sonhou esse aspecto, coisas ofendidas. Foi levantar e ir
ver: seu cavalo!
O
cavalo, prostrado, a cara arreganhada, ralada, às muitas moscas, os
dentes de fora, estava morrendo. Bio também gemeu, lavando com morna
água salgada aqueles beiços, desfez o arreganhamento, provou-lhe as
juntas, pôs o cabresto, ele fazia um esforço para obedecer. Bebia,
sem bastar, baldes de água com fubá e punhadinho de sal. Mas
mirava-o, agradecido, nos olhos as amizades da noite. Sofrimento e
sede... Isto se grava em retratos? Nhô da Moura não tivera ocasião
daquilo.
Essas
horas. Ele pôs a cabeça em pé, parecia que ia mandar uma
relinchada bonita. Depois foi arriando a esfolada cabeça, que ficou
nos joelhos do Bio. Cavalo infrene, que corria, como uma cachoeira.
Não estava ali mais.
Ali
estava chegado o Iô Williãozinho.
— “Você,
Bio, enterrou o seu Lirialvo? Você envelheceu, sobrejeito...”
— disse, deveras. Vem comigo, associoso falou. Bio veio, divulgava
ao outro como aquele se quebrara por dentro, de rolar de um barranco
à-toa. Calado, agora, recuidasse, que a ingrata moça constava
também, nesta vida, teria seu direito papel, formosa à vista.
— “Bio,
você quer o retrato?”
Não,
Bio queria não, feliz anteriormente, queria mesmo silêncio. Apesar
bem de belo, perfeito em forma de semelhanças, cavalo tão cidadão,
aquilo não podia satisfazer o espírito, como a riqueza esfria
amores, permanecido em estado de bicho. Nem era o que mudado, depois,
com ronquidos de padecer, tremente o inteiro pelo, dele junto, como o
dia de ontem que não passou, sem socorro possível.
— “Bio,
a gente nunca se esquece...” — bem dito, com uma dor muito
cheia de franqueza. De jeito nenhum, consequência da vida.
Mais
foram, conformes no ouvir e falar, mero conversando assim aos
infinitos, seduzidos de piedade, pelas alturas da noite. Resolvidos,
acharam: que iam levar o quadro, efígies de imagens, ao Seo Drães,
para o salão de fidalga casa, onde reportar honra e glória.
Separaram-se, após, olhos em lacrimejo, um do outro meio
envergonhados.
Era
verdade de-noite
era
verdade de-dia
Mentira,
porque eu sofria.
Recapítulo
Guimarães Rosa, in Tutameia
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