Enquanto
escrevia essas cartas para você, meu irmão Denis, o mais velho, me
enviou uma foto sua, vó. Você estava toda altiva, usando roupas
brancas e com um turbante na cabeça. Fiquei observando cada detalhe
da imagem, me demorei imaginando quais histórias havia por trás das
rugas em seu rosto, quantas vidas tinham sido afetadas por aquelas
mãos calejadas que curavam cobreiros e davam esperança aos que
foram benzidos. Mas nada me chamou mais atenção do que seus olhos.
Um olhar penetrante, forte e, de novo, altivo. Minha mãe carregava o
mesmo olhar, apesar de ele ter sido encurvado pelo tempo. Às vezes
ela falava só com olhares, e eu aprendi a decifrar cada um deles:
“Saia daqui”, “Fique quieta”, “Não se meta, é conversa de
adulto”, “Quando seu pai for trabalhar, você vai se ver comigo”.
Um
olhar, porém, me é inesquecível. Um olhar que só mulheres
cúmplices podem trocar: “Confirme com seu pai que a compra custou
tanto”, “Veja se seu pai desligou o chuveiro para que eu tenha
tempo de checar a carteira dele”. O resultado desse olhar
significaria compras a mais no supermercado, roupas novas fora do
Natal, guloseimas no domingo. “Se seu pai vai gastar dinheiro na
rua, que a gente tire o nosso”, minha mãe dizia.
Essa
cumplicidade, porém, tinha um sentido mais profundo: o de me
proteger das violências que somente mulheres sofrem. Esse olhar
poderia ser feio para quem mexesse com a gente na rua, de fúria para
vizinhos que dissessem lascivamente “suas filhas estão crescendo”,
de amor e afeto quando ela me dizia para dormir com ela na sua cama.
Se as injustiças do mundo me deixam indignada, foi porque olhos
altivos negros da cor da noite me acolheram antes que eu pudesse
aprender as palavras, antes que eu soubesse o que era feminismo ou
luta política. Olhos que me repreenderam quando eu estava errada e
que me ensinaram a humildade de pedir desculpas.
Por
mais que você e minha mãe se desentendessem constantemente, seus
olhares eram quase iguais. Penso que somente a geração futura
poderá fazer justiça às mais velhas ou compreender outros olhares.
Como se diz no candomblé, os mais novos precisam dos mais velhos,
reconhecer o caminho pavimentado, mas os mais velhos também precisam
dos mais novos, para seguirem existindo e terem senso de
continuidade. A força dos olhares cúmplices seus e de minha mãe,
mesmo que menos frequentes do que desejávamos, foi fundamental para
me ensinar a ver o mundo pela perspectiva da mulher que enfrenta
visceralmente o mundo. Ao ver seus olhos na foto, entendi de onde
herdei os meus.
Djamila Ribeiro, in Cartas para minha avó
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