Só
o amor em linhas gerais infunde simpatia e sentido à história,
sobre cujo fim vogam inexatidões, convindo se componham; o amor e
seu milhão de significados. Assim, quando primeiro do mesmo se tem
direta notícia, viajava o protagonista, de trem, para Sete-Lagoas.
Ele queria conversar com uma mulher.
Ano
ou meses antes, lembre-se, desfizera-se na região, por óbito de T.
N. Ruysconcellos, empresário e dono, o Circo Carré, absorvidos
reportavelmente por outro, o Grande Circo Hânsio-Europeu, dos
Mazzagrani, o material e mor parte dos artistas. X. Ruysconcellos,
que naquele se afamara como o clown Ritripas ou “Dá-o-Galo”,
parecia deixado então do mister circense. Distinguia-se ainda moço,
tão bem vestido quanto comedido, nem alegre nem triste, apenas o
oposto; bebia, devagar, sem se inebriar.
Vir
a falar com aquela mulher oferecia-se seu problema; viver sem
precisar de milagres seria lúgubre maldição. Ela na ocasião sendo
mulher pública aliás, mas singular do comum, mesmo no nome de
guerra não usar, senão o próprio, civil, mais ou menos espanhol,
de Mema Verguedo; e, talvez com receio ou por ira no peito, negava-se
à conversação: a respeito de outra — Ona Pomona.
Ruysconcellos
não ia durar. — Toda hora há moribundos nascendo... —
quase se desculpava, inculcava-se firmeza. — Se bons e maus
acabam do coração ou de câncer, concluo em mim as duas causas...
— e coçava-se a raiz do nariz, isto é, o hilo dos óculos. Mesmo
nesses assuntos, pedia a máxima seriedade. Método, queria.
Macilento, tez palhiça, cortada a fala de ofegos, mostrava
indiferença ao escárnio, a dos condenados.
Mas
buscava toda cópia de informação, sobre Ona Pomona, casada e
remota no mundo, no México, na Itália. Mema apenas o inteiraria
disso, de Ona Pomona tinha sido a amiga. Uma se fora com o Circo
Europeu, a outra se refugiara em prostíbulo. Ele esperava, insistia,
não podia sair da cidade.
Mema
desatendia recados. — Tranquilo esteja! — re-vezes
caminhava no quarto, rapariga alongada e mate, com artes elásticas,
de contornos secos recortados. — Se quiser, venha — como os
outros!... pelo passatempo, não para indagação em particular.
— Se bem, bem, logo, logo... Estava ali com extraordinária
certeza; dela de alguma maneira contudo se intimidavam os homens, era
o seu o ar dos sombrios entre as dobras de uma rosa.
Mentido
o modo, proferia: — Cuquito! — por carinho ou desdém.
Nada os aproximara, aventura nem namoro. — Sei, nunca me viu...
palhaços só notassem a multidão, não dividiam picadeiro, camarim,
plateia. Sorria contrária — toda em ângulos a superfície do
rosto — o nariz afirmativo, o queixo interrogador. O que não dizia
era ter, escondida, a mala, que lhe não pertencia; e cujo conteúdo
não descobrira a ninguém.
Entrado
ao trem da paciência, Ruysconcellos lia, relia à-toa jornais, sem
saltar palavra ou página. — Já vi um homem se afundar e
desaparecer dentro de par de sapatos... — tirou os óculos e se
acariciava os olhos com as pontas dos dedos. Tinha de Ona Pomona um
retrato, queria entender o avesso do passado entre ambos,
estudadamente, metia-se nessa música, imagem rendada; o que a música
diz é a impossibilidade de haver mundo, coisas. — Inútil...
a lucidez — está-se sempre no caso da tartaruga e Aquiles.
Dobrou
com distraído cuidado a foto — onde Mema via-se também —
partiu-a, ainda mais minucioso, destruindo daí essa outra e errada
metade. Maldade nele no momento acaso surgisse, em seu siso, uma
ameaça a Mema. De vez em nada, tragava gole. Do alvaiadado Ritripas
nem lhe restassem mínimos gestos.
Mema,
a ela não deixava de voltar quem vez a pressentisse, como num caroço
de pêssego há sobrados venenos, como a um vinagre perfumoso. —
Ele nunca teve graça, o que divertia era seu excesso de lógica...
— tossiu, por nojo. O que ele imaginava, de amor a Ona Pomona,
seria no mero engano, influição, veneta. Sob outra forma: não
amava. — Ele não quer ser ele mesmo... — Mema entredisse,
em enfogo, frementes ventas — como se da vida alguma verdade só se
pudesse apreender através de representada personagem.
Simples
escorrida se estreitava no rosa-chá vestido, o amarelo é difícil e
agudo. Sem vagar, fumava, devia de não comer e ter febre. Sua maior
escuridão estava nas mãos. Abriu aquela mala — em que retinha o
que de “Dá-o-Galo” do Circo Carré: narizes de papelão postiços
ou reviradas pontas de cera, tintas para a cara, sapatanchas,
careca-acrescente, amplas bufonas coloridas.
Vindo
de São Paulo o secretário do Circo Américas, papéis na pasta,
gravata borboleta, trazia a Ruysconcellos empenhada oferta, em vão.
Soubesse de Ona Pomona similar à água e à seda? Do azul em que as
coisas se perdem e perduram? Intercedendo, procurou então Mema,
propôs também engajá-la, com o jeito de tísica. — Ele não
vai! — ela tresconversou, em rebelia, quisesse com as
levantadas mãos tapar quaisquer alheios olhos.
Ruysconcellos
dissera somente a necessária recusa. — Cuspes de dromedário!
— até nisso: praguejava com gentileza. Deu-lhe o pó de palidez,
esverdeando-se por volta dos lábios.
— Vê?
— o retrato, — a parte que guardara. Era o de Mema... E,
então, fora o de Ona o rasgado, aconteceu’que, erro, como pudera?!
Fez a careta involuntária: a mais densa blasfêmia. Estava sem
óculos; não refabulava. Era o homem — o ser ridente e ridículo —
sendo o absurdo o espelho em que a imagem da gente se destrói.
Disse: — Só o moribundo é onipotente —; a disfarça.
Xênio Ruysconcellos, o álcool não lhe tirava o senso de seriedade
e urgência. De pé, implorava, falando em aparte.
Tartamudo:
— ... nona... nopoma... nema... — e rir é sempre uma
humildade. Mema desatinada escrevera-lhe, insultos. Em fúria, não
ouviria ela seu primeiro rogo?
Mema
mordida escutou o enviado apelo, apagada a acentuação do rosto. —
Ele precisa de dinheiro, de ajuda?! — e seu pensamento virava e
mexia, feito uma carne que se assa. — Que venha... — de
repente chorou, fundo, como se feliz — ... para o que quiser.
Ela estava ali com muita verdade, cheirava a naftalina ou alfazema. O
vento acaba sempre depois de alguma coisa que não se sabe.
De
dia, de fato, tiveram de romper a porta, havido alvoroço. Na cama
jazendo imorais os corpos, os dois, à luz fechada naquele quarto. A
morte é uma louca? — ou o fim de uma fórmula. Mas todos morrem
audazmente — e é então que começa a não-história.
Falso
e exagerado quase tudo o que a respeito se propalou; atesta-se porém
que ele satisfeito sucumbiu, natural, de doença de Deus. Mema após,
decerto, por própria vontade. Nem foi ele o encontrado em festa de
vestes, melhor dizendo estivesse sem roupa qualquer; tãopouco
travestida ou empoada Mema, à truã, pintada, ultrajada. Infundado,
pois, que saídos de arena ou palco na morte se odiassem. Enfim,
podiam, achavam, se abraçavam.
Guimarães Rosa, in Tutameia
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