terça-feira, 22 de novembro de 2022

Meu menino lindo



Quando a confusão começou, Dahab e Aya foram embora. Mustafá convenceu-as a ir sem ele. Conforme seus medos começaram a se confirmar, ele fez planos com a maior rapidez, mas precisava ficar um pouco mais para cuidar das abelhas. À época, pensei que ele estava sendo muito precipitado, que a morte da mãe quando ele era criança – o que o assombrara pelo tempo em que eu o conhecia – tinha, de alguma maneira, feito com que fosse excessivamente protetor em relação às mulheres em sua vida, e como resultado, Dahab e Aya achavam-se entre as primeiras a deixar a região, tendo a sorte de serem poupadas do que estava por vir. Mustafá tinha um amigo na Inglaterra, professor de sociologia, que se mudara para lá alguns anos antes por causa de trabalho, e esse homem telefonara para Mustafá insistindo para que ele fosse para o Reino Unido; estava convencido de que a situação pioraria. Mustafá deu à mulher e à filha dinheiro suficiente para fazerem a viagem, enquanto ficava na Síria com Firas.
Não posso simplesmente abandonar as abelhas, Nuri – disse numa noite, sua mãozorra passando pelo rosto e pela barba, como se ele estivesse tentando apagar a expressão sombria que agora sempre ostentava. – Para nós, as abelhas são parte da família.
Antes de as coisas ficarem realmente ruins, Mustafá e Firas juntavam-se a nós no jantar, à noite, e sentávamos juntos na varanda observando a cidade lá embaixo e escutando o estrondo de uma bomba distante, vendo a fumaça subir para o céu. Mais tarde, quando a situação piorou, começamos a conversar sobre irmos embora juntos. Ficávamos à volta do meu globo iluminado, na penumbra do anoitecer, enquanto ele traçava com o dedo a viagem que Dahab e Aya haviam feito. Para elas tinha sido mais fácil. Numa gorda carteira de couro, Mustafá tinha os nomes e número de telefone de vários atravessadores. Percorremos os livros, verificando as finanças, calculando o possível custo da nossa fuga. Logicamente, era difícil prever, os atravessadores mudavam suas taxas de uma hora para outra, mas tínhamos um plano, e Mustafá adorava planos, listas e itinerários. Eles faziam com que se sentisse seguro. Mas eu sabia que aquilo era só falatório; Mustafá não estava pronto para deixar as abelhas.
Certa noite, no alto verão, vândalos destruíram as colmeias. Puseram fogo nelas, e quando chegamos aos apiários pela manhã, tinham virado carvão. As abelhas tinham morrido e a área estava preta. Jamais vou esquecer o silêncio, aquele silêncio profundo e sem fim. Sem as nuvens de abelhas sobre o campo, deparamo-nos com um céu e uma luz imóveis. Naquele momento, enquanto eu estava na beira do terreno onde o sol se inclinava ao longo das colmeias arruinadas, tive uma sensação de vazio, um nada silencioso que me invadia sempre que eu inspirava. Mustafá sentou-se no chão no meio do terreno, com as pernas cruzadas e os olhos fechados. Caminhei por lá, esquadrinhando o chão à procura de abelhas vivas e pisando nelas porque não tinham colmeia, nem colônia. A maioria das colmeias tinha se desfeito completamente, mas algumas permaneciam como esqueletos, com os números ainda visíveis: 12, 21, 121, as colônias da avó, da mãe e da filha. Eu sabia, porque eu mesmo tinha dividido as colmeias. Três gerações de abelhas. Mas agora, não restava nenhuma. Fui para casa e pus Sami na cama, sentando-me por um tempo ao lado dele, enquanto ele dormia. Depois, fui para a varanda e contemplei o céu que escurecia, e a cidade inquietante abaixo.
No sopé da colina estava o Queiq. Na última vez em que vi o rio, ele estava cheio de lixo. No inverno, pescaram os corpos de homens e meninos. Estavam com as mãos amarradas, balas na cabeça. Naquele dia de inverno, em Bustan al-Qasr, na região sul, observei-os tirando fora os corpos. Acompanhei-os até uma velha escola, onde eles foram estendidos no pátio. Dentro do prédio estava escuro e havia velas acesas em um balde de areia. Uma mulher de meia-idade ajoelhou-se no chão ao lado de outro balde cheio de água. Ia limpar os rostos dos homens mortos, ela disse, para que as mulheres que os amavam os reconhecessem quando viessem à procura. Se eu tivesse sido um dos mortos no rio, Afra teria subido uma montanha para me encontrar. Teria nadado até o fundo daquele rio, mas isso foi antes de eles a cegarem.
Afra era diferente antes da guerra. Costumava fazer a maior bagunça o tempo todo. Se estivesse fazendo algum assado, por exemplo, haveria farinha por toda superfície, até em Sami. Ele estaria coberto de farinha. Quando pintava, fazia uma confusão. E se Sami também estivesse pintando, era ainda pior, como se eles tivessem sacudido pincéis ensopados de tinta por todo o quarto. Mesmo ao falar, ela era bagunceira, jogando palavras para cá e para lá, pegando-as de volta, jogando outras diferentes. Às vezes, ela mesma se interrompia. Quando ria, era uma risada tão forte que a casa balançava.
Mas quando ficava triste, meu mundo escurecia. Eu não tinha o que fazer quanto a isto. Ela era mais forte do que eu. Chorava como uma criança, ria como sinos tocando, e seu sorriso era o mais bonito que já vi. Poderia passar horas discutindo sem fazer uma pausa. Afra amava, detestava e aspirava o mundo como se fosse uma rosa. Por tudo isso, eu a amava mais do que à vida.
A arte que ela fazia era incrível. Ganhou prêmios por suas pinturas da Síria urbana e rural. Aos domingos de manhã, íamos todos ao mercado e montávamos uma barraca, bem em frente a Hamid, que vendia temperos e chá. A barraca era na parte coberta do souq. Ali era escuro e um pouco úmido, mas dava para sentir o cheiro de cardamomo, canela, anis e um milhão de outros condimentos. Mesmo sob aquela luz fraca, as paisagens em suas pinturas não ficavam paradas. Era como se estivessem se movendo, como se o céu que havia nelas estivesse se movendo, como se a água que havia nelas estivesse se movendo.
Você devia ter visto a maneira como ela se relacionava com os clientes que se aproximavam da barraca, empresários e mulheres, principalmente da Europa ou da Ásia. Naqueles momentos, ela se sentava, muito quieta, com Sami no colo, os olhos fixos nos clientes, enquanto eles se aproximavam de uma pintura, levantando os óculos – quando os usavam –, depois se afastando, muitas vezes recuando tanto que batiam nos clientes de Hamid, e então ficavam ali parados por um longo tempo. E muitas vezes os clientes diziam: – Afra é você? E ela respondia: – Sim, sou a Afra. – E isso bastava. Pintura vendida.
Havia todo um mundo nela, e os clientes podiam ver isto. Naquele momento, enquanto observavam a pintura e depois olhavam para ela, viam do que era feita. A alma de Afra era tão vasta quanto os campos, o deserto, o céu, o mar e o rio que ela pintava, e igualmente misteriosa. Sempre havia mais para saber, entender, e por mais que eu soubesse, não era suficiente, eu queria mais. Mas na Síria existe um ditado: Dentro de quem você conhece, existe alguém que você não conhece. Eu a amei desde o dia em que a conheci, no casamento do filho mais velho do meu primo Ibrahim, no hotel Dama Rose, em Damasco. Ela usava um vestido amarelo com um hijab de seda. E seus olhos não eram do azul do mar, nem do azul do céu, mas do azul escuro do Rio Queiq, com volutas de marrom e verde.
Lembro-me da noite do nosso casamento, dois anos depois, e como ela quis que eu tirasse seu hijab. Tirei os grampos, delicadamente, um por um, desenrolando o tecido, e vendo, pela primeira vez, seu longo cabelo preto, tão escuro quanto o céu sobre o deserto numa noite sem estrelas.
Mas o que eu mais amava nela era sua risada. Ela ria como se jamais fôssemos morrer.

Quando as abelhas morreram, Mustafá ficou pronto para deixar Alepo. Estávamos prestes a ir, quando Firas sumiu, então esperamos por ele. Mustafá mal falava nessa época, sua mente totalmente preocupada, imaginando uma coisa ou outra. De vez em quando dava um palpite sobre onde Firas poderia estar. “Talvez ele tenha ido encontrar os amigos, Nuri”, ou “Talvez ele não se conforme em deixar Alepo, esteja se escondendo em algum lugar, para que a gente fique” ou, uma vez “Talvez tenha morrido, Nuri. Talvez meu filho tenha morrido”.
Nossas malas estavam feitas e estávamos prontos, mas os dias e noites se passavam sem sinal de Firas. Então, Mustafá trabalhou em um necrotério, num prédio abandonado, onde registrava os detalhes e a causa da morte: balas, estilhaços, explosão. Era esquisito vê-lo num recinto fechado, longe do sol. Tinha um caderno preto e trabalhava o tempo todo, anotando com um toco de lápis os detalhes dos mortos. Quando conseguia identificar os cadáveres, sua tarefa ficava mais fácil; outras vezes, anotava um traço marcante, como a cor do cabelo ou dos olhos, a forma particular do nariz, uma verruga na face esquerda. Mustafá fez isso até aquele dia de inverno, quando eu trouxe seu filho do rio. Reconheci o adolescente morto nas lajes do pátio da escola. Pedi a dois homens que tinham um carro para me ajudarem a levar o corpo até o necrotério. Quando Mustafá viu Firas, pediu que o deitássemos sobre a mesa, depois fechou os olhos do menino e ficou por um longo tempo imóvel, segurando sua mão. Fiquei à porta, enquanto os outros homens iam embora, o som de um motor, o carro se afastando, e então baixou uma quietude, muita quietude, e a luz entrou pela janela acima da mesa onde o menino estava deitado, onde Mustafá, em pé, segurava sua mão. Por um tempo não se ouviu um som, nem uma bomba, ou passarinho, ou uma respiração.
Então, Mustafá afastou-se da mesa, colocou os óculos, e afiou o pequeno lápis com uma faca, e sentando-se à mesa, abriu o caderno preto e escreveu:

Nome – Meu menino lindo.
Causa da morte – Este mundo esfacelado.

E essa foi a última vez que Mustafá anotou os nomes dos mortos.
Exatamente uma semana depois, Sami foi morto.

Christy Lefteri, in O homem que escutava as abelhas

Nenhum comentário:

Postar um comentário