Quando
a confusão começou, Dahab e Aya foram embora. Mustafá convenceu-as
a ir sem ele. Conforme seus medos começaram a se confirmar, ele fez
planos com a maior rapidez, mas precisava ficar um pouco mais para
cuidar das abelhas. À época, pensei que ele estava sendo muito
precipitado, que a morte da mãe quando ele era criança – o que o
assombrara pelo tempo em que eu o conhecia – tinha, de alguma
maneira, feito com que fosse excessivamente protetor em relação às
mulheres em sua vida, e como resultado, Dahab e Aya achavam-se entre
as primeiras a deixar a região, tendo a sorte de serem poupadas do
que estava por vir. Mustafá tinha um amigo na Inglaterra, professor
de sociologia, que se mudara para lá alguns anos antes por causa de
trabalho, e esse homem telefonara para Mustafá insistindo para que
ele fosse para o Reino Unido; estava convencido de que a situação
pioraria. Mustafá deu à mulher e à filha dinheiro suficiente para
fazerem a viagem, enquanto ficava na Síria com Firas.
– Não
posso simplesmente abandonar as abelhas, Nuri – disse numa noite,
sua mãozorra passando pelo rosto e pela barba, como se ele estivesse
tentando apagar a expressão sombria que agora sempre ostentava. –
Para nós, as abelhas são parte da família.
Antes
de as coisas ficarem realmente ruins, Mustafá e Firas juntavam-se a
nós no jantar, à noite, e sentávamos juntos na varanda observando
a cidade lá embaixo e escutando o estrondo de uma bomba distante,
vendo a fumaça subir para o céu. Mais tarde, quando a situação
piorou, começamos a conversar sobre irmos embora juntos. Ficávamos
à volta do meu globo iluminado, na penumbra do anoitecer, enquanto
ele traçava com o dedo a viagem que Dahab e Aya haviam feito. Para
elas tinha sido mais fácil. Numa gorda carteira de couro, Mustafá
tinha os nomes e número de telefone de vários atravessadores.
Percorremos os livros, verificando as finanças, calculando o
possível custo da nossa fuga. Logicamente, era difícil prever, os
atravessadores mudavam suas taxas de uma hora para outra, mas
tínhamos um plano, e Mustafá adorava planos, listas e itinerários.
Eles faziam com que se sentisse seguro. Mas eu sabia que aquilo era
só falatório; Mustafá não estava pronto para deixar as abelhas.
Certa
noite, no alto verão, vândalos destruíram as colmeias. Puseram
fogo nelas, e quando chegamos aos apiários pela manhã, tinham
virado carvão. As abelhas tinham morrido e a área estava preta.
Jamais vou esquecer o silêncio, aquele silêncio profundo e sem fim.
Sem as nuvens de abelhas sobre o campo, deparamo-nos com um céu e
uma luz imóveis. Naquele momento, enquanto eu estava na beira do
terreno onde o sol se inclinava ao longo das colmeias arruinadas,
tive uma sensação de vazio, um nada silencioso que me invadia
sempre que eu inspirava. Mustafá sentou-se no chão no meio do
terreno, com as pernas cruzadas e os olhos fechados. Caminhei por lá,
esquadrinhando o chão à procura de abelhas vivas e pisando nelas
porque não tinham colmeia, nem colônia. A maioria das colmeias
tinha se desfeito completamente, mas algumas permaneciam como
esqueletos, com os números ainda visíveis: 12, 21, 121, as colônias
da avó, da mãe e da filha. Eu sabia, porque eu mesmo tinha dividido
as colmeias. Três gerações de abelhas. Mas agora, não restava
nenhuma. Fui para casa e pus Sami na cama, sentando-me por um tempo
ao lado dele, enquanto ele dormia. Depois, fui para a varanda e
contemplei o céu que escurecia, e a cidade inquietante abaixo.
No
sopé da colina estava o Queiq. Na última vez em que vi o rio, ele
estava cheio de lixo. No inverno, pescaram os corpos de homens e
meninos. Estavam com as mãos amarradas, balas na cabeça. Naquele
dia de inverno, em Bustan al-Qasr, na região sul, observei-os
tirando fora os corpos. Acompanhei-os até uma velha escola, onde
eles foram estendidos no pátio. Dentro do prédio estava escuro e
havia velas acesas em um balde de areia. Uma mulher de meia-idade
ajoelhou-se no chão ao lado de outro balde cheio de água. Ia limpar
os rostos dos homens mortos, ela disse, para que as mulheres que os
amavam os reconhecessem quando viessem à procura. Se eu tivesse sido
um dos mortos no rio, Afra teria subido uma montanha para me
encontrar. Teria nadado até o fundo daquele rio, mas isso foi antes
de eles a cegarem.
Afra
era diferente antes da guerra. Costumava fazer a maior bagunça o
tempo todo. Se estivesse fazendo algum assado, por exemplo, haveria
farinha por toda superfície, até em Sami. Ele estaria coberto de
farinha. Quando pintava, fazia uma confusão. E se Sami também
estivesse pintando, era ainda pior, como se eles tivessem sacudido
pincéis ensopados de tinta por todo o quarto. Mesmo ao falar, ela
era bagunceira, jogando palavras para cá e para lá, pegando-as de
volta, jogando outras diferentes. Às vezes, ela mesma se
interrompia. Quando ria, era uma risada tão forte que a casa
balançava.
Mas
quando ficava triste, meu mundo escurecia. Eu não tinha o que fazer
quanto a isto. Ela era mais forte do que eu. Chorava como uma
criança, ria como sinos tocando, e seu sorriso era o mais bonito que
já vi. Poderia passar horas discutindo sem fazer uma pausa. Afra
amava, detestava e aspirava o mundo como se fosse uma rosa. Por tudo
isso, eu a amava mais do que à vida.
A
arte que ela fazia era incrível. Ganhou prêmios por suas pinturas
da Síria urbana e rural. Aos domingos de manhã, íamos todos ao
mercado e montávamos uma barraca, bem em frente a Hamid, que vendia
temperos e chá. A barraca era na parte coberta do souq. Ali
era escuro e um pouco úmido, mas dava para sentir o cheiro de
cardamomo, canela, anis e um milhão de outros condimentos. Mesmo sob
aquela luz fraca, as paisagens em suas pinturas não ficavam paradas.
Era como se estivessem se movendo, como se o céu que havia nelas
estivesse se movendo, como se a água que havia nelas estivesse se
movendo.
Você
devia ter visto a maneira como ela se relacionava com os clientes que
se aproximavam da barraca, empresários e mulheres, principalmente da
Europa ou da Ásia. Naqueles momentos, ela se sentava, muito quieta,
com Sami no colo, os olhos fixos nos clientes, enquanto eles se
aproximavam de uma pintura, levantando os óculos – quando os
usavam –, depois se afastando, muitas vezes recuando tanto que
batiam nos clientes de Hamid, e então ficavam ali parados por um
longo tempo. E muitas vezes os clientes diziam: – Afra é você?
E ela respondia: – Sim, sou a Afra. – E isso bastava. Pintura
vendida.
Havia
todo um mundo nela, e os clientes podiam ver isto. Naquele momento,
enquanto observavam a pintura e depois olhavam para ela, viam do que
era feita. A alma de Afra era tão vasta quanto os campos, o deserto,
o céu, o mar e o rio que ela pintava, e igualmente misteriosa.
Sempre havia mais para saber, entender, e por mais que eu soubesse,
não era suficiente, eu queria mais. Mas na Síria existe um ditado:
Dentro de quem você conhece, existe alguém que você não
conhece. Eu a amei desde o dia em que a conheci, no casamento do
filho mais velho do meu primo Ibrahim, no hotel Dama Rose, em
Damasco. Ela usava um vestido amarelo com um hijab de seda. E
seus olhos não eram do azul do mar, nem do azul do céu, mas do azul
escuro do Rio Queiq, com volutas de marrom e verde.
Lembro-me
da noite do nosso casamento, dois anos depois, e como ela quis que eu
tirasse seu hijab. Tirei os grampos, delicadamente, um por um,
desenrolando o tecido, e vendo, pela primeira vez, seu longo cabelo
preto, tão escuro quanto o céu sobre o deserto numa noite sem
estrelas.
Mas
o que eu mais amava nela era sua risada. Ela ria como se jamais
fôssemos morrer.
Quando
as abelhas morreram, Mustafá ficou pronto para deixar Alepo.
Estávamos prestes a ir, quando Firas sumiu, então esperamos por
ele. Mustafá mal falava nessa época, sua mente totalmente
preocupada, imaginando uma coisa ou outra. De vez em quando dava um
palpite sobre onde Firas poderia estar. “Talvez ele tenha ido
encontrar os amigos, Nuri”, ou “Talvez ele não se conforme em
deixar Alepo, esteja se escondendo em algum lugar, para que a gente
fique” ou, uma vez “Talvez tenha morrido, Nuri. Talvez meu filho
tenha morrido”.
Nossas
malas estavam feitas e estávamos prontos, mas os dias e noites se
passavam sem sinal de Firas. Então, Mustafá trabalhou em um
necrotério, num prédio abandonado, onde registrava os detalhes e a
causa da morte: balas, estilhaços, explosão. Era esquisito vê-lo
num recinto fechado, longe do sol. Tinha um caderno preto e
trabalhava o tempo todo, anotando com um toco de lápis os detalhes
dos mortos. Quando conseguia identificar os cadáveres, sua tarefa
ficava mais fácil; outras vezes, anotava um traço marcante, como a
cor do cabelo ou dos olhos, a forma particular do nariz, uma verruga
na face esquerda. Mustafá fez isso até aquele dia de inverno,
quando eu trouxe seu filho do rio. Reconheci o adolescente morto nas
lajes do pátio da escola. Pedi a dois homens que tinham um carro
para me ajudarem a levar o corpo até o necrotério. Quando Mustafá
viu Firas, pediu que o deitássemos sobre a mesa, depois fechou os
olhos do menino e ficou por um longo tempo imóvel, segurando sua
mão. Fiquei à porta, enquanto os outros homens iam embora, o som de
um motor, o carro se afastando, e então baixou uma quietude, muita
quietude, e a luz entrou pela janela acima da mesa onde o menino
estava deitado, onde Mustafá, em pé, segurava sua mão. Por um
tempo não se ouviu um som, nem uma bomba, ou passarinho, ou uma
respiração.
Então,
Mustafá afastou-se da mesa, colocou os óculos, e afiou o pequeno
lápis com uma faca, e sentando-se à mesa, abriu o caderno preto e
escreveu:
Nome
– Meu menino lindo.
Causa
da morte – Este mundo esfacelado.
E
essa foi a última vez que Mustafá anotou os nomes dos mortos.
Exatamente
uma semana depois, Sami foi morto.
Christy Lefteri, in O homem que escutava as abelhas
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